SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número37Capitalismo no Islão: a longa divergênciaEstratega, diplomata, guerrilheiro: Cabral reexaminado índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Relações Internacionais (R:I)

versión impresa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.37 Lisboa mar. 2013

 

A soma de todas as partes… ou as experiências nacionais europeias de finanças públicas no século XIX

 

Nuno Miguel Lima

Investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, e doutorando em História na mesma universidade, onde desenvolve tese sobre caminhos de ferro transfronteiriços na Península Ibérica. É autor de Os «Homens Bons» do Liberalismo. Os Maiores Contribuintes de Lisboa (1867-1893) (Banco de Portugal, 2009), e autor e coautor de artigos em revistas nacionais e internacionais com arbitragem científica. Tem participado ainda em projetos de investigação científica financiados por diversas entidades.

 

Pedro Lains e José Luís Cardoso (Eds.)

Paying for the Liberal State. The Rise of Public Finance in Nineteenth- -Century Europe

Nova York: Cambridge University Press 2010, 310 páginas

 

No final das Guerras Napoleónicas, a generalidade dos estados europeus enfrentava uma crescente dívida pública e carga fiscal resultante dos encargos das campanhas militares. Serviço da dívida e aparato militar constituíam, pois, as principais verbas da despesa pública. Após 1815 os estados viram-se na necessidade de definir estratégias de reforma dos sistemas fiscais e de equilíbrio das contas públicas para, por um lado, restaurar a sua legitimidade e credibilidade junto de contribuintes e credores e, por outro, poder assumir um crescente número de funções (políticas, económicas, sociais).

Paying for the Liberal State aborda este processo a partir da evolução das finanças públicas e, em particular, da modernização dos sistemas fiscais no contexto de uma economia em acelerada transformação e de um Estado mais interveniente. Nesse sentido, a obra organizada por José Luís Cardoso e Pedro Lains, investigadores coordenadores do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, propõe-se alcançar dois objetivos: esboçar a história da reconstrução dos regimes fiscal e financeiro; e procurar padrões nos processos pelos quais os estados europeus se financiaram para fazer face às novas e crescentes funções de governação. O volume guia-se pela aplicação da metodologia comparativa através de nove estudos de caso, a fim de traçar um padrão e uma súmula explicativa geral. A seleção dos casos abarca um universo expressivo de distintas realidades, do centro à periferia europeia, incluindo processos que beneficiaram de regras de gestão da tributação e das finanças públicas já estabilizadas no início do século XIX (Grã-Bretanha, Holanda, Suécia), outros que se revelaram fulcrais na constituição de novos estados-nação (Alemanha, Itália, Império Austro-Húngaro), ou países que só após conturbações revolucionárias encetaram a sua modernização (França, Espanha, Portugal). Estranhamente, apesar de serem os próprios organizadores a sugerir esta distribuição dos casos nacionais a estrutura da obra não aplicou a mesma sequência, nem fica claro a razão para a opção seguida. Em todo o caso, será a distribuição sugerida aquela que se empregará na próxima secção da recensão.

Em síntese, podem identificar-se três ideias principais: não existiu um modelo único europeu ou um modelo ideal para a modernização dos sistemas fiscais e das finanças públicas; o sucesso do processo dependeu do enquadramento institucional de cada país e, em particular, das opções políticas a que se subordinou; e, por último, a implementação destas políticas relaciona-se intimamente com a observância de regras de consenso político-social e de legitimidade e credibilidade da ação governativa. Em segundo plano, chama-se ainda a atenção para a relação entre os períodos de crescimento económico e a disponibilidade para reformar os sistemas fiscais. Ou seja, como o consenso é mais alargado em períodos de prosperidade e mais precário em tempos de crise.

 

A PRIMAZIA DO CONTEXTO NACIONAL

Habitualmente apontada como o modelo em matéria fiscal e de finanças públicas, a Grã-Bretanha (cap. 1, por Martin Daunton) enfrentava em 1815 os mesmos problemas da generalidade dos países europeus com duas particularidades herdadas do período anterior que seriam fulcrais no seu processo de modernização: o papel fiscalizador do Parlamento e um considerável grau de centralismo da legislação fiscal. O primeiro permitiu um maior controlo e transparência das contas públicas, garantindo que, até à I Guerra Mundial e face ao PIB, o nível de impostos e o peso da dívida fossem diminuídos e que o nível de despesa se mantivesse comportável. O segundo possibilitou a alteração da estrutura tributária, a partir da década de 1840, com uma crescente importância dos impostos diretos sobre os indiretos. Em conjunto, garantiram aos governos a legitimidade e credibilidade da sua atividade desde meados do século XIX.

No caso holandês (cap. 2, por Jan Luiten van Zanden e Arthur van Riel), e mesmo beneficiando de antecedentes favoráveis (uma economia vital capaz de aceitar níveis de tributação consideráveis; um sistema de finanças públicas centralizado; e um império colonial gerador de importantes receitas), a legitimidade parece apenas ter funcionado num limitado período de tempo (c. 1840-1870) em que a conjuntura económica de crescimento e a cooperação entre governos e Parlamento permitiram realizar reformas que reduziram a influência do Estado na esfera económica, reformularam o sistema fiscal abolindo impostos indiretos e liberalizando o comércio colonial, e reestruturaram a dívida pública, permitindo reduzir a despesa geral ao mesmo tempo que se canalizaram fundos para o investimento, nomeadamente em infraestruturas e educação. Porém, com a forte quebra das receitas coloniais e com a deflação e aumento da dívida pública geradas pela adoção do padrão ouro em 1875, a política de laissez-faire foi incapaz de responder à solicitação do eleitorado por uma maior intervenção, e de inverter a prevalência dos impostos indiretos no sistema fiscal até 1913.

No que respeita à Suécia (cap. 6, por Lennart Schön), a sua transição política processou-se nos primeiros anos do século XIX com a adoção de uma nova constituição e o reforço da ação do Parlamento. Tal permitiu que imediatamente após as Guerras Napoleónicas a Suécia pudesse consolidar as finanças públicas, ao ponto de em meados do século, receitas, despesa e dívida pública representassem cada uma cinco por cento do PIB, num período em que o crescimento deste foi modesto. A partir de então, uma conjuntura económica favorável levou à consolidação de uma economia de mercado (tanto no setor agrário como industrial) e abriu espaço a uma nova política de intervenção do Estado, nomeadamente no domínio das infraestruturas de transporte, financiada pelo recurso ao endividamento externo. Foi então possível realizar uma profunda reforma parlamentar, e empreender reformas fiscais que, no entanto, não tiveram o alcance necessário para se adaptarem à nova realidade económica. Só após um novo surto de crescimento resultante da Segunda Revolução Industrial, e já nos primeiros anos do século XX, a Suécia pôde adotar um novo sistema fiscal assente na progressividade do imposto sobre rendimentos.

Mark Spoerer (cap. 4) mostra como o processo de unificação alemão foi capaz de absorver realidades preexistentes tão díspares como a da Prússia, inspirada no modelo inglês, e Württemberg, enquanto exemplo dos estados do Sul influenciados pelo modelo francês. O limitado papel do Reich deixou aos estados-membros liberdade na gestão dos respetivos sistemas fiscais. Num contexto de crescimento e transformação da economia esta situação fomentou a competição fiscal entre os estados, levando em particular os estados do Sul a adaptar o seu sistema fiscal às atividades económicas emergentes fora do setor agrícola. Da parte da Prússia, esta beneficiou de importantes receitas provenientes de serviços públicos, em particular da operação ferroviária, o que lhe permitiu conter o aumento do peso da tributação. A competição estendeu-se às autoridades municipais, encarregues de importantes funções sociais (educação, fornecimento de água, gás e eletricidade, saneamento, apoios sociais). Por sua vez, o aumento da dívida, tanto a nível estadual como local, tinha um caráter reprodutivo por servir para investimento nestas atividades. Embora a competição pudesse fragilizar as finanças públicas, por limitar as receitas tributárias, ela permitiu que na véspera da I Guerra Mundial os impostos diretos fossem, tanto no caso da Prússia como de Württemberg, a principal fonte de receita.

Também no caso italiano (cap. 7, por Giovanni Federico) se cruzaram estratégias diferenciadas, neste caso entre a política expansionista fundada no aumento da dívida, seguida por Piemonte, e a política conservadora em matéria de tributação e despesa seguida pelos restantes estados. Com a unificação (1861), a posição dominante de Piemonte fez com que o seu modelo político, fiscal e económico fosse adotado pela nova unidade nacional. Porém, a política expansionista resultou em elevados défices, agravados pela guerra com a Áustria em 1866, o que afastou a Itália do mercado de capitais. A política restritiva que lhe sucedeu permitiu equilibrar os orçamentos, embora frequentemente deficitários, enquanto a dívida pública, ainda que crescendo, manteve níveis suportáveis, representando 71,5 por cento do PIB em 1913, fruto também de um crescimento económico assinalável. A fórmula de sustentabilidade das finanças públicas encontrada não correspondeu, contudo, a uma especialmente importante modernização do sistema fiscal, uma vez que a política fiscal era decidida por um Parlamento controlado por uma minoria de terratenentes, daí resultando que no período desde a unificação até 1913 a receita fiscal fosse principalmente proveniente de impostos indiretos e taxas alfandegárias, ao passo que os impostos sobre o rendimento diminuíram o seu peso no conjunto das receitas.

A experiência austro-húngara apresentada por Michael Pammer (cap. 5) mostra como a bem-sucedida centralização do sistema fiscal não dependeu de um sistema político integrador e unificador. Pelo contrário, o compromisso de 1867 deixou clara a existência de duas realidades nacionais distintas, situação para a qual muito contribuíram as tensões étnicas. O resultado foi uma estrutura das finanças públicas que manteve as características de Antigo Regime na despesa e traços de modernidade na receita fiscal. Assim, o aparato militar e o serviço da dívida absorviam o grosso da despesa pública, enquanto a receita era garantida em primeira instância por impostos diretos, seguidos por impostos sobre bens alimentares e taxas alfandegárias e, em terceiro lugar, por receitas provenientes de monopólios do Estado e empresas públicas.

Assoberbada por uma dívida pública significativa, decorrente das reparações de guerra a que estava obrigada, a evolução da França, no entender de Richard Bonney (cap. 3), foi condicionada por dois fatores que a marcaram durante o século XIX: uma fraca taxa de crescimento populacional; e, a longevidade e sobrerrepresentação parlamentar da oligarquia terratenente. A primeira terá limitado a capacidade de obtenção de receita tributária, ao contrário do que sucedera no Antigo Regime, enquanto a segunda terá facilitado a resistência à tributação direta (que penderia sobre essa mesma oligarquia) em troca da manutenção da supremacia dos impostos indiretos e da contração de dívida de longo prazo. Contudo, se estes fatores foram importantes para os resultados predominantemente deficitários, não é de todo minorável a constante instabilidade política revolucionária e a recorrente atitude beligerante no domínio externo, aliás sempre desfavorável à França.

As sucessivas mudanças de regime foram ainda mais determinantes no caso espanhol (cap. 8, por Francisco Comín), tendo-se prolongado, com breves intervalos, até ao final do terceiro quartel do século XIX. Não obstante, algumas reformas conseguiram sobreviver à agitação revolucionária, nomeadamente a reforma fiscal de 1845 que permitiu aumentar a receita, reduzir os défices orçamentais e dar crescente relevância aos impostos diretos. Contudo, o alcance da reforma foi limitado por um parlamento que protegeu os interesses terratenentes aí representados, transferindo o peso da tributação para os grupos sociais afastados da cidadania política, e por uma generalizada corrupção e evasão fiscal. Como tal, e face ao crescimento da despesa, o recurso à dívida foi inevitável, tornando-se o respetivo serviço uma significativa parcela dessa mesma despesa pública.

Em larga medida a situação portuguesa (cap. 9), descrita por José Luís Cardoso e Pedro Lains, assemelha-se à espanhola. Muito embora o regime liberal se tenha estabilizado em 1851, também Portugal enfrentou contínuos défices orçamentais, com a despesa a aumentar mais rapidamente que a receita. As reformas fiscais tiveram igualmente alcance reduzido, mantendo-se ao longo de todo o período as taxas alfandegárias como principal fonte de receita. Tal como em Espanha, a dívida tornou-se elemento fulcral da política financeira, sendo o seu aumento sustentado pela ideia de investimento na modernização do país, até ao ponto em que se tornou insustentável, como sucedeu em 1891. Esta conjugação de défices orçamentais e dívida crescente resultaram, no entender dos autores, da fraqueza do Estado e sua incapacidade em se modernizar, limitações essas que advinham da fraca legitimidade dos governos que o rotativismo da política portuguesa da segunda metade do século garantia.

 

REEQUACIONAR A QUESTÃO DE PARTIDA

A Introdução redigida por José Luís Cardoso e Pedro Lains é em si mesma também uma conclusão, não se limitando os editores a definir o quadro teórico da análise dos estudos de caso que lhe seguem. Desta forma, a Conclusão, a cargo de Larry Neal, oferece uma abordagem alternativa que permite repensar (reescrever?) a obra. Se a Introdução aponta à teoria da escolha pública, ainda que nalguns casos com uma vertente mais económica que política, a contribuição de Larry Neal recentra a questão a partir do trabalho de Harley H. Hinrichs, A General Theory of Tax Structure Change during Economic Development (1966). Ou seja, a passagem de estado tradicional a moderno far-se-ia pela transição fiscal. O que em boa verdade é matéria tratada nos vários estudos de caso nacionais. Porém, ao enfatizar a tendência econométrica, esta abordagem parece secundarizar a importância do enquadramento institucional e das opções políticas na formação do moderno Estado europeu, que o próprio Larry Neal faz questão de destacar. Questões que, como se verificou, dependiam fortemente do contexto nacional. O que por sua vez coloca em causa qualquer possibilidade de aplicação reprodutiva de um modelo ideal, nomeadamente o britânico assim entendido.