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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.37 Lisboa mar. 2013

 

Capitalismo no Islão – a longa divergência

 

Pedro Marcelo Curto1,

Licenciado em Economia pelo ISEG–UTL e pós-graduado em Relações Internacionais pelo ISCSP–UTL. Trabalhou como economista no setor privado até 2009 e entrou para a carreira diplomática em 2010.

 

Timur Kuran

The Long Divergence. How Islamic Law Held Back the Middle East

Princeton: Princeton University Press, 2011, 405 páginas

 

The Long Divergence procura encontrar em algumas especificidades do direito islâmico, vulgo chari’á2, a raiz para o declínio das condições de vida, produção de tecnologia e desenvolvimento institucional que afetou o Médio Oriente alargado, sobretudo após o final da Idade Média. Para tal, elabora um estudo das práticas comerciais, atitudes e mundividência vigentes no islão, que aponta para uma incompatibilidade progressiva, a partir do século xi, entre o sistema legal islâmico e a emergência dos elementos estruturantes do capitalismo comercial de modelo ocidental.

O autor, Timur Kuran, um economista e politólogo americano de origem turca, professor na Universidade de Duke, realiza uma incursão pelo coração das instituições islâmicas, apontando a sua resistência à mudança, em virtude de uma certa imunidade decorrente da legitimidade que beberam dos hadith (histórias sobre a vida do profeta Maomé), Ele-mesmo um mercador de sucesso. Este dado é utilizado pelo autor como fundamento para a estagnação progressiva do modelo da mudaraba, associação comercial islâmica de raiz familiar, face ao modelo mais dinâmico e flexível dos mercadores genoveses e venezianos, assente na commenda, que cobrava comissões e juros – proibidos pela chari’á.

Na realidade, as instituições medievais do Ocidente terão sofrido choques de vário tipo, que as enfraqueceram e conduziram à sua transformação e adaptação. Segundo Kuran, Max Weber apontava mesmo a falta do conceito de empresa com personalidade jurídica impessoal – corporation – no direito islâmico, como a razão principal para as cidades orientais se terem tornado obsoletas, prejudicando a sua administração e culminando na desorganização, na pobreza e na ignorância dos seus cidadãos. Esta relação de causa-efeito entre inexistência de empresas e atraso económico constituirá o leitmotiv da obra de Kuran. Por outro lado, em contraposição, não deixa de impressionar que, de acordo com Angus Maddison, no ano 1000, o Médio Oriente detinha uma quota-parte do pib mundial superior ao da Europa – dez por cento comparado com nove por cento. Contudo, por volta de 1700, o peso do Médio Oriente no pib mundial tinha afundado para somente dois por cento e o da Europa explodido para uns eloquentes 22 por cento.

Timur Kuran procura encontrar pistas para a explicação deste fenómeno, embora algumas das explicações mais comuns que ele avança pareçam insatisfatórias. Esta insuficiência deve-se talvez ao facto de o autor tentar capturar uma realidade demasiado complexa e diversa – o Médio Oriente alargado, abrangendo desde o Magrebe até ao longínquo Mashrek do golfo Pérsico e Iraque, incluindo de passagem o Irão e a Turquia, nas suas análises. A receita – a tese de um direito islâmico com falhas – talvez não assente de igual maneira a países tão distintos entre si, que registavam níveis de desenvolvimento dissemelhantes. Este é, a nosso ver, o principal ponto fraco da obra, pois o olhar do académico que tenta dar uma imagem quase familiar do mundo islâmico ou arábico-muçulmano, proveniente de um certo mito da colonização e aculturação, corre o risco de deslizar para um sincretismo superficial, já que a tessitura multifacetada onde se cruza a tradição cultural arábica, com os costumes locais de origens diversas e a interpretação religiosa muçulmana não se deixam descobrir se não por aquele arabista que teve a paciência necessária para aprender a cultura, a língua e a tradição, deixando-se impregnar lenta e longamente. Ainda assim, o autor revela um domínio elevado da temática e dá-nos a conhecer um estudo aturado de documentos históricos e fontes primárias, espraiando um leque de informações digno de nota, que tornam esta obra um instrumento útil para quem pretende ilustrar-se sobre a evolução histórica que resultou no atraso atual de uma larga fatia do mundo islâmico, com grandes diferenças e variações, permitimo-nos acrescentar. Veja-se, a este propósito, em contraponto com algumas generalizações da obra em apreço, a prosperidade que alcançaram, em diferentes momentos históricos, cidades islâmicas tão diversas como Alexandria, Alepo, Constantinopla, Omã, ou Teerão.

Então por que razão, indagamos nós, se acentuou de forma dramática este declínio económico e cultural do mundo islâmico? Porque perderam os muçulmanos a corrida da inovação, sobretudo após o estabelecimento da Casa dos Medicis, com as suas sucursais nas grandes cidades europeias, que se agravou depois com o comércio marítimo de longo curso dos portugueses na rota das Índias, e finalmente com a revolução industrial britânica?

Um dos argumentos avançados quando se debate este tema é o de que o espírito do islão é hostil ao comércio. Neste ponto em concreto, justiça seja feita a Timur Kuran, que repõe a verdade, enfrentamos a dificuldade de sabermos que as escrituras islâmicas são bastante elogiosas relativamente à atividade comercial, já sem mencionar que Maomé foi um mercador de sucesso. Uma segunda explicação, que o autor aponta, incide sobre a proibição da usura e da cobrança de juros – ribá – nos empréstimos. Então não condenam igualmente esta prática, na sua vertente abusiva, a Torah e a Bíblia? Aliás, como menciona Kuran, já no direito romano se proibia aplicação de juros superiores a oito por cento por serem contrários aos princípios de justiça e humanidade. Por fim, um terceiro argumento mais popular no mundo islâmico é o de que os muçulmanos foram vítimas do «Imperialismo Ocidental». Não sofreram – apetece perguntar – igualmente as populações cristãs do Oriente, e nas franjas da Europa balcânica, a opressão dos árabes, dos otomanos, dos persas e dos mamelucos? Começamos, pois, nesta linha de raciocínio, a chegar ao cerne da questão central: porque sucumbiu uma civilização em tempos tão poderosa ao Ocidente? Esta questão reveste-se da máxima importância, pois vemos nela a razão para o mundo islâmico se sentir, hoje em dia, inconsolável pela sua destituição, refugiando-se em práticas sectárias de integrismo intolerante que espalharam, aqui e acolá, o anátema, a excomunhão e a jihâd – a guerra santa –, ao passo que a tradição muçulmana era, na sua origem, prudente e respeitadora da diferença. O autor prefere não se aventurar por estes terrenos de índole mais sociopolítica.

Não há dúvida de que Kuran traça um diagnóstico duro do falhanço do mundo islâmico em desenvolver instituições sólidas, em canalizar as poupanças para um sistema bancário funcional, em explorar novas tecnologias, em estimular a iniciativa privada fora do sistema de clãs que permitisse desenvolver empresas. A este propósito, o autor cita o Arab Development Report de 2002, elaborado por uma comissão de académicos islâmicos, os quais designam o défice das liberdades e conhecimento, assim como a falta de competências humanas, como as causas fulcrais para o atraso no Médio Oriente. Ao passo que a vida comercial no Cairo não mudou muito desde o ano 1000, sujeita à rigidez de práticas ancestrais, como a chari’á no sistema de heranças, ao kanun nas decisões legais e administrativas e à lei costumeira de antanho em várias decisões judiciais, os ocidentais tiveram acesso a um direito comercial flexível, a bolsas de valores e a bancos comerciais.

De acordo com o autor, para os intelectuais islâmicos, os meados do século xviii foram tempos de humilhação e ansiedade. Os europeus viviam cada vez melhor e subjugavam os muçulmanos. Embora sem desenvolverem uma teoria sobre isso, pressentiam que a rigidez religiosa tinha algo a ver com este facto. Pior ainda, as minorias cristãs, hebraicas e arménias prosperavam no interior das suas comunidades, devido ao regime de exceção jurídica que alcançaram, aos laços comerciais com grandes cidades europeias e ao regime de quase protetorado consular de que beneficiavam (consubstanciado nas célebres capitulações e direitos extraterritoriais dos mercadores e dragomanos ocidentais, para obviar à justiça dos cádis3). Concentrados nos setores económicos tradicionais, operando sob a lei islâmica, os mercadores islâmicos do século xix ficaram de fora dos setores inovadores da banca, transportes, produção em massa e comércio em larga escala. A solução económica de raiz islâmica funcionou bem em partes do mundo com instituições comerciais de nível inferior (partes da África, Índia, Malásia e Indonésia), mas estava menos adaptada a territórios com instituições legais maduras e empresas comerciais eficientes, como acontecia na Europa.

Em resumo, Timur Kuran traça um quadro legal nada favorável ao desenvolvimento económico do mundo muçulmano, em virtude de um direito islâmico propenso a uma interpretação corânica severa e imutável, onde a apostasia – a contradição dos hadith do Profeta – era punida com a pena de morte. O tamanho e a longevidade de entidades económicas no Médio Oriente foram comprometidas, devido às leis que regiam as heranças, disseminando e fragmentando a propriedade, à falta de um sistema de contabilidade padronizado e flexível, à pessoalização das trocas comerciais e à escassez de empresas, à ausência de sociedades comerciais por quotas ou títulos de parti- cipação, às provisões e esquemas contratuais muito garantistas e, até, devido ao regulamento matrimonial e de dotes.

Em nossa opinião, há ainda a destacar a dificuldade sentida por muitos dos regimes de matriz islâmica em implementarem reformas institucionais completas, prevalecendo em muitos deles sistemas políticos que impediam a inovação, o debate e a experimentação. Poderá dizer-se que, historicamente, o islão também acolheu no seu seio a polifonia da ijtihâd (esforço de reflexão), tal como nos tempos do filósofo Ibn Rushd (Averróis de Córdoba, 1126-1198), que integrou tantos elementos berberes, judaicos e greco-romanos nas suas análises, fazendo dele o sábio mais avançado do seu tempo. No entanto, em algum momento, a corrente dos hanafitas4, que favorecia uma versão mais liberal, assente no debate racional e na interpretação do Corão, perdeu terreno e influência, embora subsista ainda com peso significativo na Turquia.

Hoje em dia, assistimos ao crescente domínio da esquematização wahhabita5, que exclui a complexidade interpretativa e o «contradiscurso», inculcando nos fiéis a ortodoxia da prática religiosa. Contudo, a ijmâ, consenso que cristaliza a tradição, sempre teve matizes enquanto fonte do direito muçulmano, consoante a escola jurídica do islão, o qual – vale a pena recordar – não tem uma autoridade religiosa única, ao contrário da religião católica. São os ulemás, teólogos ou sábios em leis, com elevado prestígio e poder em alguns países, especialmente no Irão e na Arábia Saudita, quem zela pelo respeito da doutrina religiosa do islão.

Num outro plano, há também a registar algumas reações contraproducentes do ponto de vista económico ao fenómeno do subdesenvolvimento, que contribuíram para perpetuar a pobreza e a ignorância de importantes franjas da população, tornando vastas regiões do mundo muçulmano permeáveis a ideologias autocentradas na preservação do integrismo religioso. Mais recentemente, no decurso do século xx, o mundo islâmico refugiou-se no protecionismo, ou num estatismo autoritário e conservador, contrário à disseminação de ideias e ao livre-pensamento, os quais, aliados a uma sociedade civil enfraquecida, frustrada e submissa, alimentaram a propagação do islamismo de raiz radical, como o salafismo, que reivindica o regresso ao islão original, na pureza dos costumes dos «Salaf» – os companheiros do profeta Maomé.

Nesta obra, o autor não se debruça sobre a atualidade no mundo islâmico, mas a verdade é que a realidade tornou-se mais complexa, após a experiência de Kemal Atatürk, na Turquia dos anos 1920. A Turquia beneficia agora de um sistema legal de modelo secular, que lhe proporciona um crescimento económico invejável. Em outros países do golfo Pérsico, existem empresas de grande dimensão, com investimentos avultados nos mercados financeiros do mundo ocidental, que contornaram a proibição do juro, com estratagemas imaginativos, como bem assinala o autor, permitindo capitalizações astronómicas, com base na solvabilidade que os petrodólares lhes proporcionam. Estes exemplos indicam que os países muçulmanos podem almejar um futuro melhor.

Contudo, a «longa divergência» não dá sinais de abrandar na maior parte do mundo islâmico e continua a moldar a evolução desta região do globo. O autor toca no cerne da problemática quando aponta que o Médio oriente tem um longo caminho a percorrer de recuperação e revitalização das suas instituições. Segundo a revista The Economist,o rendimento per capita é ainda apenas 28 por cento das médias europeia e americana. Uma população jovem e informada reclama, cada vez mais, nas ruas, a mudança, a liberdade e a justiça. Mais de metade das empresas do mundo islâmico afirma que o acesso limitado a eletricidade, telecomunicações e transportes é um problema grave para o seu negócio.

Timur Kuran talvez não seja formalmente um discípulo de Max Weber, mas ao longo do seu livro transparece a admiração pela ética protestante do trabalho e pela revolução científica ocidental. A malaise do mundo ocidental também mora aqui, diríamos nós, ao constatar as sequelas da crise económica (e de valores). No entanto, viver num mundo de liberdade e possibilidades, como o nosso, é algo que não tem preço. É seguramente algo que lança as raízes para o desenvolvimento económico de que a juventude do mundo árabico-muçulmano atual está sedenta.

 

NOTAS

1 As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a posição oficial das autoridades portuguesas.

2 Direito religioso muçulmano.

3 Juízes muçulmanos que julgam segundo a chari’á.

4 Uma das quatro escolas de jurisprudência do islão sunita.

5 Os wahhabitas apenas aceitam o Corão e a Sunna (tradições) do profeta Maomé, como princípios ideológicos e políticos.