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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.37 Lisboa mar. 2013

 

Estratega, diplomata, guerrilheiro. Cabral reexaminado

 

Aurora Almada e Santos

Licenciada e mestre em História pela FCSH–UNL, neste momento frequenta o doutoramento em História Contemporânea, estando a desenvolver um projeto de tese sobre «A Organização das Nações Unidas e a Questão Colonial Portuguesa (1960-1976)».

 

Julião Soares Sousa.

Amílcar Cabral (1924-1973). Vida e Morte de um Revolucionário Africano

Lisboa: Nova Vega, 2011, 570 páginas

 

Figura incontornável na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, a Amílcar Cabral é reconhecida a liderança do processo de emancipação política dos dois países. Atribuindo à força e personalidade de Amílcar Cabral o êxito da luta armada de libertação nacional da Guiné-Bissau, Julião Soares Sousa estudou a vida e a morte daquele que classifica como um revolucionário africano. Produto de uma tese de doutoramento, a obra apresenta-se como um estudo bem documentado e baseado num extenso repertório de fontes escritas, orais e audiovisuais. Pretendendo dar espaço à crítica histórica no estudo biográfico de Cabral, o autor vem demonstrar que o seu percurso pessoal e político estava até aqui repleto de episódios ainda não totalmente esclarecidos. Ao adotar o tempo de vida de Amílcar Cabral como âmbito cronológico, Julião Soares Sousa avança com conclusões fundamentadas que procuram responder a uma questão central: qual a estratégia seguida no lançamento e consolidação da rejeição das estruturas coloniais e na transformação radical da vida política, económica e social da Guiné-Bissau?

 

O PERCURSO PARA A LIDERANÇA

Filho de cabo-verdianos, Amílcar Cabral passou a sua primeira infância na Guiné-Bissau, onde nasceu em 1924. Traçando o percurso da sua formação e culminando na tomada da liderança do movimento de libertação da Guiné e Cabo Verde, a primeira parte da obra, composta por cinco capítulos, segue no essencial uma estrutura cronológica linear. Explorando as poucas fontes diretas disponíveis, Julião Soares Sousa consegue apresentar-nos no primeiro capítulo uma narrativa convincente sobre as origens de Cabral, a sua vivência na Guiné e em Cabo Verde e a sua socialização familiar e escolar. Discutindo as diferentes teses em torno de questões como a data do regresso definitivo a Cabo Verde, com qual dos progenitores partiu da Guiné, o período e o local de frequência do ensino primário ou o papel dos pais na sua formação, o autor revela um domínio bastante seguro do seu objeto de estudo, algo que os seguintes capítulos vêm depois confirmar.

Localizando no Mindelo o espaço onde decorreu a primeira consciencialização de Cabral, o autor entende que as suas primeiras manifestações de revolta estiveram longe de contemplar a construção de uma nação independente. Ao defender que inicialmente Cabral teria sido partidário da reforma do sistema colonial português, Soares Sousa acredita que foi em Portugal, para onde veio em 1945, que começou a descrer dessa hipótese. Aflorada no primeiro capítulo e desenvolvida com mais detalhe no segundo, a explicação do autor é a de que Cabral teria feito a sua aprendizagem política entre os movimentos portugueses de oposição ao Estado Novo. Os contactos com estudantes de outras colónias, a influência do movimento da negritude e o desencanto com o pouco acolhimento dado pela esquerda portuguesa à descolonização conduziriam, porém, a que gradualmente passasse a favorecer a autonomização e a defesa dos interesses africanos.

Já nessa época, em finais dos anos 1940, Julião Soares Sousa consegue descortinar em Cabral manifestações de um desejo de regressar a África para cumprir aquela que considerava ser a sua missão enquanto «intelectual comprometido»: a consciencialização e luta pela melhoria das condições de vida das populações da Guiné. Partindo para a colónia em 1952 como engenheiro agrónomo, envolveu-se então numa luta legal contra o regime colonial, que muito contribuiu para ativar o sentido de consciência entre a população da Guiné. Tendo abandonando a colónia em 1955, por motivos de saúde, o autor procura desmistificar as alegações que situam nessa etapa da vida de Cabral a sua participação na alegada fundação do mpla e do pai/paigc. Datando a constituição desses movimentos como posteriores a 1956, Julião Soares Sousa entende, como explica no terceiro capítulo, que até 1959 a participação de Cabral em organizações clandestinas se resumiu exclusivamente aos que chamavam para si a representação do conjunto das colónias portuguesas.

Tendo esses movimentos apostado no estabelecimento de organizações políticas ao nível dos territórios ultramarinos portugueses, Amílcar Cabral teria então participado na criação do pai/paigc em 1959, fixando-se em seguida na Guiné-Conakry. Coincidindo a constituição do movimento com a elaboração do projeto de unidade entre a Guiné e Cabo Verde, o autor analisa no capítulo quarto a ideia de federação entre as duas colónias no contexto das diferentes uniões concebidas em África. Ao abranger a conquista da liderança do movimento de libertação da Guiné e Cabo Verde, Julião Sousa conclui a primeira parte da obra com o estudo dos complexos obstáculos que Cabral teve de vencer em Conakry e no Senegal. Ricos em pormenores, estes capítulos, como de resto os restantes, têm no entanto escassas referências ao contexto internacional. Embora o autor tivesse defendido que Cabral era fruto de uma época controversa e em rápida evolução é com surpresa que notamos que não foram feitas referências significativas ao processo de descolonização das colónias britânicas e francesas. Fica por saber quais as influências e os ensinamentos colhidos por Cabral dos processos de luta desenvolvidos nesses territórios, designadamente na Argélia, onde a Frente de Libertação Nacional se distinguiu por uma intensa ação diplomática que acreditamos ter servido de modelo aos movimentos das colónias portuguesas.

 

O DESENVOLVIMENTO DA LUTA

Com uma estrutura mais densa, que combina uma dimensão cronológica com uma vertente mais temática, a segunda parte da obra, também composta por cinco capítulos, abarca a atuação de Cabral em território guineense até ao seu assassinato. Reunindo contributos que estavam dispersos, Soares Sousa afasta-se das narrativas como as de Oleg Ignátiev, autor de Amílcar Cabral: Filho de África. Narração Biográfica (1975), ou de Tomás Aquino com O Fazedor de Utopias. Uma Biografia de Amílcar Cabral (2007), que embora reconstruindo o percurso de vida de Cabral não aprofundam o suficiente a análise do seu pensamento. Soares Sousa distingue-se pelo maior detalhe no exame dos ensaios e escritos políticos de Cabral, complementando a contribuição que Patrick Chabal em Amilcar Cabral: Revolutionary Leadership and People’s War (1983) já tinha avançado.

No primeiro capítulo, dedicado à produção teórica de Cabral, é exposta a caracterização que fazia da dominação colonial portuguesa e o papel por ele atribuído à cultura no processo de libertação. Ao traçar o seu percurso em direção à etapa revolucionária, o segundo capítulo demonstra que, até 1963, a estratégia revolucionária adotada teve por base a legalidade internacional, com recurso às Nações Unidas para a luta contra a dominação portuguesa. Com a descrição que nos é apresentada do processo de mobilização para a passagem à ação direta, da prioridade concedida à politização das massas e da circunstância de ter sido lançada uma intensa campanha internacional para a obtenção de apoios, ficamos a saber que Cabral passaria, após concluir que as resoluções da organização eram insuficientes, a defender a legitimidade do uso da violência e o abandono dos métodos pacíficos.

Os progressos da guerrilha teriam, como revelado no capítulo seguinte sobre os problemas internos e externos da luta, colocado em evidência as fraquezas organizacionais e estruturais do paigc, ocorrendo desvios de orientação, abusos, lutas fratricidas e crises de liderança. Naquele que é um dos capítulos mais bem conseguidos da obra, Soares Sousa não tem dúvidas em afirmar que o paigc alcançou o controlo sobre uma parte significativa da Guiné, datando de 1965-1966 os primeiros sinais de um proto-governo nas áreas libertadas, com a criação de estruturas político-administrativas, judiciais, militares, económicas e socioculturais. É de lamentar contudo o facto de não terem sido incluídas na narrativa os aspetos táticos das ações de guerrilha. São poucas também as referências – com a exceção do projeto de Spínola e da criação de aldeias estratégicas – às operações militares desenvolvidas por Portugal para contrariar os avanços de Cabral, uma dimensão para a qual já existem alguns trabalhos em que o autor se poderia ter apoiado.

Objeto de maior atenção, o projeto para o período pós-independência, muito centrado na construção do socialismo na Guiné e em Cabo Verde, ocupa a primeira parte do quarto capítulo. Sem deixar de aludir à influência de Marx, o autor realça a influência que o contexto africano, onde várias experiências de construção nacional baseadas em conceitos doutrinários marxistas estavam em curso, teve na teorização social desenvolvida por Cabral. A relevância da luta político-diplomática na estratégia de Cabral, que abarca a segunda parte do capítulo, poderia em nossa opinião ter sido analisada à parte, dado ter ficado demonstrado que em alguns momentos condicionou as ações de guerrilha, que eram intensificadas em função de determinados objetivos internacionais. Ao estabelecer uma periodização para as proto-relações diplomáticas do paigc, Soares Sousa acaba por evidenciar o quão importante foram na tentativa de proclamação do Estado da Guiné, que era o objetivo que Cabral perseguia quando foi assassinado, em janeiro de 1973.

Da trama e das diversas e contraditórias versões sobre o assassinato, que são expostas com detalhe no último capítulo, Soares Sousa retira a conclusão – que segue no essencial as hipóteses de José Pedro Castanheira em Quem Mandou Matar Amílcar Cabral (1995) – de que os assassinos teriam sido dissidentes do paigc, negando que Portugal tivesse tido a oportunidade e as condições para cometer o crime.

Na sua substância, a obra de Julião acaba por ser mais do que um mero contributo, a somar aos demais existentes, sobre o estudo de uma personalidade tão complexa. Tal como a entendemos, é em grande medida uma narrativa sobre aqueles com os quais Amílcar Cabral se cruzou no seu percurso, permitindo-nos compreender melhor o processo que fez da independência da Guiné e de Cabo Verde um caso relativamente singular no contexto da descolonização portuguesa.