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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.38 Lisboa jun. 2013

 

Confluência na Ásia? As relações Rússia-China

The Russia-China relations

 

Maria Raquel Freire

 

RESUMO

As relações Rússia-China têm sido pautadas por níveis de cooperação assentes nas posturas comuns em temas fundamentais de política externa, bem como por alguns elementos de continuidade nos projetos de consolidação nacional. Contudo, esta não tem sido uma relação isenta de constrangimentos, especialmente quando objetivos incompatíveis se cruzam. Este texto analisa as relações entre a Rússia e a China num quadro internacional mudado, onde a região Ásia-Pacífico tem vindo a ganhar relevância. Relações políticas, económicas e de segurança são objeto de análise, com vista a compreender os principais temas na agenda e as dinâmicas que têm gerado em termos da relação bilateral, que se assume cada vez mais assimétrica.

Palavras-chave: China, Rússia, política externa, Ásia-Pacífico

 

ABSTRACT

Russia-China relations have been marked by areas of cooperation built on shared approaches in fundamental foreign policy topics, as well as by some elements of continuity in projects of national consolidation. However, this has not been a relationship without constraints, especially regarding incompatible goals. This article analyses the relations between Russia and China in an internationally changed framework, where the Asia-Pacific region has been gaining growing relevance. Political, economic and security relations are object of analysis, with the aim of understanding the main issues in the agenda and the dynamics that these have generated regarding the bilateral relationship, which is increasingly understood as asymmetrical.

Keywords: China, Russia, foreign policy, Asia-Pacific

 

As relações Rússia-China, desde o final da Guerra Fria, têm sido consolidadas em torno da parceria estratégica e dos acordos de amizade e cooperação, bem como outros de cariz mais específico que definem os traços fundamentais que orientam a parceria. Estas relações não têm sido, contudo, lineares. Pautadas por espaços de cooperação assentes na partilha de posturas em temas fundamentais de política externa, bem como por elementos de continuidade nos projetos de consolidação nacional, apesar dos diferenciais existentes, estas não têm sido isentas de constrangimentos, especialmente quando objetivos incompatíveis se cruzam. Este texto analisa as relações entre a Rússia e a China num quadro internacional mudado, onde a região Ásia-Pacífico tem vindo a ganhar relevância acrescida. Relações políticas, económicas e de segurança são objeto de análise, com vista a compreender as principais questões na agenda e as dinâmicas que têm gerado em termos da relação bilateral, que se assume crescentemente como assimétrica.

A viragem a Leste das políticas, recentradas na região Ásia-Pacífico, torna esta área foco de especial atenção. Nesta dinâmica de viragem, a Rússia tem sido um ator ativo, respondendo ao que entende como novos desafios, mas também novas oportunidades. A China, enquanto ator fundamental neste contexto regional, surge na agenda de política externa russa com relevância acrescida. De facto, o novo conceito de política externa, aprovado em fevereiro de 2013, refere-se aos processos globais que se aceleraram na primeira década do século XXI e à necessidade de a Rússia dar resposta a uma situação internacional em rápida mutação e onde as responsabilidades russas em informar a agenda internacional são acrescidas. Refere ainda explicitamente que «o poder global e o potencial de desenvolvimento estão agora mais dispersos e a virar-se para leste, primeiramente para a região Ásia-Pacífico»1. Os parágrafos 75 a 87 deste documento de referência são dedicados à Ásia-Pacífico, afirmando que o desenvolvimento de relações amistosas com a China é uma das prioridades da política externa russa2. Neste alinhamento, partilhado pela China, há questões que aproximam claramente estes dois atores, e outras que se revelam motivo de fricção, como veremos adiante, permitindo uma tensão constante entre políticas de cooperação e contenção.

Esta gestão difícil de temas na agenda tem seguido princípios pragmáticos de política externa de ambos os estados, o que se tem revelado na ambivalência que resulta não só da cooperação económica intensificada, como também de relações securitárias mais densas – numa lógica de prevenção de dependências na construção de relações bilaterais assentes em interdependência. Dinâmicas que são objeto de análise nas secções que se seguem, e cuja estrutura assenta na análise das políticas internas, identificando traços comuns e diferenciadores, e nas opções de política externa destes estados, em termos políticos, económicos e de segurança, e com uma explicitação mais concreta no caso da Organização de Cooperação de Xangai (OCX). O artigo conclui que esta relação bilateral é, e continuará a ser, pautada por ambivalências dado que o estreitamento da cooperação é entendido como favorável, embora prosseguindo numa lógica cuidada de gestão de diferenciais, em consequência da assimetria crescente na relação, e em particular a preocupação que esta representa para a Rússia.

 

ARRANJOS DE POLÍTICA EXTERNA: DA ORDEM INTERNA E DO CONTEXTO INTERNACIONAL

As políticas externas destes dois grandes estados refletem pressupostos comuns, assentes em três pilares fundamentais: primeiro, o princípio de consolidação interna no sentido de estabilidade e crescimento como base para uma política externa sólida. Este princípio é acompanhado por políticas nacionalistas onde o apoio popular se revela um fator essencial na consolidação da legitimidade do Estado. Segundo, o princípio de não ingerência nos assuntos internos de outros estados e de respeito pela integridade territorial, transcrevendo o reconhecimento da soberania tradicional como elemento agregador e organizador do Estado. E, por fim, o reconhecimento da Organização das Nações Unidas (ONU) como a instituição internacional por excelência responsável pela garantia da segurança e estabilidade internacionais. O lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU que os dois estados ocupam é aqui relevante ao permitir não só uma voz, mas também o direito de voto e veto sobre temas fundamentais relacionados com a segurança internacional. Uma forma de limitar decisões entendidas como contrariando interesses e princípios fundamentais de ambos os estados, que em várias ocasiões se têm unido na direção de voto neste âmbito. O caso da Síria é um exemplo representativo deste alinhamento.

A política externa chinesa assume duas prioridades fundamentais na sua formulação e implementação: estabilidade política interna liderada pelo Partido Comunista enquanto veículo legitimador de políticas, favorecendo o nacionalismo como ideologia agregadora, e crescimento económico assente num modelo socialista de mercado3. Esta combinação traduz-se numa política pragmática, voltada para a prossecução dos objetivos fundamentais de política externa, mesmo que implicando combinações nem sempre fáceis de gerir entre autoritarismo, dirigismo e capitalismo. Além do mais, a China continua a descrever o seu percurso de crescimento e maior influência no sistema internacional como resultado natural do seu desenvolvimento e não visando objetivos hegemónicos, na linha do discurso de «ascensão pacífica». As referências mais recentes ao «sonho chinês» numa replicação do «sonho americano», com uma acentuação forte na necessidade de qualificação e projeção das camadas mais jovens, reflete na sua própria formulação uma ideia não confrontacionista.

Por seu turno, a política externa russa assenta também em pressupostos pragmáticos de atuação, embora num sistema político diferenciado. Os fundamentos de política externa passam também pela combinação entre estabilidade interna e crescimento para uma política externa mais assertiva. E nesta dimensão reside uma diferença fundamental entre estes dois estados, pois a retórica russa assume um tom claramente mais forte e, quando necessário, mesmo confrontacional. A política do reset nas relações com os Estados Unidos, por exemplo, reflete de forma clara a divergência em temas centrais à relação bilateral, e com impacto mais alargado, inclusive nas relações Rússia-União Europeia.

Nos seus alinhamentos fundamentais, a política externa russa revela continuidade relativamente aos seus objetivos de consolidação do seu posicionamento no sistema internacional enquanto grande potência, reconhecida enquanto tal pelos seus pares. Numa formulação multivetorial, onde a Comunidade de Estados Independentes (CEI) assume primazia, seguida do vetor euro-atlântico e asiático, torna-se claro no conceito de política externa publicado em fevereiro de 20134, que a região Ásia-Pacífico está a ganhar relevância nas políticas russas. Esta tendência havia sido já sinalizada aquando da publicação da adenda ao documento de 20085, pouco tempo após a reeleição de Vladimir Putin como presidente da Rússia na primavera de 2012. Esta alteração, não nos pressupostos fundamentais mas nos alinhamentos geoestratégicos, traz novas implicações para as relações Rússia-China, que se consolidam num espaço geográfico partilhado.

Regressando às linhas de convergência nas políticas destes dois estados, o seu posicionamento partilhado em defesa de uma ordem internacional multipolar, do princípio de não ingerência e da ONU enquanto organização de segurança global, merecem um olhar mais atento.

A questão da multipolaridade surge essencialmente informada pela oposição à hegemonia norte-americana, mantendo-se na agenda desde o final da Guerra Fria. Por exemplo, em julho de 2005 as partes assinaram a «Declaração sino-russa sobre a ordem internacional no século XXI» onde a questão da ordem multipolar por contraposição à prevalência norte-americana surge de forma muito clara6, ou no próprio Tratado de Amizade e Cooperação de 2001, atualizado para o período 2009-2012, este alinhamento, por contraposição, é demonstrativo do esforço de contenção da expansão da presença e influência norte-americana na área, em particular na Ásia Central. No entanto, este discurso de contrapeso aos Estados Unidos esbate-se gradualmente após 2008, em particular na Rússia, coincidindo com a guerra na Geórgia. É interessante notar como o discurso russo se alterou após o desfecho das hostilidades. Entendido o resultado como favorável à Rússia e respondendo aos seus objetivos de afirmação não só face à Geórgia, como também à região e internacionalmente, o discurso russo passou a incorporar o princípio de que a ordem internacional é multipolar, desprendendo-se da retórica antiamericana. Recentemente, um diplomata russo referia-se a esta como «policêntrica», termo que surge também no novo conceito de política externa aprovado em fevereiro passado7.

De referir ainda neste contexto que, apesar da retórica de contenção dos Estados Unidos, nenhuma das partes se revê numa relação de hostilização para com estes, entendendo que têm a ganhar com o prosseguimento de relações amistosas. De acordo com Charles Kupchan, a chegada do Presidente Obama à Casa Branca parecia abrir espaço a uma era «pós-atlantista» que gerou mesmo receios na Europa quanto ao compromisso norte-americano com a parceria estratégica bilateral, em favor de um quadro reforçado nas relações com a China, num formato «condomínio G2». Contudo, e apesar da maior interdependência entre os Estados Unidos e a China, e de Obama estar a desenvolver, neste segundo mandato, uma política externa com enfoque claro na região Ásia-Pacífico, as relações tradicionais transatlânticas não perderam relevância. De facto, este relacionamento mantém-se central à política externa dos Estados Unidos apesar das dificuldades daí decorrentes, por exemplo, do que foi descrito como falta de apoio europeu na intervenção no Afeganistão ou da concentração europeia nas questões internas à UE, nomeadamente face à crise financeira.

Washington prossegue uma política externa mais diversificada, num contexto internacional mudado, onde a Ásia se assume como região prioritária8. Note-se ainda que a China tem assumido um peso considerável em termos económicos, com a compra de dívida externa dos Estados Unidos a marcar um espaço importante. Apesar de algumas reações inflamadas, no sentido de que a China se encontra em condições de pressionar os Estados Unidos em matéria financeira, face à questão do apoio continuado a Taiwan, por exemplo9, que têm gerado debate, parece que este não é um cenário expectável, pelo menos no curto prazo.

No caso da Rússia, a relação com os Estados Unidos, definida também como estratégica, tem prosseguido um curso diverso, com questões difíceis na agenda, incluindo o apoio dos Estados Unidos ao alargamento da Aliança Atlântica ou às revoluções coloridas no espaço pós-soviético, com a guerra na Geórgia no verão de 2008 a marcar um dos momentos mais difíceis da relação. A política de reset que se seguiu, e que passou pela criação da Comissão Presidencial Bilateral Estados Unidos-Rússia, em novembro de 2009, demonstra como as partes entendem as relações bilaterais como relevantes, apesar das dificuldades que vão surgindo e que se vão repetindo.

A Ásia Central é um tema que tem estado nas agendas dos três estados (China, Estados Unidos e Rússia), e tem permitido algum atrito, em particular após os ataques terroristas de 11 de setembro, quando a Rússia, sem consultas prévias com a China (e a Organização de Cooperação de Xangai poderia ter sido aqui um fórum importante), avança com o apoio às operações no Afeganistão através do consentimento do uso de bases militares na Ásia Central. Esta atitude, aliada à representação material que a presença militar ocidental junto às suas fronteiras constitui, causou preocupação na China10. A Ásia Central tem sido foco de alguma perturbação nas relações sino-russas, resultante da sua relevância em termos geoestratégicos, energéticos e securitários.

Relativamente à ONU como organização fundamental na garantia de paz e segurança internacional, esta reflete a importância dos lugares permanentes destes dois estados no Conselho de Segurança, a legitimidade que aí encontram para sustentar o princípio de não ingerência e a tentativa cuidada de evitar a predominância de arranjos de segurança de cariz regional, sem grande efeito, contudo, em particular no caso da Aliança Atlântica e da postura russa face a esta. Os princípios de não ingerência nos assuntos internos dos estados e o respeito pela integridade territorial relacionam-se diretamente com os problemas internos na província de Xinjiang na China, e cujo impacto na estabilidade com os países vizinhos, nomeadamente o Cazaquistão, o Tajiquistão e o Quirguistão, e no Cáucaso do Norte exigem um posicionamento político muito claro. A fragilidade das fronteiras nesta área alargada constitui um elemento adicional de preocupação face a atividades irredentistas. A questão de Taiwan não pode também ser descurada na agenda política chinesa, como um elemento perturbador nas suas políticas soberanistas.

Na Rússia, toda a região do Cáucaso do Norte tem sido marcada por grande instabilidade associada a movimentos secessionistas que põem em causa a autoridade central de Moscovo, criando instabilidade acrescida, já identificada como a ameaça interna à integridade territorial do Estado russo. Acresce a preocupação comum com a expansão do radicalismo islâmico na área, problema este identificado na Rússia e na China como prioritário nas agendas de segurança. A instabilidade associada a estas regiões tem sido diretamente relacionada com a atuação de movimentos terroristas islâmicos que pretendem uma islamização de vastas áreas territoriais dentro destes estados, questionando a viabilidade da manutenção da atual configuração territorial. Uma questão que é entendida pelas autoridades russas e chinesas como uma não-questão no sentido de não conceberem a possibilidade de qualquer alteração ao statu quo territorial, e ainda menos como resultante da atuação deste tipo de movimentos radicais. De facto, este posicionamento estrito tem estado presente em exercícios conjuntos de natureza antiterrorista que as partes têm conduzido, sinalizando a partilha desta preocupação e o desenvolvimento de esforços conjuntos de contenção de quaisquer efeitos de contágio, desestabilizadores internamente e na sua área partilhada de vizinhança, em particular a Ásia Central. Este tipo de iniciativas tem sido desenvolvido no quadro da Organização de Cooperação de Xangai [OCX] que será objeto de análise em seguida.

 

ORGANIZAÇÃO DE COOPERAÇÃO DE XANGAI: COOPERAÇÃO ESTRATÉGICA OU INSTRUMENTAL?

Criada em 1996 reunindo na altura cinco estados – Cazaquistão, China, Quirguistão, Rússia e Tajiquistão –, o Grupo dos Cinco de Xangai visava essencialmente responder aos múltiplos desafios fronteiriços na região, tendo mais tarde alargado a sua agenda a outras questões de natureza securitária, incluindo a ação antiterrorista.

Em junho de 2000, os cinco acordam quanto ao estabelecimento de um centro regional antiterrorismo, com sede em Bichkek, no Quirguistão. Será em 2001, que o Grupo se renomeia como OCX, integrando na altura o Uzbequistão também como membro. Os seus objetivos passam pela cooperação política com base na igualdade entre os membros, com vista a formar um bloco militar que possa assumir responsabilidades a nível regional. Este projeto, que tem sido liderado pela China, tem encontrado alguma resistência da parte da Rússia, que através da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) pretende consolidar a sua presença militar na área, de forma autónoma e onde possa exercer influência e controlo dos processos em curso.

Neste sentido, estes dois projetos de integração regional seguem caminhos diferenciados, eventualmente colidindo, dada a sobreposição de estados-membros nas duas organizações, e a ausência da China na OTSC11. De qualquer modo, a Rússia tem desenvolvido esforços no sentido de integrar algumas atividades das duas organizações, o que poderia contribuir para o aumento da sua influência na OCX enquanto fórum militar. Apesar do reconhecimento que a China faz da importância do desenvolvimento de atividades de cooperação entre ambas, e de já terem decorrido alguns exercícios nesta lógica cooperativa, as relações entre as duas não foram ainda formalizadas, sinalizando receios de que a Rússia possa de facto aumentar a sua influência no quadro destes organismos.

No âmbito da OCX, o primeiro exercício militar conjunto envolvendo todos os seus membros decorreu em 2007. A Peace Mission 2007 era centrada na ação antiterrorista e envolvia na sua totalidade cerca de sete mil elementos repartidos pelos vários estados. Uma missão que foi entendida, como outras, como limitada no número de efetivos envolvidos e consequentemente no verdadeiro alcance destes exercícios em termos dos objetivos ambiciosos que lhes estão subjacentes12. No entanto, e apesar dos limites identificados, tem sido sempre sublinhado que este e outros exercícios que os antecederam, bem como os que lhe sucederam, envolvendo todos os membros, ou apenas uma parte, ou mesmo decorrendo no quadro bilateral sino-russo, não visam países ou organizações terceiras e decorrem no quadro de cooperação da organização, com vista ao aprofundamento da interoperacionalidade das forças, de modo a dar resposta aos múltiplos desafios na região Ásia-Pacífico.

Assim, a OCX sugere uma política de cooperação no treino e capacidade das forças, enquanto simultaneamente revela os limites inerentes à própria relação Rússia-China. Por exemplo, em termos de armamento, apesar de a Rússia exportar quantidades significativas deste tipo de material para a China, não deixa de limitar a qualidade e especificidade do mesmo, de modo a evitar um aumento de capacidade militar ao seu rival. Apesar de a Rússia deter superioridade a nível militar, a China tem estado a investir fortemente neste setor, inclusive através de recursos humanos e técnicos próprios, o que constitui preocupação em Moscovo. Este exemplo simplificado revela como a competição inerente à própria organização assente na rivalidade entre a Rússia e a China em matérias específicas, é limitativa do seu potencial.

A OCX acaba por funcionar como um instrumento de contenção dupla: de contenção mútua entre a China e a Rússia, e de contenção do envolvimento dos Estados Unidos na área13. Revela ainda que a relação estratégica que ambos os estados desenvolvem está imbuída de desconfiança, limitando o alcance do próprio relacionamento bilateral e demonstra como este se assume em vários momentos como um «eixo de conveniência», funcionando de forma instrumental14 mais do que estrategicamente ponderada. A procura de apoios por parte da Rússia na OCX para o reconhecimento da Abcásia e Ossétia do Sul após a guerra na Geórgia de 2008, esbarrou com declarações políticas cordiais dos estados-membros, mas sem uma expressão favorável e objetiva de apoio. A preocupação demonstrada nas ações e nas implicações destas, em termos do reconhecimento de independência das duas repúblicas, em linha com a discussão relativa à integridade territorial dos estados, esteve na base das reticências chinesas. Na Rússia, a questão foi lida como a consagração de um statu quo já existente, mas não política e juridicamente reconhecido, reforçando a sua influência naquela área. No entanto, é interessante notar como a questão foi lida e tratada internamente na China, que apesar da sua reprovação em sede de política externa, a usou como exemplo concreto da crescente fricção Leste-Oeste, sublinhando a necessidade de reforço estratégico a leste, numa lógica de afirmação por contrapeso ao Ocidente15.

Em 2007, e numa lógica de expansão dos espaços de intervenção da organização a outras áreas consideradas relevantes para a segurança regional, foi fundado o chamado «Clube Energético». O objetivo é racionalizar recursos e otimizar todo o processo de acesso, transporte e fornecimento de energia, não só entre os membros permanentes, mas num quadro regional mais alargado16. É interessente notar que a nível energético as relações sino-russas têm-se expandido, embora ambas receiem demasiada dependência mútua, seja em termos de importações (China), seja de exportações (Rússia), sublinhando novamente a questão da desconfiança que atravessa este relacionamento. E ambas têm diversificado relações, assinando contratos bilaterais individuais com o Cazaquistão, por exemplo.

Embora numa leitura imediata possa parecer que a interdependência energética entre estes dois gigantes seja significativa, de facto os números são muito limitados. A Rússia é o quarto fornecedor, assegurando apenas oito por cento das importações chinesas destes recursos. E noutras áreas comerciais a mesma tendência se verifica17. «A Rússia representa apenas dois por cento do comércio externo chinês, com a relação comercial entre a China e os Estados Unidos a ser dez vezes maior, enquanto a China representa para a Rússia apenas seis por cento do seu mercado. O investimento russo na China é insignificante e o investimento chinês na Rússia é inferior a um bilião de dólares, enquanto as reservas de ouro russas no valor de 450 biliões de dólares são esmagadas pelas reservas chinesas num total de 1,9 triliões»18.

A superioridade económica chinesa e os problemas demográficos graves que a Rússia enfrenta, a par de uma economia monodependente, tornam esta relação assimétrica19. Os problemas que surgiram nas fronteiras leste da Rússia, entretanto objeto de negociações formais, são exemplo dos receios em Moscovo de que a China se assuma como um gigante asiático que venha a limitar a sua presença e influência numa área que considera estrategicamente fundamental. Os limites associados a esta parceria apontam para o cuidado de Moscovo em manter boas relações com Pequim, embora encontrar o equilíbrio certo entre interesses de curto prazo e considerações de longo prazo não seja fácil20.

 

CONCLUSÃO: UMA RELAÇÃO CRESCENTEMENTE ASSIMÉTRICA

As relações entre a Rússia, que se vem assumindo como um ator fundamental nos novos arranjos internacionais, e a China, que de forma mais moderada prossegue o mesmo percurso, estão num momento de viragem face aos desenvolvimentos a nível estrutural do sistema internacional.

As agendas dos grandes atores internacionais, claramente voltadas para a Ásia-Pacífico, reconhecem a crescente importância desta região e como esta viragem acarreta implicações no ordenamento global. Para a Rússia, o historial de relações de amizade com a China permite-lhe uma boa base de entendimento, à qual deve ser adicionada a partilha de um conjunto de princípios fundamentais que unem estes dois estados, incluindo a multipolaridade do sistema e as políticas de não-ingerência. Mas não sem limites, pois a rivalidade regional não é apenas aparente. Revela-se de forma objetiva nos contratos de vendas de armas, ou nas políticas energéticas em curso, bem como no próprio quadro multilateral que a OCX representa. A Rússia, nas suas políticas pragmáticas, prossegue ações assertivas de afirmação no sistema internacional, mas reconhece as suas principais debilidades neste processo, em particular dados os problemas demográficos que enfrenta e a sua grande dependência de um mercado volátil como o dos recursos energéticos.

Neste contexto, a proposta de criação de um Banco de Desenvolvimento no quadro dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), à qual a Cimeira de Durban, na África do Sul em março de 2013, conferiu os contornos em termos de objetivos gerais, surge como uma proposta fundamental para assegurar o posicionamento russo no sistema internacional, enquanto sugerindo limites e receios face ao crescendo que a China significa, inclusive comparativamente em relação aos outros BRICS. Aliás, uma das questões ainda em debate para que esta proposta possa tomar forma, prende-se com as contribuições de cada país, e em que medida devem estas ser iguais, ou proporcionais à sua dimensão económica. Uma questão essencialmente política, onde se questiona a possibilidade de conferir peso excessivo, e consequentemente poder excessivo, à China21.

Certo é que, independentemente dos resultados deste projeto, uma nova ordem internacional se afigura, com grande peso da Ásia-Pacífico, e onde as relações entre a Rússia e a China não deixarão de ser relevantes, não só pelos benefícios que ambas podem colher de um relacionamento de cooperação estratégica, como também face aos limites e contenção impostos neste mesmo quadro bilateral, e que constituem sinal da rivalidade latente entre estes dois gigantes. Rivalidade esta que assenta numa crescente assimetria entre os dois atores, em matéria política, económica e securitária.

 

Data de receção: 21 de março de 2013 | Data de aprovação: 20 de maio de 2013

 

NOTAS

1 Concept of the Foreign Policy of the Russian Federation, Approved by President of the Russian Federation V. Putin on 12 February 2013, The Ministry of Foreign Affairs of the Russian federation official site, 303-18-02-2013, n. 3 e título II, parágrafo 6.

2 Ibidem, título IV, parágrafo 79.

3 FREIRE, Maria Raquel, e MENDES, Carmen Amado – «Realpolitik dynamics and image construction in the Russia-China relationship: forging a strategic partnership?». In Journal of Current Chinese Affairs. N.º 2, 2009, pp. 27-52.         [ Links ]

4 Concept of the Foreign Policy of the Russian Federation, Approved by President of the Russian Federation V. Putin on 12 February 2013, The Ministry of Foreign Affairs of the Russian federation official site, 303-18-02-2013.

5PUTIN, Vladimir – «Executive order on measures to implement foreign policy», President of Russia official website, 7 de maio de 2012. Disponível em http://eng.kremlin.ru/acts/3764.

6 DE HAAS, Marcel – «Russia-China security cooperation». In Power and Interest News Report, 27 de novembro de 2006; Menon, Rajan – «The limits of Chinese-Russian partnership». In Survival. Vol. 51, N.º 3, 2009, pp. 110-112.         [ Links ]

7 Comunicação de Vasily Niorazde na conferência «Jornadas Rusia en el mundo», Universidad de Nebrija, Madrid, 7 de maio de 2013. Ver também Concept of the Foreign Policy of the Russian Federation, Approved by President of the Russian Federation V. Putin on 12 February 2013, The Ministry of Foreign Affairs of the Russian federation official site, 303-18-02-2013, título II, parágrafo 5.

8 KUPCHAN, Charles – «No dilemma between Europe and Asia for Washington strategists». In Global Times, 28 de março de 2013. Disponível em http://www.globaltimes.cn/content/771437.shtml#.UVXm9JPU-85

9GANG, Ding – «China must punish us for Taiwan arm sales with “financial weapon”». In People’s Daily Online, 8 de agosto de 2011, http://english.people.com.cn/90780/91342/7562776.html.

10 Para um desenvolvimento alargado desta questão cf. BERRYMAN, John – «Russia and China in Eurasia: the wary partnership». In FREIRE, Maria Raquel, e KANET, Roger (org.) – Key Players and Regional Dynamics in Eurasia: The Return of the ‘Great Game’. Basingstoke: Palgrave MacMillan, 2010;         [ Links ] MACHAFFIE, James – «China’s role in Central Asia: security implications for Russia and the United States». In Comparative Strategy. Vol. 29, N.º 4, 2010, pp. 368-380.         [ Links ]

11 Os membros da Organização de Cooperação de Xangai incluem o Cazaquistão, a China, o Quirguistão, a Rússia, o Tajiquistão e o Uzbequistão. A Organização do Tratado de Segurança Coletiva inclui como estados-membros a Arménia, a Bielorrússia, o Cazaquistão, o Quirguistão, a Rússia e o Tajiquistão.

12 Cf. BERRYMAN, John – «Russia and China in Eurasia: the wary partnership».

13 CF. FREIRE, Maria Raquel, e MENDES, Carmen Amado – «Realpolitik dynamics and image construction in the Russia-China relationship: forging a strategic partnership?».

14 LO, Bobo – Axis of Convenience: Moscow, Beijing, and the New Geopolitics. Washington: Brookings Institution Press, 2008, p. 3.         [ Links ]

15 Ver nesta matéria, TURNER, Susan, «China and Russia after the Russian-Georgianw». In Comparative Strategy. Vol. 30, N.º 1, 2011, pp. 50-59.         [ Links ]

16 MOISEYEV, Leonid, entrevista ao China 21st Century Magazine, 23 de setembro de 2007. Disponível em: http://www.sectsco.org/html/01761.html.

17 Federal State Statistics Service, Russian Federation, e Ministry of Commerce of the People’s Republic of China.

18 Cf. BERRYMAN, John – «Russia and China in Eurasia: the wary partnership».

19 Cf. CHENG, Joseph Y. S. – «The Shanghai Cooperation Organisation: China’s initiative in regional institutional building». In Journal of Contemporary Asia. Vol. 41, N.º 4, 2011, pp. 632-656.         [ Links ]

20 RUMER, Eugene B. – Russian Foreign Policy beyond Putin. Adelphi Paper 390. Londres: Routledge for the International Institute for Strategic Studies, 2007, p. 42;         [ Links ] BERRYMAN, John – «Russia and China in Eurasia: the wary partnership».

21 A economia chinesa é vinte vezes maior do que a da África do Sul e cerca de quatro vezes maior do que a da Rússia ou a da Índia. Cf. «Watch out, World Bank: here Comes the brics Bank». In Reuters¸ 27 de março de 2013. Disponível em http://www.cnbc.com/id/100596232.