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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.37 Lisboa mar. 2013

 

Memórias do Papa laico

 

Bernardo Futscher Pereira

Embaixador de Portugal na Irlanda. Publicou recentemente A Diplomacia de Salazar 1932-1949 (Dom Quixote, 2012).

 

Kofi Annan

Interventions: A Life in War and Peace

Londres: Allen Lane, 2012, 383 páginas

 

No auge do seu prestígio como secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan usufruiu do estatuto quase de um papa laico. Nos primeiros anos em que foi o rosto da organização, até ser sorvido pelo torvelinho da guerra contra o Iraque, gozou de prestígio, popularidade e autoridade moral sem igual nos anais das Nações Unidas. Só talvez Dag Hammarskjold, uma vítima da crise do Congo em 1961, alcançou semelhante estatura. O primeiro negro a exercer o cargo, e o primeiro oriundo da burocracia da onu, Kofi Annan parecia incarnar os altos ideais da Carta e disfrutava de uma simpatia universal.

O carisma pessoal contribuiu certamente para esse feito: com modos doces e charme africano, Kofi Annan transmitia, no exercício das suas altas funções, uma imagem de sobriedade, empatia e dignidade. Era firme sem parecer arrogante; claro mas não excessivo; e conseguia ser franco sem ofender ou alienar os interlocutores. As qualidades pessoais de pouco teriam servido, porém, se não estivessem ao serviço de uma visão política articulada com exemplar clareza e desassombro que combinava, em sábias doses, idealismo e realismo, a defesa da legalidade internacional com uma apreciação realista sobre a utilidade da força, a capacidade para trabalhar com todos os estados e o reconhecimento pragmático de que havia de prestar especial atenção aos maiores.

Kofi Annan acredita profundamente nas Nações Unidas, a que dedicou o melhor da sua vida e, quando esteve à frente da organização, cujas fraquezas e forças conhecia como ninguém, soube insuflar-lhe um novo idealismo e articular uma nova definição do seu papel no século xxi: uma organização com responsabilidades globais, ao serviço dos povos e não apenas dos governos, colocando no centro da sua atividade os direitos e as aspirações dos indivíduos. «We the peoples», diz a Carta, e não «We the governments», como não se cansa de sublinhar.

Não hesitou, também, em defender essa visão com coragem e realismo. Quando confrontado com grosseiras violações dos direitos humanos, apoiou o uso da força, chegando mesmo ao ponto, na crise do Kosovo, de sancionar a guerra contra a Sérvia conduzida pela nato sem a autorização do Conselho de Segurança. Na altura, o imperativo moral parecia claro. Mas o precedente ficou, para ser invocado, anos mais tarde, em circunstâncias bem menos consensuais, quando os Estados Unidos decidiram atacar o Iraque.

Essa crise, na qual Kofi Annan tomou partido contra Washington, marcou o final do seu mandato. Se não deixou o cargo de secretário-geral coberto de glória foi apenas por ter sido chamuscado pelo escândalo «Oil for Food», utilizado por certa imprensa americana como arma de arremesso para o castigar pelas posições antagónicas à Administração Bush nessa questão.

À distância, porém, o seu legado continua a parecer impressionante: na defesa dos direitos humanos, com a consagração jurídica do conceito da «responsabilidade por proteger» e a criação do Tribunal Criminal Internacional; na luta contra a pobreza e a doença, com a aprovação dos Objetivos do Milénio e o enorme impulso dado à luta contra a sida.

O seu papel como diplomata teve resultados mais mitigados. Annan interveio em diversas crises nacionais e internacionais que evoca neste livro, com diferentes graus de sucesso. Relata com evidente orgulho a sua mediação no Quénia, em 2008, já depois de ter deixado as Nações Unidas, que evitou uma guerra civil naquele país, que parecia iminente e inevitável. Noutras situações, o êxito foi efémero: em 1997, no início do seu mandato, deslocou-se a Bagdade e conseguiu um acordo com Saddam Hussein para o recomeço das inspeções no Iraque. Mas foi sol de pouca dura. Um ano depois, as inspeções foram de novo interrompidas. Noutros casos, ainda os seus esforços foram infrutíferos: o mais recente foi a tentativa frustrada de mediação que conduziu na Síria em 2012.

Portugal fica-lhe a dever pelo papel essencial que desempenhou na resolução da crise de Timor-Leste. Kofi Annan descreve os telefonemas diários para o Presidente indonésio, B. J. Habibie, nos dias a seguir ao referendo, quando a violência das milícias ditava a lei nas ruas de Díli, e a forma, ao mesmo tempo hábil e firme, como conseguiu extrair o consentimento para a intervenção australiana que pôs termo à crise.

Esse episódio parece ter influenciado a sua perceção do nosso país. Em anos posteriores, nomeou vários portugueses, todos eles com intervenções marcantes na crise de Timor-Leste, para cargos destacados na vida da onu: António Guterres, alto-comissário para os refugiados, António Monteiro, alto-comissário para as eleições na Costa do Marfim, Jorge Sampaio, enviado especial do secretário-geral para a tuberculose, cargo que depois acumulou com o de alto representante para a Aliança das Civilizações. Nunca Portugal esteve tão bem representado nas altas esferas da organização.

Essa dívida de gratidão foi reconhecida quando da visita oficial de Annan a Portugal, em outubro de 2005, altura em que o Presidente da República, Jorge Sampaio, o condecorou com o grande colar da Ordem da Liberdade. No discurso que pronunciou na ocasião, para além de agradecer a sua intervenção em Timor-Leste, Sampaio evocou «o sentido de independência e a coragem que sempre tem demonstrado; a vigorosa defesa dos direitos humanos; o empenho que colocou na promoção do estatuto da mulher e na igualdade de género; a prioridade que tem atribuído à luta contra a pobreza e a doença [...]; o decisivo impulso ao processo de reforma da organização».

Não eram meras palavras de circunstância. O tributo era inteiramente justo.

Estas memórias visam claramente defender e repor a sua reputação. Sem omitir os casos mais problemáticos – o fiasco da intervenção na Somália, o genocídio do Ruanda, as guerras nos Balcãs, o caso do Darfur, o descalabro da guerra do Iraque, os ataques de que foi objeto no final do seu segundo mandato, Kofi Annan procura, com isenção, relatar e explicar a sua ação, inserindo-a no quadro mais geral do papel da onu no sistema internacional, o que a motivou, e as inevitáveis limitações a que estava sujeita.

Após um primeiro capítulo em que descreve as suas origens no Gana – oriundo de uma família «cuja identidade era africana mas cujos ideais eram europeus» – o livro concentra-se nos anos em que exerceu altas responsabilidades políticas, primeiro como chefe do departamento de Peacekeeping Operations, entre 1993 e 1996, e em seguida como secretário-geral, entre 1997 e 2006. Foram anos de extraordinária atividade e protagonismo para as Nações Unidas, libertas do espartilho político e da atmosfera de confronto ideológico dos anos da Guerra Fria. As operações de manutenção de paz tiveram um enorme desenvolvimento, o protagonismo diplomático da organização na alta política internacional aumentou devido à revitalização do Conselho de Segurança e a sua intervenção numa nascente agenda global tornou-se decisiva.

Kofi Annan esteve quase sempre no centro destes acontecimentos e neles desempenhou amiúde papéis de grande relevo. Sem querer ser exaustivas, estas memórias procuram fazer um relato coerente desses anos. A narrativa gira em torno dos principais desafios que teve de enfrentar, culminando na grande tragédia do Médio Oriente, com a segunda intifada, o 11 de setembro, a guerra no Afeganistão, a guerra entre Israel e o Líbano, o assassinato de Hariri e a invasão do Iraque.

Um dos méritos do livro é estar escrito num estilo que evoca com nitidez a voz de Kofi Annan: um estilo económico mas incisivo, feito de palavras sóbrias, mas claras e precisas, animado por ocasionais flashes de humor. O tom muda, porém, nos últimos capítulos, dedicados ao Médio Oriente. Aqui torna-se amargo, sente-se uma intensa frustração, adivinha-se uma vontade de ajustar contas com a Administração Bush e faz-se um veredicto de implacável severidade sobre as consequências «calamitosas» da guerra contra o Iraque.

Livre de complexos colonialistas, Kofi Annan tem palavras duras para os africanos. Para Kofi Annan, se a África não correspondeu aos sonhos que nela depositou quando, na sua juventude, assistiu à independência do Gana, a culpa é dos seus líderes e dos seus sistemas de governo. Mas não perdeu a esperança. Cultor dos valores universalistas espelhados na Carta, acredita que acabarão por se impor também em África e orgulha-se de o ter lembrado, em diversas ocasiões, aos líderes africanos. Annan relata um discurso que fez no Zimbabué, em junho de 1997, defendendo a democracia em África e apelando não apenas à condenação verbal mas também ao «ostracismo e ao isolamento» dos líderes golpistas. «Outro que não você a dizer estas coisas teria sido linchado», disse-lhe na altura Salim Salim, o secretário-geral da oua. Mas a verdade é que a atitude de Annan pôs fim à época em que a responsabilidade por todos os males da África era sistematicamente assacada ao colonialismo.

Orgulha-se igualmente, e com inteira justiça, do papel que desempenhou na luta contra a sida, o exemplo mais marcante e bem-sucedido da sua capacidade para mobilizar, a favor de causas precisas, não apenas os estados mas também um vasto leque de atores da sociedade civil – as ong, grandes empresas multinacionais e importantes doadores, como Bill Gates. A criação do Fundo Global e a diminuição drástica do preço dos medicamentos – o custo dos antirretrovíricos baixou em poucos anos de 15 000 dólares para 150 dólares por ano, resultado da pressão moral exercida sobre a indústria farmacêutica – salvaram milhões de vidas.

Para estes êxitos, em muito contribuiu a sua preocupação em evitar a linguagem burocrática e obscura, enunciando os problemas com clareza e frontalidade e propondo soluções sistematizadas numa série de objetivos concretos. O relatório We the Peoples, The Role of the United Nations in the 21st century, publicado em março de 2000 é um exemplo marcante. Annan encomendou-o diretamente a dois dos seus principais colaboradores, os brilhantes académicos John Ruggie e Andrew Mack, instruindo-os para o redigirem sem consultarem os serviços e os estados-membros. Foi a partir desse relatório que foram formulados os Objetivos do Milénio, que constituem ainda hoje os principais parâmetros internacionais para a ajuda ao desenvolvimento.

Nos capítulos dedicados ao Médio Oriente, porém, é evidente a frustração. Os dilemas da ação diplomática e os riscos de intervir, jogando o seu prestígio, em conflitos intratáveis são aqui particularmente bem ilustrados. A coragem de se expor fica a seu crédito mas há sempre um preço a pagar quando o êxito não sorri.

No início, Annan averbou alguns sucessos: o principal terá sido o papel que desempenhou na retirada de Israel do Sul do Líbano em junho de 2000. Na altura, havia ainda esperança e uma verdadeira possibilidade de alcançar uma paz negociada entre Israel e os palestinianos e avançar no sentido da pacificação do Médio Oriente. Mas o fracasso da cimeira de Camp David, seguida pouco depois pela explosão da segunda intifada, e pela catástrofe do 11 de setembro, atiçou os piores demónios da região.

No caso do Processo de Paz do Médio Oriente, o preço foi essencialmente político: em troco do envolvimento das Nações Unidas no quarteto, o órgão responsável pelas negociações entre Israel e a olp, Kofi Annan tornou-se corresponsável por políticas que não resultaram e que estavam distantes das preferências da maioria dos membros das Nações Unidas. No caso da guerra contra o Iraque, a fatura, para além de política, foi pessoal. O seu menino de ouro, Sérgio Vieira de Melo, morreu em Bagdade, sepultado em destroços de cimento, o seu filho, Kojo Annan, viu-se envolvido no escândalo «Oil-for-Food» e o seu nome, até então impoluto, foi injustamente arrastado pela lama nos jornais.

Ao ler este livro, sente-se que Kofi Annan se orgulha do papel que desempenhou. Há mesmo, aqui e ali, notas de sobranceria. É compreensível. Nos seus melhores momentos, Kofi Annan conseguiu o feito raro de se emancipar da tutela dos estados-membros sem os alienar corporizando, na sua pessoa, todas as esperanças catalisadas pelas Nações Unidas, como um polo de justiça, cooperação e paz no mundo globalizado do século xxi. Dificilmente alguém poderia ter feito mais e melhor.