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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.36 Lisboa dez. 2012

 

Uma tentativa de reconciliação entre o materialismo e o idealismo*

 

António da Silva Rêgo

Licenciado em Historia pela FCSH–UNL. Está a fazer um Research Masters em História, Identidades Nacionais e Cultura Política na Universidade de Leida, Holanda.

 

Michael Mann

Fascistas

Lisboa: Edições 70, 2011, 479 páginas.

 

Na sua obra Fascistas, Michael Mann alega pretender partir de dois pontos de vista antitéticos do fascismo – o materialista e o idealista – para chegar a «uma teoria geral do fascismo aceitável» (p. 33). Apesar da grandeza da tarefa, esta deve ser, de certa forma, matizada pela sua inserção no contexto do trabalho recente do autor. Se, por um lado, este livro pode ser visto de forma hermética, procurando explicar quem eram os fascistas e o porquê da sua existência, por outro, a obra utiliza conceitos hermenêuticos que pertencem a trabalhos anteriores do autor – nomeadamente os dois volumes do Sources of Social Power, publicados em 1987 e 1993. Além disso, este livro apresenta-se como a explicação de um fascismo académico por contraposição a um «fascismo!» mais alargado (pp. 27-28), explorado no livro The Dark Side of Democracy, que é também aludido repetidamente ao longo de Fascistas, especificamente no que toca a questões sobre a limpeza étnica. É, portanto, uma obra que se interliga constantemente com um percurso de vários anos no estudo da sociologia histórica e da história comparativa.

Posto isto, o livro abre com uma introdução teórica, partindo depois para a apresentação e análise de seis estudos de caso, e concluindo com um pequeno ensaio de síntese sobre os dados e conclusões apresentados. A abordagem metodológica consiste na análise de diversos estudos sobre os fascismos, sem investigação independente de fontes primárias (p. 59). Mann procura questionar as teorias vigentes sobre o fascismo, com particular incidência nas que ele vê como demasiado monocausais. Grande parte do livro é, então, dedicada a rever as insuficiências das teorias materialistas do fascismo face aos dados conhecidos sobre os eleitorados fascistas e também sobre os seus militantes mais activos.

 

O ENQUADRAMENTO TEÓRICO

Mann começa por inserir a ascensão dos fascismos num contexto mais alargado – o da ascensão dos autoritarismos na europa de leste, Centro e Sul. Através da introdução de alguns conceitos-chave, como as dimensões infra-estrutural e despótica do estado ou as quatro fontes do poder social, ideológico, económico, político e militar (pp. 33 e 61), o autor pode criar imagens comparáveis desses processos nacionais, abordando o problema de forma transnacional e utilizando o «macro-lugar: metade da europa» (p. 53) como ponto de referência a partir do qual se parte depois para as perspectivas locais. É assim que surgem quatro tipos de regime autoritário: semi-autoritário, semi-reaccionário, corporativista e fascista (pp. 73-79). É no âmbito destas categorias que Mann encaixa as várias formas de governo que vão surgindo no período entre guerras, e é trabalhando com estes conceitos interpretativos que ele vai desenvolvendo os seus argumentos explicativos.

Relacionando e analisando as formas de poder mencionadas, o autor identifica quatro crises homólogas e alega que estas foram responsáveis pela ascensão não só dos fascismos como dos autoritarismos em geral (pp. 80-123). No entanto, acaba por não ser muito inovador na sua exposição. o uso do conceito de «classe» como possuidor de uma validade material reificada nas próprias pessoas não só fica implícito na discussão teórica, em que apenas se alude à insuficiência das aplicações deste conceito para explicar, por si só, o fascismo, como se torna ainda mais pronunciada nos estudos de caso, em que nunca se pensa, por exemplo, porque é que os guetos operários eram mais resistentes à propaganda fascista do que outros lugares. É que o homem fora do gueto não se define necessariamente através da classe, e apesar de o conceito não possuir eficácia causal na boca do historiador, certamente possuirá alguma nas mentes do objecto deste livro – os homens que se debateram com a questão da adesão às direitas autoritárias. No fundo, predominam objecções empíricas à utilização do conceito marxista (p. 196), mas nunca se procura explicar a inadequação do conceito face à relação entre identidade e ambiente em que se vive, ainda que esta fique algo implicada um pouco por todo o discurso.

Além disso, também a teorização de conclusões acaba por ser insuficiente, tendo em conta que Mann chega muito perto de equiparar identidades nacionais, étnicas, de classe ou de sector, mas acaba por nunca aludir a uma teoria geral das identidades (própria ou de outros autores) (pp. 143, 353, por exemplo). Assim, fica sempre alguma indefinição na percepção de como o autor interpreta estes conceitos, o que se reflecte na incerteza de como os usa.

Ainda assim, Mann procura «levar os fascismos a sério» (p. 29), ou seja, pensar que os fascistas não se serviam de qualquer ferramenta ao seu dispor para obter o poder, estando intimamente ligados a uma rede de valores que guiava a sua acção. Para isso, recorre a argumentos essencialmente políticos e ideológicos, e é precisamente neste contexto que surge aquele que será, talvez, o conceito mais interessante do livro: o de «transcendência de classe». Este conceito surge na definição de fascismo apresentada: uma mundivisão «em termos de valores fundamentais, acções e organização de poder» num «estatismo nacionalista transcendente e purificador através do paramilitarismo» (p. 41). Afinal, os fascistas não procuravam a unificação da nação apenas para satisfazer a sua sede de poder, mas também porque essa unificação era um bem moral (p. 112) e um valor com o qual eles se identificavam, a par da ordem, da iniciativa/acção e da força. Infelizmente, Mann não explora a fundo esta questão moral, nunca elaborando um possível perfil, e por vezes vai mesmo na direcção contrária, recorrendo a absolutos morais pessoais para caracterizar a acção dos fascistas, identificando-a como um «mal supremo» (pp. 32 e 396, por exemplo).

 

A ANÁLISE DOS ESTUDOS DE CASO

Apesar de o fundo teórico ser, em geral, pouco desenvolvido, os estudos de caso são cuidadosamente analisados. Pondo de lado a questão conceptual, Mann não só crítica várias teorias dos fascismos/autoritarismos nacionais em questão (Itália, Alemanha, Áustria, Hungria, Roménia, Espanha) como ainda nos providencia uma compilação de dados bastante completa, não só no seu texto como em tabelas anexas e em alguns mapas. Nesta segunda parte, e acentuando um tom mais cuidadoso e interrogativo (que, de resto, é uma presença mais ou menos constante em todo o livro), abordam-se as origens sociais dos fascistas (militantes, eleitores e simpatizantes) a várias dimensões: sexo, geografia, sector profissional, classe, etnia, idade, etc. apesar de não ter havido grande cuidado em sistematizar um elo de ligação entre estes critérios numa teoria de identidades, acaba-se por se operacionalizar uma equiparação de facto nas comparações que são feitas ao longo da análise. Começa-se então a discernir uma série de factores influentes numa identidade política e ideológica analisada.

Também num esforço de levar os fascistas a sério, Mann vai reconhecendo o peso da vontade individual na ascensão dos fascismos. Afinal, o seu esforço em explicar as razões pelas quais cada sector ou classe aderiu a movimentos autoritários implica a existência de uma razão por detrás dessa escolha, o que revela uma rejeição da irracionalidade dos fascismos (pp. 138-139). Há, no entanto, dois prolemas nesta sua abordagem. Por um lado, apesar de Mann tentar levar os fascistas a sério, não se leva a si próprio a sério: se por um lado procura razões que expliquem o fenómeno em questão ao longo de mais de 400 páginas, por outro acaba por negar, por exemplo, que a classe proprietária tenha seguido «a conduta mais instrumentalmente racional» (p. 401). Acaba-se por negar sentido a um apoio que foi demasiado alargado nalguns países para ser ignorado como um erro de cálculo devido a um medo de algo que não existe. É que nem todos os interesses são económicos, e embora Mann exponha esse facto, acaba por não dar o corolário e postular que têm de existir outros interesses, nomeadamente emocionais, segundo vai indicando a sua pesquisa, que sirvam de motor à adesão de massas. Paxton, na sua obra The Anatomy of Fascism, acaba por enquadrar estes interesses na teoria de que os fascistas instrumentalizam emoções para outros fins1. Mann, levando os fascistas a sério, teria de aceitar que os fascistas também partilhavam dessas emoções, sendo mais honestos e inconscientes do que Paxton leva a crer. Existe um afastamento da noção de catch-all party, mas a emoção acaba por ser, em termos de conclusões sobre eficácia das causas, reduzida a um conjunto de medos (pp. 400-401). Por outro lado, apesar de se reconhecer ocasionalmente a importância de certos indivíduos no desfecho das doutrinas e regimes políticos analisados, essa análise foca-se essencialmente em grupos pouco personalizados. Se se reconhece a constituição dos grupos por pessoas, essa constituição por vezes é tratada mais como acidente do que como uma condição portadora de eficácia causal, mesmo a ponto de esquecer a intervenção instrumental de certos indivíduos, como por exemplo do rei Emanuel III durante a Marcha sobre Roma. Mesmo quando não é esquecida, essa intervenção é subvalorizada (Von Papen na Alemanha, por exemplo). Fala-se de valores mais vastos e abrangentes – transcendentes das identidades de classe – mas nunca se parte para um abraçar de uma agência da vontade.

Outro problema nos estudos de caso é a ocasional utilização de lugares comuns, particularmente no que toca a uma discussão da historiografia mais idealista. Diz-se que «o poder ideológico raramente depende da sofisticação da sua mensagem» (p. 181), mas num olhar mais atento torna-se difícil dizer que a simplicidade da maioria das interpretações do fascismo por parte dos seus contemporâneos dependia mais do fascismo enquanto coisa em si do que das próprias pessoas. Afinal, Martin Heidegger era tudo menos simples, e com ou sem condenação em Nuremberga, ele tinha sido admitidamente nazi2. Apresenta-se uma contradição em que as convicções são emocionais, mas, de algum modo, a ideologia que delas parte não é passível de racionalização, fazendo lembrar o documentário clássico Shoah, de Claude Lanzmann, em que o realizador reduz o conceito em causa a um construto discursivo3– como se a raiz emocional do nazismo fosse ideologia em si, não implicando a última uma racionalização. Seria injusto pensar que, tendo em conta estas críticas, o livro carece de qualidade ou não desperte o interesse no leitor. Efectivamente, a postura interrogativa e, até certo ponto, provocadora no autor é o que abre o livro a estas críticas. O objectivo dele parece ser mais o despoletar da discussão sobre a questão do que a apresentação de uma teoria que esgote o tema. O recurso à contradição não é meramente um reflexo da insuficiência dos dados, mas acaba por funcionar como um ilustrador da incerteza num fenómeno que é visto pelo autor como complexo, díspar, social e humano. Ao procurar levar os fascistas a sério, ainda que por vezes não o faça, Michael Mann inova na medida em que foge às grandes teorias universalistas da sociologia do século XX, procurando estabelecer graus de incerteza e reconhecendo limitações na sua própria compreensão. Mais espectacular ainda é fazê-lo sem perder uma certa ousadia na forma como se entrega ao problema.

Este livro é, portanto, uma obra que analisa grupos de pessoas inseridos numa sociedade e num contexto histórico, procurando saber quem aderiu, em que medida e porquê, analisando a organização do colectivo face à sua acção. Dá particular incidência aos eleitorados e às suas motivações – paramilitarismo, transcendência, estatismo nacionalista – e analisa sobretudo questões de identidade nos seus argumentos. É de especial utilidade para alunos universitários ou para académicos que se queiram introduzir no tema dos fascismos e das direitas autoritárias de entre guerras. Aquilo que lhe falta em investigação independente de fontes primárias é amplamente compensado por uma análise crítica e estimulante. A amplitude e natureza dos problemas apresentados nesta recensão é prova disso.

 

NOTAS

* A pedido do autor este texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

1 PAXTON, Robert – The Anatomy of Fascism. Londres: Penguin Books, 2004, p. 58.         [ Links ]

2 SAFRANSKI, Rüdiger – Martin Heidegger: Between Good an d Evil. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1998, pp. 225 -229.         [ Links ]

3 TRAVERSO, Enzo – O Passado, Modos de Usar: História, Memória e Política. s. l.: Edições Unipop, 2012, pp. 93 -96.         [ Links ]