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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.38 Lisboa jun. 2013

 

O reposicionamento da China: geoeconomia, geopolítica e estratégia1

China’s repositioning: geoeconomics, geopolitics and strategy

 

José Félix Ribeiro

Economista. Doutorado em Relações Internacionais pela FCSH–UNL (2012) e licenciado em Economia pelo ISCEF (1971). Investigador do IPRI–UNL. Apo­sentado do Departamento de Prospetiva e Planeamento e Relações Internacionais do Ministério do Ambiente e Ordenamento do Território de que foi subdiretor-geral entre 1995 e 2006, e onde coordenou a área de informação internacional até 2009. Responsável, até 2011, da área de prospetiva nos Cursos de Dirigentes da Administração Pública no Instituto Nacional de Administração. Colaborador regular do Instituto da Defesa Nacional. Tem obra publicada sobre economia internacional, geopolítica e prospetiva.

 

RESUMO

O artigo começa por apresentar os fatores que facilitaram a centralidade dos Estados Unidos durante a Guerra Fria e a influência da globalização nesses fatores, destacando o papel-chave das relações económicas, financeiras e estratégicas dos Estados Unidos com a Ásia-Pacífico entendidas como a base da globalização. Tendo em conta a crise financeira internacional de 2008, que precipitou um ajustamento naquela relação, analisam-se os fatores internos da China que podem favorecer a atuação chinesa naquela área e, por fim, os objetivos intermédios e operacionais caso a China queira no futuro disputar com os Estados Unidos o papel de «Império do Meio».

Palavras-chave: China, Estados Unidos, Ásia-Pacífico, globalização

 

ABSTRACT

The present paper begins by presenting the factors that facilitated the centrality of the United States during the Cold war and the influence of globalization on those factors, with an emphasis on the key role of the economic, financial and strategic relations between the US and the Asia-Pacific as the basis of globalization. In the light of the 2008 international financial crisis, the paper carries out an analysis of the internal factors that might favour China’s action in that area and, lastly, the intermediate and operational goals should China wish, in the future, to challenge the US’ role as the “Middle Empire”.

Keywords: China, United States, Asia-Pacific, Globalization

 

RECORDANDO A GUERRA FRIA E AS BASES DA CENTRALIDADE DOS ESTADOS UNIDOS NA ECONOMIA E GEOPOLÍTICA MUNDIAIS

No período 1949-1991, ou seja, durante a Guerra Fria, os Estados Unidos asseguraram uma centralidade na economia e geopolítica mundiais assentes numa tripla competição que conseguiram vencer. Em primeiro lugar, a rivalidade estratégica, que opunha no essencial os Estados Unidos e a URSS e forçava os Estados Unidos a desenvolver as tecnologias e a fazer evoluir os arsenais que assegurassem a dissuasão nuclear; a manter um dispendioso dispositivo de forças avançadas na Europa, face a uma superioridade numérica convencional soviética e a dispor de uma Marinha capaz de assegurar o controlo das linhas de comunicação marítimas de acesso aos recursos energéticos centrais, à Europa Ocidental e ao Noroeste do Pacífico; na Ásia-Pacífico os Estados Unidos, pelas responsabilidades assumidas na defesa do Japão, da Coreia do Sul e de Taiwan, mantinham uma vigilância apertada sobre a República Popular da China.

Em segundo lugar, a competição geopolítica, que no essencial opunha os Estados Unidos e a URSS na disputa pelo controlo dos recursos energéticos centrais (golfo Pérsico/Médio Oriente), que no caso dos Estados Unidos envolvia igualmente o compromisso com a segurança do Estado de Israel; esta competição alargava-se ao controlo de estados situados na proximidade de pontos-chave das linhas de comunicação marítimas atrás referidas.

E, por fim, a competição geoeconómica, que no essencial opunha os Estados Unidos e as potências derrotadas na II Guerra Mundial (Alemanha e Japão) ou por ela enfraquecidas, como a França; esta competição organizou-se em torno da configuração do sistema monetário internacional e nomeadamente em torno do papel do dólar nesse sistema; bem como da competição tecnológica pelos novos setores de elevado potencial de crescimento.

Neste período podia-se falar de um sistema internacional bipolar em que os conflitos regionais, embora podendo ter autonomia para se desencadear, estavam sob um controlo competitivo das duas superpotências no seu desenvolvimento. E a posição dos Estados Unidos nesse sistema bipolar apresentava três características-chave por vezes pouco destacadas:

• a potência rival dos Estados Unidos a nível estratégico e geopolítico não era um competidor económico dos Estados Unidos dada a sua opção pela autarcia e estatização completa da economia;

• as duas potências derrotadas na II Guerra Mundial – Japão e Alemanha – que com a sua rápida reconstrução económica poderiam ameaçar a liderança tecnológica dos Estados Unidos eram «economias indefesas», dependentes dos Estados Unidos para a sua segurança face à URSS (e no caso do Japão também face à China);

• o Estado decisivo na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) e, por esse meio, na oferta mundial de petróleo – a Arábia Saudita – era também uma «economia indefesa» perante países do golfo Pérsico, como o Irão e o Iraque, ou perante aliados (por um tempo) da URSS como o Egito.

Os Estados Unidos tinham a sua centralidade reforçada por uma característica-chave em termos geopolíticos: transformaram espaços de conflito potencial em zonas neutralizadas, ao terem como aliados ou parceiros privilegiados nesses espaços estados que haviam sido adversários ou inimigos no seio de sistemas regionais de segurança anteriores, e que agora viam na aliança bilateral com os Estados Unidos a sua maior garantia de segurança. Tal foram os casos da Alemanha e França na Europa Ocidental; de Israel, Arábia Saudita e Irão no Médio Oriente/golfo Pérsico; e na Ásia-Pacífico o Japão e a Coreia do Sul.

O sistema bipolar teve, por sua vez, uma consequência-chave cujos impactos ainda hoje perduram: limitou a dois atores mundiais, Estados Unidos e URSS, a possibilidade de desenvolver e dispor dos mais avançados sistemas de armas e de construir dois complexos militares-industriais sujeitos a uma fortíssima competição não mercantil mas estratégica, o que fez desses complexos um acervo de inovações tecnológicas-chave.

Esta estrutura das relações internacionais que acabámos de descrever de forma sintética assegurava uma centralidade inquestionável aos Estados Unidos, e na prática impedia que tivesse êxito uma ofensiva contra a supremacia dos Estados Unidos no campo geoeconómico (como a França e a Alemanha tentaram pela sua aproximação no quadro da Comunidade Económica Europeia pós-1963).

 

A GLOBALIZAÇÃO E OS ESTADOS UNIDOS COMO «IMPÉRIO DO MEIO»

O processo de globalização que se inicia em 1979-1980 com a adoção do princípio da liberdade de circulação de capitais pelos Estados Unidos, Japão e Reino Unido e com as reformas económicas na República Popular da China (Estado que os Estados Unidos cooptaram ao longo da década de 1970 como parceiro para a Ásia face à URSS) veio permitir que os Estados Unidos, na década de 1980, conseguissem:

• vencer a Guerra Fria, contando com um programa maciço de rearmamento assente nas tecnologias mais avançadas que se conheciam na época;

• conter a inflação em limites razoáveis e contar com um dólar forte, tão forte que em 1985 as maiores economias do mundo decidiram de forma coordenada fazer baixar o seu câmbio;

• reduzir a carga fiscal sobre os cidadãos norte-americanos, centrando-se nas classes de maior rendimento e maior capacidade empresarial;

• proceder a um ajustamento estrutural da economia norte-americana levando à liquidação de uma parte da sua base industrial tradicional e transformando os Estados Unidos numa sociedade de serviços avançados e respetiva indústria de suporte assente no conhecimento e inovação.

A partir da década de 1980 os Estados Unidos transferiram para a Ásia a produção de parte crescente do cabaz de compras da população norte-americana, bem como o embaratecimento dos produtos que mais crescem no equipamento das famílias, os que estão associados às tecnologias da informação e comunicação. Esta transferência e as importações de petróleo constituíram a base dos seus crescentes défices comerciais.

Por sua vez assistiu-se à transferência de poupanças da Ásia e do golfo Pérsico para os Estados Unidos através da reciclagem de excedentes correntes por via da aquisição de ativos financeiros dos Estados Unidos, nomeadamente títulos do Tesouro. Este processo permitiu financiar parte significativa das despesas com a Defesa realizadas pelos Estados Unidos, como se se tratasse de um tributo pago pelo duplo serviço estratégico que prestavam. Por um lado, ao manter um clima de paz entre potências e estados da Ásia com forte potencial de rivalidade – Japão, China, Coreia do Sul, Índia e Paquistão – graças à sua presença militar dominante no Pacifico e no Índico. Por outro lado, ao manter o acesso de todos os estados da Ásia aos recursos energéticos do golfo Pérsico/ /Médio Oriente, graças à sua hegemonia na região, que tem impedido a afirmação de uma potência regional dominante e o controlo das extensas linhas de comunicação marítima que separam a Ásia-Pacífico do golfo Pérsico/Médio Oriente.

Assim, e até 2009, a posição dos Estados Unidos na economia, geopolítica e estratégia mundiais manteve-se inquestionável, no topo, graças à interação positiva de um conjunto de processos uma vez que os Estados Unidos:

• conservaram a superioridade tecnológica na área militar que lhes permite assegurar o controlo dos «fluidos estratégicos», oceanos, espaço aéreo e espaço exterior e revolucionaram a «arte da guerra» terrestre;

• mantiveram o único dispositivo militar que permite assegurar uma superioridade estratégica nos oceanos Pacífico e Índico, bem como no golfo Pérsico, organizando o enquadramento marítimo da Ásia Pacífico e o seu acesso seguro a uma base crucial de abastecimento energético;

• puderam contar como competidores económicos e fontes de abastecimento energético, aliados que dependiam deles para sua segurança e defesa, embora tenham tido dificuldades em travar ambições de autonomia de alguns desses aliados;

• organizaram a partir da década de 1980 uma circulação de bens, serviços e capitais no Pacífico que lhes permitiu financiar grande parte das despesas da Defesa com base no financiamento externo da Ásia-Pacífico e do golfo Pérsico e incluindo nessa circulação – por cooptação – a China;

• continuaram a emitir a moeda internacional dominante – o dólar – e dispunham de um mercado de capitais sem paralelo, resultante do seu próprio modelo de capitalismo;

• dispunham de um sistema financeiro e empresarial e de uma intervenção coordenadora, mas subsidiária, do Estado que favorecia a inovação;

• mantiveram a liderança em tecnologias da informação e comunicação, tecnologias da defesa, da energia fóssil, da saúde e indústrias de entretenimento;

• consolidaram um modelo social em que uma larga camada da população poupa para sistemas em capitalização e investe em ativos com potencial de valorização em períodos longos;

• conseguiram, pelo seu modelo social interno e pelo parcial financiamento externo das suas despesas com Defesa, reduzir o dilema warfare vs welfare, que tem dilacerado outras potências.

 

AS TRANSFORMAÇÕES EM CURSO: A CHINA EM BUSCA DE UM DESTINO

A crise financeira de 2008-2009, e a resposta que lhe foi dada pela nova Administração norte-americana a partir de 2009, tem contribuído para introduzir dinâmicas que ameaçam a continuação dos processos atrás referidos e a sua interação positiva. Assim, a crise torna mais dependentes da China – em termos geoeconómicos – os aliados dos Estados Unidos na Ásia-Pacífico, à medida que o mercado chinês se torna mais importante em termos quantitativos do que o mercado dos Estados Unidos para estas economias (sem esquecer que o mercado dos Estados Unidos terá sempre a função-chave na inovação).

Simultaneamente a crise vai aumentar os incentivos para que os estados da Ásia-Pacífico «dispensem» o dólar nas suas relações bilaterais, podendo abrir caminho a formas mais avançadas de cooperação monetária multilateral desses estados, do mesmo modo que está a forçar a redução das despesa com a Defesa e o Espaço, por parte dos Estados Unidos, e a obrigar a uma reconfiguração do seu dispositivo militar. No mesmo sentido, a crise pode ainda retirar liberdade de ação aos Estados Unidos na eventualidade de uma crise no golfo Pérsico/Médio Oriente, devido ao receio de uma «explosão» nos preços do petróleo.

O novo milénio está, pois, a marcar uma mudança qualitativa no sistema internacional e, a prazo, na posição nele ocupada pelos Estados Unidos. Sem dúvida que essa mudança está estreitamente associada à emergência da China.

Ao contrário do Japão e da Alemanha, que no pós-II Guerra Mundial competiam economicamente com os Estados Unidos, mas que estavam dependentes da proteção norte-americana face à URSS, a China apresenta hoje um padrão de complementaridade económica fortíssimo com os Estados Unidos, porém, está envolvida num processo de obtenção de uma muito maior autonomia estratégica, assente no desenvolvimento de um complexo militar industrial de grande dimensão a nível mundial e com o qual a China pretende gerir os pontos fortes e fracos das suas características geoestratégicas por forma a adquirir uma muito maior capacidade para dissuadir os Estados Unidos de se oporem a objetivos que o regime chinês considere cruciais (como por exemplo a reunificação com Taiwan) e para afirmar uma clara superioridade no longo prazo face à potência asiática rival (a Índia).

Ao contrário da URSS, a China pode criar as condições de crescimento económico assente na extroversão que lhe permite acumular capital na constituição de um aparelho de defesa e num complexo militar industrial modernizados, sem pôr em causa a sua viabilidade económica.

De modo a detalhar, do ponto de vista estratégico e geoeconómico características distintivas da China, que evidenciam até que ponto a China é uma entidade completamente distinta da URSS, salientamos sete dessas características. Em primeiro lugar, a China, dispondo de uma grande massa territorial, não tem no entanto que temer qualquer invasão terrestre por parte dos seus vizinhos com maior potencial militar, ou seja, a Rússia (cujo núcleo central está separado da China por um vastíssimo espaço, pouco povoado e de difícil acessibilidade, na Sibéria Oriental e no Extremo Oriente) e a Índia (separada da China por cordilheiras montanhosas das mais elevadas do planeta; podendo, contudo, correr sérios riscos de fragmentação interna envolvendo territórios que hoje controla, como Xinjiang e Tibete, e que são de grande valor por razões militares – ligadas ao seu arsenal nuclear e dispositivo de dissuasão – e económicas – recursos energéticos e hídricos).

Em segundo lugar, a China tem o seu território vulnerável a ataques nucleares por parte de três potências – os Estados Unidos, a Rússia e a Índia; mas como não tem de recear invasões terrestres por parte dos seus vizinhos continentais nem pelos Estados Unidos está na posição estratégica favorável de não ter de pensar nas armas nucleares para resolver guerras convencionais travadas para defender a sua integridade territorial, mas apenas para dissuadir potenciais adversários continentais de a atacar nuclearmente2. Em terceiro lugar, a China, na defesa da sua integridade territorial – se esta estiver ameaçada nas regiões periféricas do seu território e de influência islâmica ou budista (Xinjiang e Tibete) – pode ser levada a intervir militarmente na massa continental que a rodeia para controlar focos de radicalismo islâmico no Afeganistão e na Ásia Central, ou pode intervir nessa massa continental para impedir uma desintegração ou desagregação territorial do seu principal aliado na região – o Paquistão – ou para condicionar as opções da Índia, forçando-a a concentrar o seu potencial militar na fronteira continental, em vez de desenvolver o seu potencial marítimo.

Em quarto lugar, a China possui um conjunto de regiões costeiras excecionalmente bem colocadas no acesso ao oceano Pacífico, o que, constituindo um ativo geoeconómico precioso, lhe coloca desafios estratégicos, dado que a sua emergência enquanto potência mundial ocorre quando o espaço marítimo do Pacífico está organizado em torno da presença naval e aérea dos Estados Unidos que contam com aliados marítimos como a Coreia do Sul e o Japão, e funcionam como protetor de um território que o regime em Pequim considera inegociável como parte da China – Taiwan.

Em quinto lugar, a China, dispondo de uma tão grande massa territorial, não é no entanto uma economia continental autossuficiente em bens primários, como sejam alimentos, minérios e recursos energéticos como o foram os Estados Unidos ou a urss em idênticos períodos de arranque para a industrialização. A China depende, de forma crescente, de importações cujas fontes de abastecimento nalguns casos se situam na sua proximidade asiática (casos da Austrália, da Indonésia ou da Malásia) enquanto em muitos outros estão separadas da China por extensas linhas de comunicação marítimas patrulhadas pelos Estados Unidos (enquanto potência naval dominante) e estão pontuadas por choke points que a China não controla.

Em sexto lugar, a China, no atual período de declínio de poder da Rússia, encontra na Ásia Central um espaço de proteção adicional que lhe pode permitir maior independência energética sem estar dependente nem dos oceanos, nem da Rússia; mas para poder beneficiar deste espaço tem de assegurar que o Afeganistão não se transforma numa base de expansão de radicalismo islâmico, e pode mesmo aspirar a ser no futuro a potência que tutela a evolução deste Estado, também fulcral para manter a Índia separada da Ásia Central, ao contrário do que os Estados Unidos parecem pretender3.

Por fim, a China possui duas vias indiretas de alcançar, por via terrestre, o oceano Índico – passagem obrigatória nas suas extensas linhas de comunicação marítima com a Europa, o golfo Pérsico ou a África, linhas de comunicação nas quais se depara hoje com a presença naval dos Estados Unidos, e, no futuro, com a presença da sua rival asiática, a Índia. Por um lado, a China dispõe no seu território de regiões povoadas, mas muito excêntricas relativamente ao seu litoral e às bacias energéticas principais, como é o caso do Yunnan, regiões que fazem fronteira com o Sueste Asiático e que lhe permitem aceder por terra ao oceano Índico e dotar-se de bases navais no término desses acessos terrestres, se conseguir colocar sob controlo geopolítico estados dessa região como Myanmar. E, por outro lado, dispõe no seu território de uma extensa região, o Xinjiang, que lhe permite o acesso ao Paquistão e ao seu litoral, mais propriamente à província rebelde do Paquistão (o Baluchistão, situado na proximidade do golfo Pérsico na fronteira com o Irão e o Afeganistão).

A hipótese que se coloca neste artigo é que o Partido Comunista da China vai ter como objetivo de longo prazo recolocar a China como «Império do Meio», ou seja, rodeado de estados militarmente mais fracos que não a ameacem, que aceitem integrar as suas infraestruturas de transporte e energia em completa consonância com as necessidades da economia chinesa e com os imperativos da unidade geoeconómica da China e se disponham a financiar, a prazo, a economia chinesa adquirindo a sua dívida pública, em contrapartida do acesso garantido ao seu gigantesco mercado interno. Este objetivo vai encontrar três razões internas que o reforçarão.

A primeira razão prende-se com a dificuldade de curto/médio prazo em gerir as tensões entre fações no seio do Partido Comunista da China resultantes da mudança de modelo de desenvolvimento que vai dar aos militares o papel de árbitros e favorecer no curto prazo a fação «elitista» no Partido Comunista que parece dispor de uma presença muito mais forte no seio do topo das Forças Armadas. Depois, no curto/médio prazo a China defronta-se com dilemas no seu abastecimento energético que a podem levar à adoção de políticas mercantilistas para assegurar um abastecimento regular e em condições favoráveis de preço/condições de pagamento. Por fim, a terceira razão tem a ver com o impacto económico e social, a médio/longo prazo, da política do filho único como determinante da necessidade de a China receber «tributo» dos estados asiáticos vizinhos como único meio de manter a coesão social interna, a unidade geoeconómica e a ambição de construir um dispositivo de defesa e um complexo militar industrial que rivalize com os Estados Unidos – o «Império do Meio» que ela terá de derrubar.

Se for este o objetivo de longo prazo, a China prosseguirá sem hesitar três objetivos intermédios:

• retirar aos Estados Unidos a liderança na Ásia, o que significa atingir o cerne do poder norte-americano;

• impedir a Índia de se constituir como polo autónomo de atração na Ásia, possivelmente em alinhamento com os Estados Unidos;

• tornar-se potência imprescindível para a paz no golfo Pérsico entre persas (Irão) e árabes (nomeadamente a Arábia Saudita devido ao petróleo e gás natural) depois de ter deixado os Estados Unidos esgotar forças nesta região.

 

A CHINA: TRÊS VETORES DE UM PROGRAMA INTEGRADO PARA SE TRANSFORMAR NO «IMPÉRIO DO MEIO»

Vejamos que objetivos operacionais, em termos geoeconómicos, geopolíticos e estratégicos, a China poderá prosseguir para atingir os três objetivos intermédios que acabámos de referir como condicionando o seu objetivo de longo prazo de se constituir duradouramente como «Império do Meio».

A nível geoeconómico a China poderá criar uma Zona de Comércio Livre na Ásia Oriental, integrando as economias emergentes da região e o Japão e a Coreia do Sul, mas excluindo os Estados Unidos; e substituir gradualmente o dólar nas relações monetárias no interior dessa zona. Do mesmo modo poderá substituir o Japão pelas economias europeias – Alemanha, França, Suécia e Finlândia – e a Coreia do Sul – como fornecedores-chave de tecnologias na área civil – ou seja, construir as parcerias que mais rapidamente lhe permitam absorver essas tecnologias para aplicação no mercado interno, para posterior réplica nos mercados externos, concentrando o seu investimento de I&D endógeno nas tecnologias militares que julga serem decisivas no século XXI. A China poderá ainda consolidar-se como principal parceiro comercial dos países em desenvolvimento que sejam grandes exportadores de energia e minérios, substituindo o dólar pela sua própria moeda nas transações que envolvam matérias-primas e tornando-se seus fornecedores de bens incluindo equipamentos e tecnologias para os seus setores infraestruturais (transportes, energia, telecomunicações, construção de obras públicas e de cidades). Ainda a nível geoeconómico poderá forçar uma posição dominante na exploração offshore do mar da China Oriental e do mar da China Meridional, passando a dispor de uma base de abastecimento mais próxima dos seus centros consumidores.

A nível geopolítico poderemos desenhar quatro tendências. Desde logo, a China poderá impedir a independência de Taiwan e acelerar a sua integração na República Popular da China sem ter de travar uma guerra em torno desse objetivo; sendo que o controlo militar de Taiwan daria à China vantagens na competição naval com os Estados Unidos no Pacífico. Pode também manter o controlo sobre a evolução da Coreia do Norte, impedindo a todo o custo um desanuviamento bilateral Estados Unidos-Coreia do Norte (e Japão-Coreia do Norte), assim como reforçar a aliança com o Paquistão e aproximar-se da Arábia Saudita (o outro aliado do Paquistão) para poder exercer um controlo à distância sobre recursos naturais e infraestruturas de conetividade internacional do Afeganistão «separando» a Índia dos recursos energéticos e dos mercados da Ásia Central. Do mesmo modo que poderá impedir uma aproximação do Irão com a Índia e, ainda mais, com os Estados Unidos.

A nível estratégico os objetivos da China podem acentuar as tensões e a discórdia entre o Japão e a Coreia do Sul para impedir a formação e consolidação de uma aliança militar tripartida Estados Unidos-Japão-Coreia do Sul, em vez de duas alianças bilaterais Estados Unidos-Japão e Estados Unidos-Coreia do Sul. A China poderá consolidar um espaço protetor marítimo a partir do afastamento do dispositivo naval dos Estados Unidos do primeiro cordão de ilhas situadas no seu offshore, através da conjugação de meios navais, aéreos e de mísseis, tornando mais difícil a defesa de Taiwan pelos Estados Unidos e aumentando ao mesmo tempo a vulnerabilidade do Japão e da Coreia do Sul nas suas rotas de abastecimento marítimo. No mesmo sentido, poderá dissuadir os Estados Unidos de forjar uma aliança militar com a Índia que reforçaria ameaças sobre as suas linhas de comunicação marítima com o golfo Pérsico e o Índico (e Atlântico Sul). Ainda a nível estratégico, a China pode institucionalizar dois «protetorados» marítimos em Myanmar e no Paquistão/Baluchistão que lhe permitam dotar-se de bases navais no Índico, em estreita ligação com a sua nova base naval no extremo meridional do seu território.

As próximas décadas podem, pois, vir a assistir a uma atuação da República Popular da China bem diferente da que foi típica do período 1979-2009.

 

Data de receção: 15 de março de 2013 | Data de aprovação: 6 de maio de 2013

 

NOTAS

1 Este texto baseia-se na tese de doutoramento apresentada em 2012 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa com o tema «Os EUA, a Globalização e o “Mundo do Pacífico”, 1979-2009».

2 Ou, como o Livro Branco recente refere ataques convencionais a longa distância e com grande poder destrutivo.

3 A insistência norte-americana na concretização do gasoduto tapi – Turquemenistão/Afeganistão/Paquistão/ Índia.