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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.37 Lisboa mar. 2013

 

A Justiça enquanto função do Estado

Justice as a state function

 

Nuno Garoupa

Professor de Direito e H. Ross e Helen Workman Research Scholar, codiretor do programa «Law, Behavior and Social Science» da Universidade de Illinois

 

RESUMO

Neste ensaio discute-se a Justiça enquanto sistema público de resolução de conflitos promovido pelo Estado assim como as reformas necessárias para a sua eficácia num mundo globalizado. Enquanto a lógica privatizadora parece consensualmente afastada da área da Justiça, as mudanças paradigmáticas parecem mais complicadas, quer na sua génese, quer na sua implementação. Os magros resultados dos vários pacotes reformistas dos últimos anos devem alertar-nos para a complexidade da Justiça.

Palavras-chave: Justiça, privatização, reforma, tribunais

 

ABSTRACT

In this essay we shall discuss Justice as a public conflict-solving system promoted by the state, as well as the reforms necessary for its effectiveness in a globalized world. While the logic of privatization appears to be consensually disconnected from the field of Justice, the paradigmatic changes seem to be more intricate both in their genesis and implementation. The meagre results of the various reform packages of the last years should alert us to the complexity of Justice.

Keywords: Justice, privatization, reform, courts

 

É bastante comum a observação de que a Justiça é uma função basilar do Estado pelo que não pode, nem deve, entrar na discussão sobre a reforma das funções do Estado e muito menos ser alvo de tendências privatizadoras. Ora, como também é habitual com discursos facilitistas e preguiçosos, o sentido de semelhante observação depende em muito do que se possa entender por justiça e por função primordial do Estado. Justiça privada existe e sempre existiu, tendo sido mesmo encorajada pelo Estado nos últimos anos através das chamadas políticas de desjudicialização de conflitos. A própria globalização criou mecanismos de justiça privada a que os Estados não se podem furtar por muito que tentem. Parece-me pois que a justiça pública tem naturalmente sofrido como consequência da erosão do Estado soberano, a que assistimos na atualidade. A discussão não é pois se o Estado pode perder competências na área da Justiça porque isso está já a acontecer, mas antes que tipo de justiça deve ser função exclusiva do Estado numa sociedade moderna e globalizada.

Neste ensaio, entendo Justiça como um sistema público de resolução de conflitos com a possibilidade de execução coerciva. Num Estado moderno de direito democrático parece claro que só este deve ter um aparelho coercivo para resolver conflitos entre os seus cidadãos como entre o próprio Estado e esses cidadãos. Consequentemente, se do ponto de vista normativo, o Estado deve ter o monopólio da execução coerciva, não faz sentido considerar modelos de privatização. Na verdade, qualquer privatização do aparelho coercivo do Estado introduzirá lógicas de concorrência com implicações complicadas. Sabemos bem da teoria económica dos mercados que o monopólio reduz, enquanto um mercado concorrencial aumenta, a provisão de bens e serviços. Podemos pois esperar que a privatização leve a um aumento importante da execução coerciva o que claramente não será genericamente desejável. O monopólio estatal da execução coerciva é uma conquista recente que define o Estado soberano e o Estado de direito. Não pode a fúria privatizadora, em nome de qualquer lógica de curto prazo e geralmente equivocada do ponto de vista económico, ameaçar semelhante desenho institucional.

Aceitamos pois por bem que a execução coerciva e o monopólio da violência seja uma função do Estado de direito e não deve ser alienada para agentes privados em qualquer circunstância. Contudo, do ponto de vista lógico, isso não elimina duas outras possibilidades a considerar. Primeiro, a gestão dessa execução coerciva em nome do Estado pode eventualmente ser privada, isto é, o Estado pode decidir delegar a execução coerciva num agente privado de forma que a titularidade é pública mas a gestão é privada. Segundo, a resolução de conflitos pode ser um serviço privado com execução coerciva pública. Por outras palavras, é possível pensar um sistema pelo qual o Estado apenas mantém a titularidade e a gestão da execução coerciva, mas as restantes componentes da Justiça são fundamentalmente privadas. Nomeadamente a resolução direta do conflito pode ser privada ainda que sujeita a execução coerciva pública.

Dentro daquilo que podemos pensar como gestão privada da execução coerciva em nome do Estado existe uma variedade de modelos. Evidentemente que quando um Estado moderno permite empresas de segurança privada, de alguma forma indica que existem atividades das quais prescinde ou está disposto a partilhar sem grande discussão ideológica sobre as funções do Estado. No contexto das muitas reformas da ação executiva que tivemos em Portugal consideraram-se diferentes possibilidades de como remunerar os solicitadores enquanto agentes privados de execução de sentenças dos tribunais. Também aí houve pouca argumentação ideológica.

Menos consensual será, por exemplo, a gestão privada do sistema penitenciário. Do ponto de vista teórico, pode-se até argumentar que tal opção gera mais eficiência no uso dos recursos que o Estado disponibiliza. Contudo, as experiências práticas, quer nos Estados Unidos, quer na Europa (principalmente no Reino Unido), mostram uma realidade bem menos promissora. Em termos gerais, a gestão privada do sistema penitenciário não tem apresentado os tais ganhos de eficiência significativos que se esperavam e tende a acarretar distorções importantes (na área dos direitos humanos) que, no cômputo geral, parece-me uma solução pouco recomendável. De qualquer forma, há que considerar que a gestão privada do sistema penitenciário não resolve, nem procura resolver, os dois problemas fundamentais que temos em Portugal neste tema: a qualidade das infraestruturas e o excesso de população prisional (dada a quantidade de infraestruturas que existem).

Parece pois que a gestão privada da execução coerciva em nome do Estado tem sérias limitações. Isso não elimina uma discussão profunda sobre os incentivos adequados assim como sobre as medidas de desempenho dos agentes públicos na execução coerciva. Aliás, em Portugal, a política de desjudicialização desenvolvida nos últimos anos em muito responde ao fracasso ou à impossibilidade de introduzir incentivos adequados no sistema público de justiça. Note-se que o atual Governo, apesar de continuar a anunciar projetos ambiciosos nesta área, muito pouco fez realmente até agora.

A outra possibilidade, como disse, é a resolução privada de conflitos. Mas esta existe independentemente da vontade declarada do Estado. O desenvolvimento da arbitragem comercial a nível internacional nas últimas décadas fez-se, apesar, quando não contra, os Estados soberanos. Já o desenvolvimento dos mecanismos de resolução alternativa de conflitos no ordenamento jurídico doméstico fez-se sem debater a função do Estado. Na verdade, em muitos casos, até aconteceu por vontade do Estado, e não dos agentes económicos, dentro daquele modelo absolutamente errado (mas que infelizmente dominou o pensamento do Ministério da Justiça nos últimos vintes anos) da arbitragem e mediação como formas de aliviar as pendências (o que evidentemente não aconteceu como facilmente mostram os números da tabela 1).

 

 

Ao mesmo tempo, quando o sistema público de resolução de conflitos está congestionado, não responde em tempo útil, tem dificuldade em executar as suas próprias sentenças, acaba por gerar os incentivos a um sistema informal onde os diferentes agentes económicos acautelam os seus interesses. Semelhante alternativa é problemática por duas razões. Por um lado, um sistema informal de resolução de conflitos responde aos interesses individuais dos agentes económicos e não ao bem-estar social pelo que claramente não será o melhor desenho institucional. A divergência entre o ótimo privado e o ótimo social na resolução de conflitos está mais que documentada por estudos académicos. Por outro lado, o Estado fica limitado no seu papel de corrigir falhas de mercado, nomeadamente as externalidades criadas pela resolução de conflitos bem como a natureza de bem público que a justiça (seja com provisão pública ou privada) tem1. Um sistema informal de justiça decorrente de um sistema público de resolução de conflitos incapaz é efetivamente a pior solução que podemos ter.

Dentro desta visão, não surpreende que defenda que as linhas gerais de um sistema público de resolução de conflitos com a possibilidade de execução coerciva parecem-me pouco dadas a reformas profundas. A questão primordial, na minha opinião, não está em conceber reformas privatizadoras na área da Justiça (para além do que possa ser pontual como foi, por exemplo, o notariado) mas antes reformar o sistema público de resolução de conflitos de forma a melhorar a afetação de recursos, o seu desempenho, a execução das suas sentenças e, consequentemente, dissuadir alternativas privadas mais problemáticas.

 

AS REFORMAS DO SISTEMA PÚBLICO DE JUSTIÇA

Infelizmente, as reformas das últimas décadas não responderam à necessidade de melhorar o sistema público de resolução de conflitos. Como já tive oportunidade de escrever, a justiça portuguesa foi pensada para uma outra sociedade, precisamente a que existia quando a última grande reforma foi feita, na década de 1930, pelo Estado Novo. O 25 de Abril alterou o enquadramento mas não a lógica subjacente e profunda da justiça. Ao progressivo desfasamento entre a oferta e a procura na justiça, os sucessivos governos foram respondendo com a técnica dos pequenos passos. O final da década de 1990 veio confirmar uma situação que se adivinhava complicada mas que nenhum governo procurou enfrentar. O primeiro grande passo em Portugal foi reconhecer a existência de uma crise da justiça o que só aconteceu nos últimos dez anos. O segundo passo seria assumir e reconhecer um problema estrutural, questão que ainda divide os analistas e os juristas. Infelizmente, porque não há um consenso sobre o problema estrutural, as reformas que se sucederam com os últimos governos não foram pensadas nesta perspetiva.

Tomemos como exemplo o crescimento da litigância per capita e a congestão dos tribunais judiciais (ver novamente as estatísticas apresentadas na tabela 1). A litigância per capita agravou-se claramente até 2005. Foi nessa altura que começaram as famosas medidas de descongestionamento dos tribunais adotadas e executadas pelo Governo Sócrates. Estas tiveram o efeito pretendido a curto prazo. Mas o resultado a prazo é uma volatilidade absolutamente contraproducente, onde qualquer diminuição da litigância per capita responde inicialmente à limpeza de processos mas logo gera mais processos no ano seguinte. Isso mesmo nota-se na taxa de congestionamento dos tribunais judiciais que se agravou até 2005, mas depois disso também não desceu de forma sustentada como seria de desejar. Na verdade, não só voltou a agravar-se em 2010 como está longe dos níveis de 2000.

A conclusão desta análise é evidente. As medidas de descongestionamento dos últimos dez anos tiveram o efeito pretendido na litigância (número de processos entrados) a curto prazo e um impacto muito mais ténue no descongestionamento dos tribunais. Contudo, ambas as medidas tendem a agravar-se no ano seguinte. Tudo aponta pois para um descongestionamento pontual mas não estrutural. Por outras palavras, as medidas tomadas no período 2005-2011 não melhoraram o sistema público de resolução de conflitos.

Não estou convencido que as medidas do atual Governo venham a alterar esta análise de forma muito significativa. Certamente o atual Governo propôs-se enfrentar a situação concertando um pacote legislativo com certeza mais ambicioso que o programa do anterior Governo (mais que não seja porque lhe era exigido o cumprimento do memorando de entendimento com a troika). Infelizmente, do meu ponto de vista, dedicou dois anos a reformas na justiça que conjunturalmente podem porventura aliviar o problema da celeridade mas que não permitem estruturar uma alternativa que possa sustentar uma melhoria da qualidade, equidade e eficácia da justiça em Portugal. Tomemos como exemplo a reforma do Código de Processo Civil (CPC) anunciada no final de 2012. Globalmente, as mudanças vão no sentido correto mas ficam muito aquém do que seria necessário como é claro da comparação com o projeto que recentemente apresentei com Mariana França Gouveia, Pedro Magalhães, Jorge Morais Carvalho e outros, para a Fundação Francisco Manuel dos Santos e a Associação Comercial de Lisboa.

O sistema público de resolução de conflitos só pode ter a eficácia e a celeridade adequadas e sustentadas com uma mudança de paradigma que infelizmente ainda não aconteceu. Voltando ao exemplo dos tribunais judiciais, importa reconhecer os múltiplos vetores que determinam o congestionamento dos tribunais e que não são objeto de uma visão global. Importa considerar, nomeadamente, a produção legislativa que regula a conduta dos comportamentos económicos e sociais que geram litigância (o atual Governo não só tem ignorado este tema como desfez o pouco que se tinha avançado), a intermediação dos operadores judiciais, o controlo da legalidade ex ante facto pela administração e ex post facto pelos tribunais, e a metodologia da reforma (que em Portugal não prima por continuidade e responsabilidade).

Existem na minha perspetiva duas questões concretas que merecem uma reflexão profunda. Primeiro, a fé inabalável dos diferentes governos nos mecanismos alternativos de resolução de litígios. Não se pode ignorar a sua importância nem deixar de reconhecer que a sua expansão fazia muita falta para certo tipo de conflitos. Mas é preciso de uma vez por todas reconhecer que são meios complementares e não alternativos. Nem em França nem em Itália, onde essas políticas foram experimentadas muito antes, resolveram o congestionamento dos tribunais judiciais, acabando mesmo as instâncias de mecanismos alternativos de resolução de litígios congestionadas a médio prazo (resultado do qual os recentes julgados de paz em Portugal também se aproximam a passos largos). Mais concretamente, os mecanismos alternativos de resolução de litígios são geradores de litigância.

Segundo, acresce que os muitos pacotes de medidas de descongestionamento dos tribunais judiciais e administrativos em muitos casos desvirtuam os incentivos adequados a uma saudável desjudicialização, optando ambas as partes por mecanismos alternativos de resolução de conflitos, mas antes impõem uma desjudicialização forçada, isto é, obriga as partes a não utilizar os tribunais quando pelo menos uma delas eventualmente o pretendia (por exemplo, ao proibir certos litígios de baixo valor ou ao alterar o regime aplicável aos cheques sem provisão ou ao pagamento de prémios de seguro como se fez em 2006). Naturalmente, por efeito de substituição (quer dos meios de pagamento, quer dos comportamentos regulados por estas alterações), outros tipos de litígios tendem a aumentar a médio prazo (como aliás podemos confirmar pelos dados da tabela 1).

Como venho a escrever há mais de dez anos, o problema das reformas em curso é que elas não alteram nem o paradigma do sistema judicial nem atacam os problemas estruturais. Do meu ponto de vista, uma reforma da Justiça (e não as reformas na Justiça) só poderá acontecer quando houver uma política de justiça (e não uma gestão, ainda que agora mais eficaz e até certo ponto mais exigente, do sistema de justiça). Acontece que para existir política de justiça tem de haver confronto de ideias, projetos, ideologia. Coisa que como bem sabemos não há, nem nunca houve. O confronto ideológico em Portugal sempre se fez na regulação económica (o papel do Estado na economia), na regulação social (o papel do Estado na sociedade) e nas políticas sociais (na educação, na saúde), até nas funções primordiais do Estado, mas nunca na justiça. Em Portugal, em matéria de justiça, não há nem nunca houve nem esquerda nem direita (basta ver que o ps ainda não foi capaz de apresentar uma crítica substantiva ao atual Ministério da Justiça). Existe apenas uma imensa tecnocracia, neste caso não económica ou contabilística, mas dogmática e formalista na melhor tradição do pensamento jurídico continental. Porém, uma reforma estrutural da Justiça só pode acontecer quando a tecnocracia der lugar à política.

 

NOTA FINAL

Num debate ponderado sobre a reforma da Justiça é importante combater mitos que espreitam e condicionam uma discussão séria e profunda. Não podemos continuar a basear medidas, conjunturais ou não, em intuições ou preconceitos tecnocráticos. Por exemplo, está completamente por fazer a discussão sobre o princípio do utilizador-pagador no acesso à Justiça que se evita à sombra de um conceito absolutamente redutor de acesso universal. Outro exemplo é o debate sobre a gestão processual eficaz completamente escondida atrás de uma versão rígida do princípio do juiz natural. Há pois um caminho a fazer em termos de discussão política assim como políticas de justiça dentro daquilo que são os contornos gerais de um sistema público de resolução de conflitos.

 

Data de receção: 06/02/2013 | Data da aprovação: 06/03/2013

 

NOTAS

1 Refiro-me a bem público no sentido económico (não exclusividade e não rivalidade) e não no sentido jurídico (provisão pelo Estado).