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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.37 Lisboa mar. 2013

 

A construção social da governança das relações internacionais

Entrevista com Emanuel Adler

 

Bruno Cardoso Reis

Licenciado e mestre em História pela Faculdade de Letras de Lisboa. Tem o mestrado em Historical Studies pela Universidade de Cambridge (2003). É doutor em Segurança Internacional (War Studies, King’s College) desde 2008. Em 2007 publicou Salazar e o Vaticano, que recebeu os prémios Vítor de Sá e Aristides de Sousa Mendes. É investigador no ICS–UL e investigador associado do King’s College. Tem assessorado diversos estudos no IDN.

 

Damos continuidade a esta série de entrevistas com figuras de relevo no campo das relações internacionais com uma conversa com Emanuel Adler, nascido no Uruguai, com licenciatura e mestrado em História e Relações Internacionais na Hebrew University de Jerusalém, e o doutoramento na Universidade da Califórnia-Berkley. Atualmente é professor de Relações Internacionais no Departamento de Ciência Política da Universidade de Toronto, onde é também Andrea and Charles Bronfman Chair of Israeli Studies. Foi uma das figuras pioneiras no desenvolvimento da abordagem construtivista no campo das relações internacionais. Desde 2007, até recentemente, foi coeditor da revista International Organization.

Entre os livros que publicou e editou destacamos: com Vincent Pouliot, International Practices (Cambridge: cup, 2011); com B. Crawford et al. (eds.) – The Convergence of Civilizations: Constructing a Mediterranean Region (Toronto: University of Toronto Press, 2006); Communitarian International Relations: The Epistemic Foundations of International Relations (Nova York: Routledge, 2005); com Michael Barnett (eds.) – Security Communities (Cambridge, cup, 1998); e The Power of Ideology: The Quest For Technological Autonomy in Argentina and Brazil (Berkeley, ca: University of California Press, 1987).

 

Bruno Cardoso Reis [BCR] > Qual é a especificidade das relações internacionais e qual o valor acrescentado que esta disciplina traz para as ciências sociais, em especial quando a comparamos com a história, o direito, ou com estudos mais orientados para o estudo de políticas públicas?

Emanuel Adler [EA] > Bom, as relações internacionais englobam também as disciplinas que mencionou, ou melhor, recebem delas algum contributo. Enquanto disciplina desenvolveu-se a partir de questões como a guerra e a paz num contexto definido politicamente pela ausência de uma autoridade central. Esta é, de resto, a diferença fundamental entre ciência política em geral e as relações internacionais em particular. Com este objeto de estudo em mente, as relações internacionais desenvolveram-se em direções variadas. Normalmente costumo ilustrar esta ideia para os meus estudantes desenhando uma margarida, uma flor cujo núcleo central se liga a várias pétalas que podem ser a economia, a política, a sociologia, a história. Claro que também existe a teoria das relações internacionais que está muito perto do núcleo, afetando todas as outras pétalas e direções que a disciplina toma.

BCR > É fácil encontrar esse núcleo?

EA> O núcleo é a política na ausência de uma autoridade central, que geralmente designamos de anarquia. Mas também nos remete para a ideia de governança (governance) que não se confunde com governo, porque não há nenhum governo mundial. Portanto, as relações internacionais, enquanto disciplina, respondem à questão de saber como, numa dada situação, certos atores se tornam parte de um sistema, de uma sociedade internacional, como criam regras, normas, práticas através das quais se relacionam entre si e lidam com questões tão diversas como a guerra, a prevenção de conflitos, o combate ao terrorismo, a economia política internacional, a crise económica, etc.

BCR > As relações internacionais são «governança sem governo» como sugeriu Rosenau? E de que forma?

EA> Exatamente, governança sem governo. E governança, enquanto conceito, tem sido usado – já o era antes de Rosenau, mas sobretudo depois dele – como um chapéu debaixo do qual se podem discutir várias temáticas que a revista académica de que tenho sido editor, a International Organization, tratou inicialmente de uma forma muito clássica: a história internacional, o direito internacional, a onu, o fmi, a omt, o estudo de instituições de uma forma mais ou menos descritiva. Depois da II Guerra Mundial, a teoria começou através de vários debates académicos a incorporar paradigmas que tinham até então sido desenvolvidos a partir de várias fontes: realista e idealista. Nós também somos estruturados por debates (e até os numeramos: o primeiro debate, o segundo debate, etc.). Hoje, atravessamos uma fase de não debate!

BCR > Porquê? Isso é bom ou mau?

EA> Anteriormente as coisas eram mais claras. Todos se referiam aos ismos: o realismo, o liberalismo ou idealismo. Depois veio o construtivismo e adicionou-se um terceiro ismo. Aliás erroneamente porque o construtivismo não é apenas mais um ismo, está num nível diferente, ao mesmo nível da teoria da escolha racional; mas é ainda assim, segundo muitos, um terceiro ismo. Por isso, durante algumas décadas o comportamento típico era erguer uma bandeira e confrontar as tradições opostas, sem se ouvirem e sem grande diálogo. Os realistas juntavam-se com outros realistas, os liberais com os liberais, e havia depois alguns debates que atravessavam estes paradigmas. O último grande debate foi entre racionalistas e construtivistas que estruturou a disciplina durante quinze anos ou mais. O que acontece agora, contudo, e eu assisto a isto na revista, é que há muito menos debate sobre os ismos em si. O que é ótimo, um verdadeiro progresso. As pessoas discutem menos a sua própria identidade: «eu sou isto ou aquilo». Raramente se referem a isso. Nos artigos que recebemos na International Organization a tendência é para olhar para as várias abordagens sobre um mesmo tema passando-as em revista, para depois, com essa base, desenvolver algo mais significativo…

BCR > Uma teoria intermédia?

EA> Sim, mas também há uma tendência para as pessoas simplesmente adotarem a postura corresponde ao que são na forma como abordam o problema. Apresenta-se um puzzle, um problema, e se fores um construtivista adotas uma metodologia de acordo com isso e se és realista adotas uma abordagem realista. Claro que agora há realistas construtivistas e liberais construtivistas. Mas a teoria é uma parte essencial do núcleo da disciplina porque nos ajuda a generalizar sobre as relações internacionais, e não fazer simplesmente uma história do período entre as primeira e segunda guerras mundiais. A teoria desenvolve conceitos sistemáticos e relacionais que nos permitem ver para além do dado mais imediato e conceptualizar certos assuntos, bem como a relação entre assuntos. É precisamente porque a teoria é tão central que se torna também o principal pomo da discórdia entre os vários académicos das relações internacionais. Mas é através destes debates que o progresso se torna possível.

BCR > Definir-se-ia como construtivista?

EA> Sim.

BCR > E qual a melhor forma de descrever essa abordagem? Qual pensa ser a principal contribuição do construtivismo para a disciplina?

EA> O construtivismo parte de uma ideia bastante evidente mas que só se tornou óbvia depois de ter sido exposta com maior clareza. E a ideia, muito derivada da teoria sociológica, é a de que no mundo social, por oposição ao mundo físico – e portanto também no mundo das relações internacionais –, os factos com que lidamos são factos sociais. E os factos sociais são reais e objetivos porque são construídos através de um processo de entendimento coletivo. Uma nota de 20 dólares é dinheiro porque todos concordamos que é dinheiro. Se toda a gente subitamente deixasse de concordar com este «facto», então ele deixaria de ser um facto dessa natureza, passaria a ser outro tipo de facto, e como tal um mero pedaço de papel. Podemos tirar várias ilações daqui para a área das relações internacionais, seja relativamente ao dinheiro, à guerra ou à paz, à resolução de conflitos, o que se quiser… Portanto, é uma forma diferente de olhar para a realidade, que surgiu – é uma história mais longa que vou naturalmente encurtar – para contrabalançar o positivismo nos estudos de segurança. Apesar de haver entre construtivistas um debate interno, a maioria são ou antipositivistas ou não positivistas. E mesmo que alguns deles estejam muito próximos do positivismo, o construtivismo integra o papel de epistemologias e metodologias pós-positivistas por uma razão muito simples: se estamos a olhar para o efeito de normas nas relações internacionais, as normas não afetam as relações internacionais da mesma forma que o faz o mundo material, daí a necessidade de as estudar de forma diferente. Temos de estudar as perceções coletivas, a intersubjetividade, as formas de socialização e comunicação – o que não pode ser feito apenas através de quantificação.

O construtivismo não tem nada contra os métodos quantitativos. Há construtivistas que fazem um excelente trabalho quantitativo. Mas a ideia-chave neste caso é que o mundo muda, não é simplesmente o que a mera observação baseada em modelos teóricos estanques nos transmite; e que a própria mudança também deve ser estudada com critérios que não podem apenas ser extrapolados de uma mera análise da estabilidade. Para alguém que estuda a identidade, por exemplo – o meu trabalho tem sido muito relacionado com o estudo das «comunidades de segurança» na sequência do que Karl Deutsch designava por sentimento de pertença coletiva ou we-feeling – a ideia de uma identidadecomumé muito importante e dificilmente pode ser abordada de uma forma quantitativa sem olhar à forma como certos dados positivos são construídos a partir das autoimagens dos atores, também elas construídas. Isto requer epistemologias baseadas em tradições filosóficas alternativas como o pragmatismo, isto é, filosofias da ciência que permitam integrar uma dimensão sociológica nas relações internacionais. Daí que o construtivismo tenha sido já descrito como uma abordagem sociológica das relações internacionais.

BCR > Como é que responde aos críticos do construtivismo, como os realistas, que argumentam que as normas não têm grande importância, que é o poder que realmente importa e que sem ter em conta a estrutura básica do sistema de poder internacional não se pode desenvolver uma teoria?…

EA> Respondo dizendo que estão errados (risos). O construtivismo – e esta é uma pergunta importante porque permite esclarecer muitos mal-entendidos sobre o construtivismo – é sobre o poder! Mas não apenas o poder material! As normas são uma forma de poder. Por exemplo, se um país é capaz de desenvolver normas e instituições que regem o mundo, como os Estados Unidos fizeram depois da II Guerra Mundial então isso é poder! Portanto, a decisão metodológica ou epistemológica não se pode pôr em termos de «ou normas ou poder». O poder não reside num míssil ou num tanque porque um estado pode deter dez mil mísseis e não conseguir obter absolutamente nada com eles. A questão-chave é a de saber porque é num dado momento que se decide lançar um míssil? Quais foram as causas dessa decisão e como foi construída? Como é que uma dada entidade se constitui em inimigo? O Reino Unido e a França possuem grandes arsenais nucleares e contudo é inconcebível um conflito entre ambos – eles são parte de uma mesma comunidade de segurança. Mas se o Irão desenvolver uma arma nuclear uma parte do mundo entra em paranoia! Portanto, isto tem que ver com poder, mas também tem que ver com legitimidade, o que faz da legitimidade uma forma de poder. E a falta de legitimidade é também uma deficiência de poder. Assistimos a formas de deslegitimação e relegitimação constantes.

Israel está neste momento a atravessar uma perda de legitimidade gradual. O que tem que ver com poder e nos faz repensar a forma como o abordamos – assim como a forma como abordamos questões de legitimidade, que não pode ser estudada num prisma simplesmente neorrealista sustentada nestas falsas dicotomias.

BCR > Pensa que as relações internacionais enquanto disciplina devem ser relevantes para as políticas públicas, isto é, devem poder prever e prescrever políticas? Ou devem limitar-se apenas à análise de fenómenos?

EA> A ciência, incluindo as ciências sociais, devem conseguir fazer previsões. Se adotar uma abordagem positivista mais tradicional do se A então B, e estiver a tentar prever o que ocorre a uma matéria quando aumenta a temperatura de outra, então o mesmo pode ser expectável de uma teoria das relações internacionais. O problema está em saber os fatores que conduzem a um resultado e no caso de fenómenos sociais as razões podem ser inúmeras e de vária ordem porque os factos são sociais. Ou seja, são factos por causa de uma compreensão e linguagem comuns e partilhados, e a sua factualidade deriva de profecias que ora se autoconcretizam ou se derrotam a si mesmas (são self-fullfiling muitas vezes e self-defeating outras vezes).

Se fizer uma previsão de que não gosta então irá com certeza tentar impedir que o facto previsto ocorra. E, de facto, através da análise, podemos influenciar os acontecimentos de tal forma que o evento previsto acaba por não ter lugar precisamente porque se antecipou.

Mas de um ponto de vista mais empírico a verdade é que nós temos sido muito maus no que diz respeito a previsões. Ninguém previu o fim da Guerra Fria, ninguém previu as revoluções recentes. Esta é uma limitação real porque estamos a lidar com sinergismos entre tantas variáveis e com tantas consequências não intencionais, que são tão difíceis de prever, que, num certo sentido, mesmo que estivéssemos munidos de um supercomputador capaz de prever inúmeros fenómenos, revelaria ainda assim um grau elevado de incerteza, precisamente porque estamos a lidar com seres humanos que podem, de um momento para o outro, mudar de ideias sem que qualquer esquema de causalidade possa explicar facilmente a razão de tal mudança. Claro que há muitos que se limitam a descrever o presente ou o passado e depois desenvolvem uma previsão: mas isso é um mero exercício de adivinha, é jornalismo. Precisamos sempre de uma teoria, só uma teoria permite desenhar uma previsão com seriedade.

BCR > E é assim que entende as relações internacionais como disciplina científica?

EA> Sim, a ciência define-se muito por este exercício de correção das teorias anteriores, através da crítica do trabalho de outros e da alteração das nossas próprias teorias segundo o que outros dizem delas, ou ainda comparando-as… Talvez possamos até calcular a precisão de uma previsão em termos percentuais – por exemplo há 50 ou 60 por cento de probabilidades de isto ou aquilo acontecer. Mas o mais importante é a compreensão de um fenómeno no seu todo e não apenas o conhecimento dos detalhes ou da probabilidade da sua repetição. E a compreensão é possível através da combinação entre teoria e investigação empírica, porque permite tornar claro o objeto. Há um debate vivo na disciplina entre «explicação» e «compreensão». E aqui não estou a tomar uma posição sobre as definições exatas destes termos como se eles fossem necessariamente antagónicos. Não estou a excluir à partida mecanismos causais como bons instrumentos de explicação; simplesmente, estes «mecanismos» não precisam de ser tomados como máquinas ou partes de um relógio; «mecanismos» podem ser aprendizagem social, socialização ou algo desse tipo.

BCR > Em termos de previsões, é tomado como uma das principais figuras do que frequentemente se designa por regionalismo no quadro das relações internacionais, de que é um exemplo particularmente influente a ideia de «comunidades de segurança» e a sua aplicação ao caso da integração europeia e mesmo ao caso do Mediterrâneo (o «Processo de Barcelona» entre a ue e parceiros a Sul). No que diz respeito à Europa, o seu enfoque é muito sobre o nascimento destas comunidades, o seu desenvolvimento e maturação, mas também se refere à possibilidade de degeneração ou regressão destas comunidades. Pensando agora na crise do euro, e mesmo no que se passa no Mediterrâneo, qual pensa ser o impacto da realidade sobre o que teorizou? Pensa que o modelo das comunidades de segurança se mantém válido tal como o desenhou? E como analisa a relação entre esta abordagem teórica e os principais eventos da Europa de hoje?

EA> O modelo parece-me continuar a ter validade. A questão prende-se com o ciclo específico de uma comunidade de segurança. Como referiu, as comunidades de segurança nascem, vivem e morrem. Desintegram-se – por várias razões. O cimento desvanece-se. Por razões de crise económica, de crise de interesses, de crise de ideias e normas, e todo o tipo de razões. Em termos mais práticos, não estou a prever nada de específico, não é algo que faça.

Mas não me parece que tudo o que vemos hoje em dia, com todas as crises a que assistimos – e digo crises no plural, com tudo o que a Europa está a atravessar, várias crises! – põe em causa a existência de uma comunidade de segurança. Porque uma comunidade de segurança não é apenas uma aliança – em que os países podem, por vezes, sair quando o querem. Os países que normalmente integram uma comunidade de segurança são, por definição, incapazes sequer de imaginar uma guerra no interior dessa comunidade. Não penso que o cenário de confronto violento entre países que são parte de uma mesma comunidade de segurança esteja no horizonte próximo da Europa. Não vejo ninguém na Europa ou, por exemplo, em França, a imaginar que haja uma guerra com a Alemanha, ou britânicos que pensem que vão defrontar a França.

BCR > Mas após a I Guerra Mundial também ninguém imaginava que algo assim voltaria a acontecer…

EA> Bom, a este respeito escrevi um artigo que tem a ver não apenas com comunidades de segurança, mas também com civilizações. Este trabalho faz parte de um projeto coletivo com Peter Katzenstein e ele pediu-me para escrever sobre a Europa1. Então decidi escrever sobre a Europa enquanto «comunidade de práticas», que é um novo conceito que tenho desenvolvido ao longo dos últimos dez anos e que significa que a Europa não é apenas uma comunidade de segurança no sentido em que há um we-feeling, isto é, um sentimento de pertença comum que previne a guerra, mas há também um fator de autodomínio. Isto é, há uma norma de autocontrolo interiorizada e generalizada, e o próprio conceito de comunidades de segurança nunca exclui a possibilidade de uma crise, pondo antes a tónica na forma diferente como se responde a uma crise no quadro de uma determinada comunidade. Há muitas crises entre o Canadá e os Estados Unidos – e os canadianos são canadianos na medida em que não são americanos, isto é, definem-se por oposição aos americanos; mas há entre ambos, apesar disso, uma comunidade de segurança! Por isso, neste novo projeto sobre civilizações, afirmo que depois das grandes guerras, do holocausto e do colonialismo, a Europa como um certo modelo de civilização entrou em colapso. E, como muitas civilizações no passado, poderia ter desaparecido – enquanto civilização, não enquanto conjunto de países. Mas decidiu reinventar-se e fê-lo enquanto poder normativo. É aqui que o conceito de comunidade de práticas demonstra a sua importância.

Quando falamos de poder normativo, muitos reagem de forma cética e acusam-nos de ser uma conversa vazia, apontando para as crises imediatas e para as dificuldades de entendimento entre países específicos… Mas quando olhamos para as práticas que a União Europeia desenvolveu – Schengen, a cidadania europeia, a política externa, políticas de segurança e o antiterrorismo – são políticas muito diferentes daquelas desenvolvidas nos Estados Unidos ou noutras partes do mundo. E, pelo menos até agora, não vejo estas práticas a mudarem. Pelo contrário, estão a crescer e a Europa é isto mesmo: o desenvolvimento de parcerias, o que não está de todo desligado do poder. Tem tudo a ver com poder. O poder está no centro. Há também uma vizinhança onde a Europa procura atuar e assim se vai formando uma espécie de império informal. A Europa portanto continua a ser uma civilização, mas com propósitos diferentes.

BCR > Talvez, mas a Europa é também mais do que isso que referiu, uma convergência de certos interesses, de certos países predominantes, e de instituições…

EA> Claro que também, mas a Europa é fundamentalmente pacífica porque é uma comunidade de segurança. Um dia, por causa de crises económicas, de desenvolvimentos internos, imigração, de outros fatores que nem são inimagináveis agora, um dia a França e a Alemanha poderão estar outra vez à beira da guerra e acabará a comunidade de segurança. Mas não vejo isso a acontecer já amanhã!

BCR > E, ainda neste quadro conceptual, o que pensa da crise no Mediterrâneo? Pensa que se poderá constituir como comunidade de segurança?

EA> Não. O diálogo euromediterrânico constitui uma grande iniciativa de construção da paz no flanco sul da Europa, no sentido de tentar resolver problemas de segurança que a Europa antevia relacionados com a proliferação nuclear, o terrorismo e ainda de uma perspetiva económica, relacionados com a necessidade de estabilizar o Norte de África. Portanto, a ideia era «construir uma região» a partir de práticas civilizacionais porque, como sabe, o Mediterrâneo é um mar, é água! Mentalizar as pessoas de que há uma região mediterrânica, que não é apenas um mar na margem do qual vários países se situam é mais difícil…

BCR > Mas também há um atlantismo…

EA> Sim, o facto de os encontros de Barcelona se terem dado em 1995 não foi uma coincidência. Era o período do processo de paz de Oslo e o conflito israelo-palestiniano sempre teve um efeito importante na estabilidade do Mediterrâneo Oriental como é óbvio. Infelizmente para muitos países mediterrânicos, e por muitas razões, o processo de paz desvaneceu-se e desde então não têm havido progressos. E mesmo a situação geopolítica mudou muito por causa de países como o Irão. Até a um passado muito recente, antes dos eventos no Egito, havia duas coligações: o Irão, o Hezbollah, a Síria, o Hamas de um lado, e do outro, os Estados Unidos, Israel, Arábia Saudita, o Egito e a Autoridade Palestiniana, talvez por causa da ameaça que para eles representava o Irão. Este arranjo pode mudar dependendo do que acontecerá no Egito, na Líbia e nos países do Golfo.

BCR > Do seu ponto de vista, quais serão os efeitos da chamada «primavera árabe»?

EA> Bom, já me fizeram essa pergunta muitas vezes e tento sempre ser muito rigoroso. Tento ser «inteligente» na resposta e normalmente respondo que, na verdade, «ninguém sabe»! Quem sabe o que acontecerá? Será que os Estados Unidos serão forçados a intervir ou a onu? O que acontecerá no Iémen? Será que o rastilho acabará por se estender à Arábia Saudita? O que é que o Irão anda a pensar? E o que vai na mente dos israelitas? Como é que vão reagir? Até porque tudo isto afeta muito a esfera interna de todos estes países. Pode afetar o Irão de forma imprevista. Pode transformar o Egito num segundo Irão. Ou, por outro lado, o Egito pode democratizar-se – sem que isso signifique necessariamente a instauração de uma democracia de tipo ocidental – mas ainda assim democrática o que terá um efeito na região, por causa da importância do Egito. O que se pode dizer é que este é um momento absolutamente histórico! Estas revoluções irão transformar o Médio Oriente, ainda não sabemos é como… A ligação entre conceptualização e o desenvolvimento concreto de políticas demonstra aqui todas as suas limitações. Devemos aconselhar os nossos decisores a reagir defensivamente quanto ao Egito? Ou a procurar envolver todos os atores no processo de pacificação do Médio Oriente? Talvez possamos ter alguma ideia de como gostaríamos que se orientassem as políticas externas destes países. Mas um forte elemento de incerteza é inultrapassável! Nunca podemos ter a certeza! Isto não é suscetível de conhecimento científico: não podemos adicionar a e b na expectativa de obtermos um resultado determinado e previsível.

BCR > Tem sido editor da International Organization – talvez a revista académica mais importante da disciplina – o que, parece-me, é quase uma missão impossível. Deve ser muito difícil selecionar entre tantos artigos de qualidade… Ainda assim gostaria que partilhasse algumas reflexões sobre os critérios de seleção de edição, e de um modo geral aspetos que possam ser úteis a jovens académicos que gostariam de publicar em revistas de qualidade. Mais concretamente, qual seria o seu conselho em termos dos erros mais comuns que costuma ver nos artigos que recebe para publicação? O que é que faz um bom artigo e o que é que faz um mau artigo?

EA> Devo dizer que é muito interessante editar uma revista como a International Organization sobretudo porque vemos de tudo. Já estou nesta disciplina há décadas e estes últimos anos abriram imenso o meu horizonte intelectual precisamente porque temos que ler muito material diferente. É muito difícil como referiu porque aceitamos apenas cinco-seis por cento dos manuscritos que recebemos e, portanto, a receção é muito crítica. Por vezes recebemos oito artigos num só dia! Estamos aqui na conferência anual da International Studies Association (isa) e os artigos continuam a chegar! Meu Deus! Tenho 20 a 30 papers para ler e à medida que o estou a fazer há outros a chegarem… Mas depois de quatro anos a editar, a equipa editorial começa a saber lidar com isto. Lembro-me que no início deitávamos as mãos à cabeça e entrávamos em pânico, mas depois sentimo-nos muito em casa a fazer aquilo que fazemos. No respeitante aos conselhos que posso dar a investigadores mais jovens, há de facto erros que são comuns e vulgares. Um deles é que muitos investigadores que vêm a uma conferência como a da isa, logo após apresentarem o seu paper, enviam-no imediatamente para a International Organization … Porquê?!... Se é sabido que a International Organization aceita muito poucos papers, e recebeu comentários ao paper, então deverá primeiro desenvolver o artigo com base na discussão do painel, dar tempo ao artigo, pensar mais a fundo sobre ele. Nós costumamos brincar com este processo internamente, aqui na revista, chamando-lhe «IO-nização»do texto. Por vezes, recebemos artigos de autores que claramente nunca abriram um número da revista, porque se o tivessem feito, nunca iriam enviar um paper sem preparação.

BCR > Há que escolher as revistas para onde enviamos os artigos?

EA> Sim, claro! Deixe-me dar-lhe um exemplo: recebemos artigos sobre a Europa que são publicados noutras revistas, normalmente mais especializadas, sobre as dinâmicas do Conselho Europeu. Portanto, se o artigo for muito específico, ou sobre política comparada, ou outro assunto muito concreto, é muito importante saber escolher a revista para onde enviamos aquilo que escrevemos.

Há um outro aspeto que importa referir e que tem a ver com o notório publish or perish (publicar ou morre) que pressiona os investigadores a publicar e que cria grandes desperdícios porque há papers que são bons no conteúdo mas não são publicáveis na forma como estão… Portanto, um texto bem articulado é um elemento fundamental.

Quando se envia um artigo para a International Organization, tem também de ter um elemento de inovação, uma ideia nova, bem argumentada. O paper tem de estar articulado de uma forma que relaciona a temática principal com debates que estão a decorrer na disciplina, sobretudo aqueles que estão a decorrer nas páginas da International Organization. Podemos ter a ideia mais brilhante do mundo, mas se não se relaciona com nenhum debate os referees vão dizer: este artigo é ótimo mas o que é que podemos fazer com ele? Será desperdiçado. Mas, por outro lado, se nos enviarem um artigo que se enquadra num dado debate mas não apresenta qualquer contributo nem inovação então também não será publicado. Temos que apontar para o meio, tem que ter ideias novas mas ligadas a debates contemporâneos para que seja claro para os editores qual o valor de um dado texto, até porque o tempo que cada referee tem à sua disposição é limitado. Portanto, antes de enviar um texto para publicação, um autor tem de se perguntar: porque é que os referees escolheriam este texto para ser lido e publicado? E a resposta a esta pergunta não pode ser apenas: porque escrevi uma dissertação sobre o tema e adoro as minhas ideias! Não, o interesse do paper tem de ser claro e explícito, tem de ser elaborado no próprio artigo, de forma a que os referees possam também eles ser convencidos de que é de facto publicável.

BCR > Vem de um país pequeno. As relações internacionais tendem a ser dominadas pela agenda e pela análise das grandes potências. Como é que vê este problema? Pensa que é de todo prejudicial que assim seja?

EA> Bom, como o Ole Weaver tornou evidente no seu trabalho, há um elemento de hegemonia dos Estados Unidos sobre o que as relações internacionais são, poderão ser, e como deveriam parecer – aliás, foi para muitos difícil aceitar que a International Organization ia mudar a sua direção editorial para o Canadá! Mas mesmo se isso é verdade – há de facto claras diferenças na forma como os europeus fazem teoria das relações internacionais relativamente aos norte-americanos – não tenho grandes problemas com isso. Nasci no Uruguai, fui educado no Uruguai. Quando tinha 20 anos fui viver para Israel onde fiz a minha licenciatura e o meu mestrado. Depois candidatei-me a universidades americanas e penso que é o que todos devem fazer se quiserem ser alguém na disciplina. Fui aceite em Berkeley – eu queria ir para lá por causa de Ernst Haas e foi o que aconteceu – e posso mesmo dizer que o resto é história porque assim que se é aceite numa grande universidade e se trabalha com alguém como ele, então o percurso já não depende apenas de ti próprio; estás a ser socializado e estás a trabalhar com gente muito inteligente e isso facilita muito a progressão na carreira. Eu fiz o meu pós-doutoramento em Harvard, e depois estive em Wisconsin. A rede de conhecimentos alarga-se.

Também tive sorte com a minha dissertação – que foi publicada na altura em que o debate sobre comunidades epistémicas surgiu, o que levou depois ao debate sobre comunidades de segurança no contexto da emergência do construtivismo em geral. Por isso não olho para trás como tendo sido discriminado pelo facto de vir de um país pequeno. As coisas correram sempre bem e não havia ninguém a perguntar-me de onde é que eu vinha. Há aqui uma lição a tirar. Não quero dizer que toda a gente deve ir para Berkeley! Mas se tiveres boas ideias, se fizeres aquilo que esperam de ti e desenvolveres bom trabalho, não importa de onde vens, se da Ásia, se do Uruguai ou do Brasil. Claro que há que estar perto do centro: os Estados Unidos.

 

NOTAS

1Civilizations in World Politics: Plural and Pluralist Perspectives. Nova York: Routledge, 2009, pp. 85-108.         [ Links ]

 

19 DE MARÇO DE 2011

Transcrição e tradução: Guilherme Marques Pedro