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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.36 Lisboa dez. 2012

 

Saber adaptar-se, saber durar a diplomacia de Salazar

 

Pedro Aires Oliveira

Docente na FCSH–UNL e investigador do Instituto de Historia Contemporânea. Membro do Conselho Cientifico do IPRI–UNL. Autor de Os Despojos da Aliança. A Grã-Bretanha e a Questão Colonial Portuguesa 1945-1975 (2007)

 

Bernardo Futscher Pereira

A Diplomacia de Salazar (1932-1949)

D. Quixote, Lisboa, 2012, 591 páginas.

 

Os sucessos diplomáticos alcançados por Salazar – sobretudo a muito celebrada neutralidade do País na II Guerra Mundial – foram uma componente essencial da lenda erguida em seu torno. O à-vontade que rapidamente evidenciou na condução dessa atividade não deixa de ter os seus aspetos desconcertantes. O senso comum diz-nos que uma certa dose de cosmopolitismo deverá ser importante para um estadista singrar no mundo da política internacional. Ora, se havia algo que Salazar manifestamente não possuía era esse atributo (o que não constitui caso único entre outros estadistas europeus). Embora interagisse sem grande problema com figuras de extração elitista, a sua maneira de estar e visão do mundo exibiam não poucas marcas de uma cultura fechada, provinciana, para não dizer tacanha.

Na sua longa carreira política, Salazar efetuou apenas um punhado de deslocações a cidades espanholas, nunca muito distantes da fronteira (Sevilha, Ciudad rodrigo, Mérida), para se avistar, sempre brevemente, com o general Francisco Franco. Antes disso, tinha realizado uma única viagem além-Pirenéus, em 1927, para conhecer Paris e a Bélgica, a poucos meses de assumir a pasta das finanças. O seu gosto pela reclusão tornou-se lendário, embora não deixasse de marcar presença em banquetes e receções em embaixadas, quando as circunstâncias o exigiam (e sempre fazendo questão de manter a casaca limpa de insígnias ou condecorações).

E, no entanto, nada disto impediu Salazar de desenvolver uma forte apetência pelos assuntos de política internacional, uma vez consolidadas as bases domésticas do seu poder. Isso aconteceu por volta de meados dos anos 1930, quando os desenvolvimentos da cena internacional, e em especial a situação em Espanha, passam a exigir a sua atenção permanente. Em 1936, acabaria mesmo por chamar a si a direção da pasta dos Negócios Estrangeiros, a qual só viria a abandonar onze anos mais tarde. Aliás, conforme as suas biografias nos indicam, o envolvimento de Salazar na política externa manter-se-ia intenso bem para lá do término do segundo conflito mundial. Em finais dos anos 1940, as vicissitudes da Guerra fria exigiram-lhe um cuidado constante, o mesmo sucedendo em relação à disputa com a união indiana, na década seguinte. Nos seus últimos anos em São Bento, a guerra colonial e toda a sua complexa envolvência internacional absorveram as suas energias quase por inteiro. Não obstante alguma retórica isolacionista, jamais descurou a inserção internacional do seu regime, através das alianças com os poderes dominantes no atlântico e da participação em organismos multilaterais (relativamente aos quais mantinha uma desconfiança metódica).

 

UMA SÍNTESE QUE FAZIA FALTA

A história de como Salazar, e os seus mais destacados servidores diplomáticos, lidaram com os acontecimentos vertiginosos das décadas de 1930 e 1940, é o tema fundamental do livro de estreia de Bernardo Futscher Pereira, ele próprio funcionário de carreira do Ministério dos Negócios estrangeiros (MNE) (e colaborador de longa data da R:I). De forma honesta, o autor previne os leitores para não esperarem grandes novidades em termos factuais, ou até interpretativos. A sua obra apresenta-se como uma «visão de conjunto», uma «crónica das múltiplas crises e desafios com que Portugal se viu confrontado e das respostas que o regime lhes deu, essencialmente no plano diplomático» (p. 9). Não é, pois, uma investigação alicerçada em fontes primárias inéditas (tirando o espólio privado de Luís Teixeira de Sampaio, apenas pontualmente referido), nem traz a lume elementos que lancem uma nova luz sobre factos já conhecidos. Dizer isto, porém, não significa desmerecer o esforço do autor.

Desde logo, Futscher Pereira presta um importante serviço a uma nova geração de leitores eventualmente pouco familiarizados com as primeiras sínteses académicas que documentaram o envolvimento de Portugal na Guerra Civil de Espanha e na II Guerra Mundial (nomeadamente, as de antónio José Telo, César Oliveira, Fernando Rosas, entre outros), há muito desaparecidas do circuito das livrarias e hoje apenas acessíveis em bibliotecas. Para os mais jovens estudiosos das relações internacionais, neles se incluindo muitos dos diplomatas do MNE, é importante que a memória do funcionamento da diplomacia portuguesa num período tão crítico não se perca – algo que a recente controvérsia envolvendo as declarações do embaixador de Israel em Portugal, a propósito do episódio do luto oficial decretado aquando da morte de Hitler, em maio de 1945, veio evidenciar1.

Em segundo lugar, porque estamos perante uma obra que alcança um excelente equilíbrio entre a síntese do que outros disseram e o próprio ponto de vista do autor. Para além do sólido conhecimento das principais fontes relevantes para este período (as impressas, mas não só), Futscher Pereira alia a isso a sua já vasta experiência enquanto diplomata e conselheiro político de vários decisores nacionais (foi, durante alguns períodos, assessor do ministro da Defesa Nacional, Veiga Simão, bem como do Presidente Jorge Sampaio). As suas apreciações acerca das estratégias negociais e das manobras diplomáticas têm, talvez por isso, um aspeto certeiro, lapidar mesmo – ao que não será alheio também o estilo conciso e elegante do autor.

Para além disso, a opção por um registo narrativista nunca resvala para uma história événementielle mais árida e destituída de profundidade interpretativa. Apesar da atenção ao detalhe simbólico, a densidade analítica é assinalável e o leitor nunca perde de vista os eixos estratégicos que norteavam a diplomacia de Salazar. Sem enjeitar a dívida que os estudiosos destes assuntos têm para com franco Nogueira e a sua monumental biografia do ditador (publicada na década de 1980), Futscher Pereira afasta-se contudo do registo apologético e nacionalista que marcava essa obra.

Com grande isenção, procurou acima de tudo compreender a racionalidade dos agentes, o sentido da sua atuação, os critérios que tinham em mente para medir êxitos e fracassos. Assim, a sua avaliação da política externa do Estado Novo, neste período em particular, é globalmente lisonjeira para Salazar. Sem nunca descurar a relevância crítica dos fatores exógenos, não deixa de assinalar as várias apostas ganhas pela visão e teimosia de Salazar. O seu empenho na vitória de Franco na Guerra Civil de Espanha, uma hábil gestão dos equilíbrios no segundo conflito mundial, e a adaptação pragmática à liderança norte-americana no pós-guerra, permitiram-lhe assegurar os grandes desígnios da sua política externa: a independência nacional, a integridade do império, e, não menos importante, a sobrevivência do regime. Mesmo quando exasperava os seus colaboradores com determinados expedientes negociais,

O desfecho das disputas foi-lhe geralmente favorável – a este respeito, a sua tática de deixar esticar a corda até ao ponto máximo de tensão, com vista a obter o máximo possível de dividendos, tornar-se-ia um clássico. Embora isso não fizesse dele um interlocutor fácil, a verdade é que ganhou o respeito, e até a admiração, de praticamente todos quantos negociaram diretamente consigo. Futscher Pereira explica porquê: «uma das razões pelas quais Salazar, como negociador, impunha respeito era a sua probidade: era duro e exigente na barganha, mas não utilizava subterfúgios. Uma vez concluído o negócio, cumpria escrupulosamente o acordado» (p. 537).

 

SALAZAR E HOLOCAUSTO: ASSOBIAR PARA O LADO?

O livro aborda também aspetos da política externa salazarista que ainda hoje suscitam alguma controvérsia, fazendo-o sempre de forma rigorosa e ponderada. Um dos casos incontornáveis é, como não podia deixar de ser, o da atuação dos diplomatas portugueses, e das instruções de Salazar, relativamente aos judeus perseguidos na II Guerra Mundial – tema que até há bem pouco tempo estava longe de reunir o consenso de figuras ligadas ao MNE (a apreciação que alguns deles fazem ao desempenho de Aristides de Sousa Mendes, censurado pelos seus atos de «indisciplina» é, a este respeito, paradigmática)2.

Futscher Pereira procura fazer o enquadramento preciso desses acontecimentos, e de outros que se produziram numa fase mais adiantada da guerra (a ação do staff da legação portuguesa em Budapeste em 1944, por exemplo), e encontrar a explicação possível para a rigidez e severidade reveladas por Salazar e outros membros da hierarquia do MNE relativamente a essas situações. A cultura autoritária do regime, o seu apego a procedimentos vistos como essenciais para manter a disciplina dos servidores do estado, terão sido um fator determinante. Mas fica também claro até que ponto figuras como Salazar e Teixeira de Sampaio se revelaram incapazes de compreender a escala e a gravidade dos crimes cometidos pela alemanha nazi. Apesar de terem informação suficiente para tomarem consciência do caráter excecional do totalitarismo hitleriano (nomeadamente aquela que lhes fora facultada por Veiga Simões, o ministro português em Berlim na segunda metade dos anos 1930), parecem ter preferido continuar a acreditar que o problema da alemanha era, quanto muito, um problema de nacionalismo «exagerado», logo algo passível de ser corrigido (o facto de o representante alemão em lisboa entre 1934 e 1944, o barão Hoyninguen-Huene, ser um cortês aristocrata prussiano terá contribuído para reforçar essas autoilusões). Apesar dos estudos de que dispomos não apontarem para uma orientação antissemita dos responsáveis do Estado Novo, pelo menos equivalente à de outras elites autoritárias da época, é difícil escapar à conclusão de que Salazar estaria sobretudo preocupado em se poupar a escolhas difíceis em matéria de auxílio aos judeus. Como escreve o autor: «Simplificando, fica a impressão de que a atitude geral do regime em relação ao holocausto era de que Portugal não tinha – nem queria ter – nada a ver com esses acontecimentos. A atitude de quem, em suma, perante um crime monstruoso que se desenrola à sua frente, prefere desviar o olhar e fingir que não vê» (p. 418).

Essa incapacidade, ou falta de vontade, em encarar de frente a verdade do nacional-socialismo, deverá também ter algo a ver com a avaliação que Salazar fazia das implicações de uma vitória de Hitler ou, pelo menos, de um impasse que reforçasse ainda mais a preponderância da alemanha no continente. Ver em Salazar um adepto, mais ou menos oportunista, dos projetos hitlerianos para uma Nova ordem europeia parece ser difícil de sustentar, pelo menos com evidência empírica sólida. A cultura política, o estilo de liderança, a visão do mundo, de Salazar e de Hitler eram distintas, nalguns aspetos até antagónicas. Mas, enquanto homem de poder, o ditador português não se podia alhear das possíveis consequências de uma hegemonia alemã. Em 1940-1942, a sua preferência parece ter recaído não neste último desfecho, mas numa paz de compromisso, uma espécie de condomínio anglo-germânico no continente que contivesse ou neutralizasse a ameaça «bolchevique», e deixasse alguma autonomia para regimes neutros e autoritários como o seu. O facto de a sua adaptação às novas coordenadas resultantes do desembarque aliado no Norte de África em 1942, da derrota alemã em Estalinegrado e da queda de Mussolini em abril de 1943 ter sido muito mais contida em termos retóricos indica essencialmente duas coisas. Por um lado, a sua genuína repugnância por oscilações bruscas que pudessem sugerir ausência de escrúpulos e oportunismo. Por outro, uma forte apreensão pelos problemas que a aliança entre as democracias ocidentais e a Rússia de Estaline lhe colocaria em termos da sua sobrevivência política uma vez consumada a derrota do eixo. Não espanta, pois, que, mesmo após a opção pela rendição incondicional ter sido tomada pelos aliados, Salazar continuasse a alimentar a esperança num qualquer arranjo que reservasse à alemanha o seu suposto papel histórico de contenção do «expansionismo eslavo» na fronteira oriental da europa.

Que no fim da guerra Salazar tenha sido capaz de superar as adversidades que se colocavam a um regime com as conotações ideológicas do estado Novo confirma a importância dos fatores exógenos (o interesse das potências ocidentais em contarem com a sua colaboração num quadro de crescente rivalidade com a URSS), mas, uma vez mais, seria errado não reconhecer o seu consumado talento para operar os ajustamentos indispensáveis à aceitação de Portugal como um parceiro válido do «ocidente». Essa manobra de adaptação, e toda a sua envolvência estratégica, é notavelmente analisada nos últimos capítulos, fundamentalmente dedicados à aproximação de Portugal aos estados unidos no domínio da segurança e defesa, e nos quais ressalta, uma vez mais, o dom do autor para recriar a complexidade e subtileza dos processos negociais e tomadas de decisão.

A Diplomacia de Salazar é, por tudo isto, uma obra destinada a figurar em qualquer bibliografia de referência da história da política externa portuguesa no século XX, deixando os leitores na expectativa em relação a um segundo tomo que retome o ponto onde este nos deixou.

 

NOTAS

1 A 6 de novembro de 2012, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Portas, chamou o embaixador de Israel às Necessidades para lhe pedir explicações sobre declarações proferidas por este no colóquio «Portugal e o Holocausto – Aprender com o Passado, Ensinar para o Futuro», realizado na Fundação Calouste Gulbenkian uns dias antes. O embaixador Ehud Gol referira-se à decisão do governo de Salazar de decretar luto oficial pela morte de Hitler (o que implicou colocar a bandeira nacional a meia-haste em todos os edifícios do Estado) como «uma nódoa» na história portuguesa. Cf. «Paulo Portas pede explicações a embaixador de Israel». In Correio da Manhã, 7 de novembro de 2012. [Disponível em: http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/nacional/politica/paulo-portas-pede-explicacoes-a-embaixador-de-israel].

2 Cf., a este respeito, as memórias do embaixador João Hall Themido (Uma Autobiografia Disfarçada. Lisboa: Instituto Diplomático, 2008), em que Sousa Mendes é referido como um «mito criado por judeus e pelas forças democráticas saídas do 25 de Abril».