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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.36 Lisboa dez. 2012

 

A anarquia internacional. Crítica de um mito realista*

The international anarchy – critical of a realist myth

 

António Horta Fernandes

Professor auxiliar com agregação do Departamento de Estudos Políticos da FCSH – UNL. Estrategista.

 

RESUMO

O presente artigo pretende mostrar que não só o conceito de anarquia não pode ser escorado no autor que tradicionalmente lhe tem servido de moleta, Hobbes, como não dispõe de qualquer sustentação, a não ser mítica. A anarquia internacional pressupõe um estado ontológico, que não fenomenológico, de guerra permanente, de desordem incompatível com a presença de poderes soberanos na cena internacional. O conceito de anarquia, apesar das aporias estruturais que tornam inviável a sua sustentabilidade, serve um determinado status quo, visa a preservação da lógica de poder no âmbito internacional e apenas por isso continua a ser acarinhado por quem dita as regras, como um aparelho ideológico mais que não mantém cativos.

Palavras-chave: Guerra, realismo, soberania, anarquia

 

ABSTRACT

The present paper aims to show that, not only the concept of anarchy cannot be anchored in the author that traditionally has worked as its validator – Hobbes –, it has no foundation whatsoever, except possibly a mythical one. International anarchy entails an ontological state, not a phenomenological one, of permanent war, of chaos incompatible with the presence of sovereign powers in the international scene. the concept of anarchy, despite the structural aporiae that thwart its sustainability, serves a particular status quo, pursues the preservation of the logic of power internationally and, for that reason alone, it remains an object of afection to those who dictate the rules, as an ideological apparatus that does not bind them.

Keywords: War, realism, sovereignity, anarchy

 

Se existem conceitos em relações internacionais (RI) que tiveram e têm grande audiência, inclusive noutros meios académicos, o de anarquia internacional é um deles. O conceito de anarquia internacional é central para muitas das variantes realistas, caso o não seja para todas elas. Mas também outras correntes críticas do realismo, desfazendo essa centralidade, ainda assim lhe atribuem um valor que não tem1. Ao longo do presente excurso iremos procurar desconstruir, com o propósito de decapitar, o conceito de anarquia internacional, e, subsidiariamente, intentaremos mostrar algumas das fragilidades estruturais do(s) realismo(s). É evidente que se não fará justiça a todos os matizes das inúmeras variantes realistas, nem a todas as posturas individuais dos internacionalistas que perfilham uma dessas mesmas variantes. Mas estamos em crer, reiteremo-lo, que não deixamos de atingir pela via escolhida o miolo da argumentação realista. E se quiçá exageramos ao presumir que se trata do núcleo do núcleo para todos os realismos, não nos parece que falhemos o alvo se dissermos que, pelo menos, damos conta de uma parte nevrálgica da «atómica» realista2.

 

1.

A grande escora tradicional do conceito de anarquia internacional é Hobbes. Mas como se mostrará, em seguida, o pensamento hobbesiano não permite sustentar tal ideia. Mesmo assim, o conceito de anarquia internacional pode ria passar, em grande parte, incólume, limitando-se os seus proponentes a afastar a escora errada. Contudo, o conceito, só tem importância em RI porque supostamente serve de alicerce à ideia de que as relações internacionais são, no essencial, relações de poder; de poder impositivo e coercivo. Relações que têm por suporte último a guerra, o clímax da conflitualidade hostil.

Na verdade, o significado de anarquia remete para desordem, ausência de comando, ausência de regras, se com isto se quer dizer que o normativo não detém um papel estruturante ou, pelo menos, assinalável, para já não mencionar as referências ao seu étimo arche, que incluem ordem, ordenação, regras, poder, mas principalmente princípio ordenador, fundamentador, fundador/originante. Todavia, face a essa riqueza e complexidade de evocações, os internacionalistas decidiram (é o termo), por razões que se observarão, que a cena internacional é constitutivamente anárquica, quer dizer desordenada, ausente de regras que desempenhem um papel central e decisivo, por causa do estado de guerra que a define e lhe dá vida. O estado de guerra é ontologicamente patente/activo e por vezes também fenomenologicamente efectivo. Escusado será dizer que o conceito de anarquia (no senso de desordem) pressupõe uma unidade inextrincável com o conceito de guerra3, mas nada obriga a considerar a ausência de uma autoridade política central na cena internacional como sinónimo de ausência de regras e de violência bélica como pano de fundo. Apenas partindo da ideia explícita/implícita de que, em última instância, tudo o que há são indivíduos/mónadas isolados e mutuamente excludentes (analogando depois a eles todos os actores possíveis) se chega à conclusão (tida como natural) de que não havendo um poder que os enquadre e aperre (aos indivíduos) forçosamente entram em conflito, inibindo o aparecimento de regras pregnantes; inibição essa que exacerba ainda mais esse mesmo conflito4.

É claro que infirmando a validade do conceito de anarquia internacional, as teses realistas não ficam em muito bom estado, porquanto têm insistido em fazer dele um conceito-chave. Mas o que se observará, depois de uma sintética avaliação crítica da noção de poder no(s) realismo(s), é que o conceito de anarquia internacional não dispõe de qualquer poder discriminante no que concerne às relações de poder, e dessa forma não serve sequer o propósito para o qual foi criado.

Em suma, e em jeito de prolepse, pode dizer-se que não existem relações internacionais enquanto relações de poder que sejam anárquicas, nem, ademais, qualquer configuração política da cena internacional o pode ser. Se nem a modernidade, com o ensimesmamento da guerra como instrumento político de jure e com o advento da lógica soberana, «conseguiu erigir» uma anarquia internacional, então nenhum espaço resta para a operacionalização do conceito5.

 

2.

O realismo crê encontrar no pensamento de Hobbes um sustentáculo histórico e teórico para o conceito de anarquia internacional. Contudo, Hobbes não pode caucionar um tal conceito. O estado de natureza em Hobbes, como mostrámos noutro lugar6, diz respeito ao poder discricionário concentrado do soberano relativamente aos súbditos, muito mais que a qualquer outra coisa. Na verdade, quando o filósofo inglês fala no estado de natureza, está em causa uma sociedade dominada pelo individualismo possessivo de mercado, em que os homens são antes de mais proprietários das suas faculdades, que procuram assegurar, imunizar face aos outros. Uma sociedade assim, tende em permanência para a desagregação se não se pressupuser o ferrete soberano, pelo que é ao soberano que está acometida toda a energia lupina para combater os desmandos e perseguir como senhor absoluto os que queiram provocar a anarquia. Mais ainda, apenas a soberania pode instituir uma sociedade desse género, subtraindo os homens aos vínculos comuns, transformando-os em indivíduos, aqueles que não podem ser divididos, interiormente soberanos, livres de todos os outros, assegurados na sua «liberdade», realmente sujeitos de acção, isto é, ao soberano sujeitados7. Como escreveu com inteiro a propósito Esposito, «a soberania é o não ser em comum dos indivíduos. A forma política da sua dessocialização»8 – do romper o ser e estar em comum, que é a única fórmula a poder barrar o poder do soberano, iniciando a sua dissolução e teria sido a única a impossibilitar que o soberano chegasse a sê-lo, melhor dizendo, chegasse a ser, porque se teria impedido que a soberania fosse materializável e logo se tivesse estabelecido como produto acabado e operativo.

Ora, o que acabámos de descrever é o mais próximo que se está da anarquia, e não tanto porque o soberano seja lobo do homem sem mais, ou porque o estado de excepção se faça regra e orgia de sangue sem ser por nada, ou porque não possa ser doutra maneira (o que de qualquer forma, quereria já sempre dizer que o poder seria anarquizante no seu ponto de ebulição, no seu momento paroxístico, mas como capacidade, maximamente ordenadora, de criar submissão)9, mas porque o poder soberano no seu todo parece ter uma origem ou, pelo menos, um fundo teológico-económico gestionário, essencialmente vicário, em que auctoritas e potestas se remetem mutuamente, cada uma das figuras de poder fazendo as vezes da outra (numa remissão à economia intratrinitária), daí derivando a sua insubstancialidade, configurando-se tão-só como economia (oikonomia)10, e o seu paradoxal carácter de arche an-árquica, pois nenhuma dessas figuras está, em exclusivo, em posição de fundamento. Não obedecendo o soberano a nenhum substrato claro que ultimamente o constranja e informe, ordenando-o, pondo-o numa determinada ordem e sequência, que seria aquela pela qual depois ele agiria11.

Conclui-se então que o estado de natureza descreve o mecanismo do poder soberano e que, se abstrairmos (em segundo grau) do soberano, aquilo com que ficamos não é com a ausência de soberania, com um estado natural prévio, mas com uma sociedade que nem sequer poderia logicamente existir. Não só porque implodiria, tendo em atenção os protagonistas que a comporiam, mas muito antes disso, porque começaria por não existir, passe a expressão, já que apenas o soberano e só o soberano faz dela o que é.

No âmbito internacional, as ilações que se podem retirar são claras. Embora não haja nenhum governo ou árbitro internacional, Hobbes não considera ser a vida internacional pautada pela anarquia e inviável por si, pelo contrário. Se olharmos o parágrafo final do capítulo XXX do Leviatã verificamos até que a observância do direito das gentes entre os soberanos é uma prática perfeitamente plausível, no que parece ser uma alusão suareziana12.

O que está em causa é que a passagem do âmbito interno ao âmbito externo implica diferenças de teor qualitativo a salvaguardar, desde logo na passagem do micro ao macro, bem visível na dificuldade de tornar análogos estado e indivíduo, uma vez que os estados ainda não possuem personalidade jurídica e a própria pessoalidade moral estadual está apenas a emergir13.

Depois, a racionalização soberana, embora estimule como ninguém a possibilidade da violência do poder, o poder total e mesmo as famigeradas tanatopolíticas que viriam a ocorrer no século XX, fá-lo mediante certos canais, certas vias, e até uma certa prudência (no sentido vulgar), se pensarmos nas razões de hospitalidade, inevitáveis ao im-poder do poder, cujo significado desenvolvemos à frente. A guerra é um fenómeno colectivo distinto da descontinuidade passional dos indivíduos e das suas motivações. «Ao enfrentar o fenómeno guerra o cidadão não se limita a ponderar essa instância situada num patamar qualitativamente superior que é o Estado, mas tem de se enredar numa teia muito mais oblíqua e ambígua que são as relações entre estados»14. Logo, a ideia de anarquia baseada na transposição sem mais do estado de natureza entre indivíduos não colhe. Com tudo isso, dá-se uma contenção de base (o outro como hostis e não como inimicus) em tudo oposta à explosão figadal de ódio inerente à anarquia pura e ostensiva, que funciona como fundo latente de todas as leituras políticas da anarquia, incluindo a que é feita em RI – outra coisa é que a dinâmica soberana crie condições para a ascensão aos extremos, logo para a concretização plena da guerra absoluta clausewitziana, que ao soberano e a todos fugirá do controlo por via da gramática própria, da lógica interna que preside ao universo bélico naquilo que tem de irredutível.

Por fim, e razão decisiva, não existe anarquia internacional porque não há nenhum soberano internacional, não havendo, por conseguinte, nenhum estado de natureza real ou larvar. Como não existe a sociedade política internacional, montada nos mesmos moldes individualistas possessivos que caracterizam as diferentes sociedades políticas, e que tendem a par e passo a desagregá-las, não se torna necessário o ferrete soberano que impede a luta de todos contra todos, assumindo em si o monopólio da violência15.

 

3.

A impossibilidade de estribar em Hobbes o conceito de anarquia internacional não o derrota de imediato, apenas diz da má escolha dos seus putativos suportes. Fica de pé a hipótese teórica de a anarquia internacional continuar a sustentar a ideia de que as relações internacionais são basicamente relações de poder, tanto mais que a história do período moderno parece servir-lhe de caução – à ideia da política internacional como política de poder.

Na verdade, a idade Moderna, aquela em que emergem as relações internacionais, traz a autonomização factorial da política, fazendo brilhar a primazia do estado como fim em si mesmo, encimado pela figura da soberania, que a razão de Estado tão bem materializa. Daqui decorrendo a internalização da guerra como fazendo parte de jure do aparato político e do seu exercício. Doravante, guerra e paz são, em muito, uma questão de calculismo, de equilíbrio ou desequilíbrio de poder (mesmo de luta pelo poder, com o advento dos nacionalismos), em suma, uma relação de força.

Porém, os realistas são demasiado apressados a sinalizar o novo estado de coisas. Ele não está de modo nenhum assim definido no período primomoderno e, pelo menos na Europa Meridional, o modelo centralizador estatal de desapropriação das comunidades políticas (do corpo político em face da cabeça) da sua politicidade enquanto condição estrutural e substantiva de ser – como que uma segunda pele enervada no corpo – e respectivas competências jurídicas e práticas irá sofrer inúmeras resistências, das quais o pensamento da segunda escolástica não é a menor. É certo que no plano estritamente internacional a reforma dilacera uma ordem preexistente. Mas embora o equilíbrio vá sendo cada vez mais reflectido como um equilíbrio de poder, por via da lógica soberana em franca implantação, durante muito tempo é ainda o equilíbrio em si, reforçado pela solidariedade, que dá a nota na procura da paz16. O processo histórico é lento e os realistas antecipam-no de forma extemporânea, provavelmente tomando como boa a leitura rankiana.

Como já o mostrou João Marques de Almeida, Ranke retroprojecta para os alvores da idade Moderna os racionais nacionalistas de luta pelo poder do seu tempo, nomeadamente a defesa de um estado alemão forte dominado pela Prússia, tudo em nome de uma pretensa análise positiva e realista da história, que pretenderia contá-la tal como efectivamente se passou. Ainda assim, em Ranke o motor da história reside no nacionalismo e não na anarquia. Seja como for, parece ser ao ensimesmamento acrítico do paradigma rankiano que o realismo clássico vai tirar os seus principais argumentos17.

Por outro lado, há já muitos anos que a ideia de relações internacionais como relações de poder sofre uma enorme contestação, não só nos meios académicos mas na própria compreensão da cena internacional por parte dos decisores. Na pré-compreensão básica destes para a acção voltam a insinuar-se com força outros racionais.

Tudo contabilizado, aos realistas resta um quinhão da razão em relação à ideia de relações internacionais como relações de poder, e só a essa, porquanto a imperatividade da lógica soberana (de um poder absoluto, perpétuo e indivisível) lança na cena internacional um potencial de exclusão e de violência inescapável enquanto ela durar.

 

3.1

Mas a história não é o único problema realista. As diferentes correntes realistas tendem a focar a sua atenção unicamente na ideia de poder como imposição e como coerção, seja hard ou soft18. Esquecendo, desde logo, o poder como determinação de modos de vida, cada vez mais importante. Neste caso, não está em causa um poder imposto por alguém a alguém, embora possa ter surgido em primeira instância dessa imposição.

O que se trata aqui é da conformação dos sujeitos, dos actores, a determinadas mundividências que se vão infiltrando, pressionam plasmando-se sobre outras, acabando muitas vezes por se assenhorear em seguida de todo o espaço. Não se deve pensar, porém, em nenhum poder oculto, indomável e estritamente impessoal e incontrolável, antes na autonomia relativa que determinados modos de vida vão adquirindo e do arrasto que trazem por si, inclusive até sobre o centro emissor donde partiram.

Tentando concretizar, e olhando para um mundo globalizado e não compartimentado onde este poder como determinação de modos de vida sobressai particularmente, atentemos, por exemplo, no american way of life (ou na língua inglesa), e de como o mesmo e alguns dos seus produtos já se autonomizaram da própria matriz estratégica. É certo que esta determinação, uma conformação de modos de vida, é perfeitamente usável e está ao dispor das potências enquanto forma possível de poder impositivo, mas não é a mesma coisa como está bom de ver.

Ademais, a questão do poder enquanto pura potência também não parece ser atendida. Referimo-nos à situação em que, dadas certas condições mínimas de presença humana politicamente organizada no espaço, para alguns actores face a outros, a condição de ser potência parece ser da ordem do dificilmente reversível, já que o simplesmente estar ali, o ser potente, no que tem de irredutível ao acto e coincide por isso idealmente com a inacção e o repouso, é expressão de poder independentemente do que se faça. Dir-se-ia, em termos teóricos, que potência e poder coincidem então perfeitamente e que o poder atinge dessa forma o auge da sua glória. Embora não haja, felizmente, uma materialização empírica plena de uma tal situação ela tem efectividade porque concerne à arquitectura do poder e porque pode ter (e tem tido ao longo da história) aproximações concretas.

 

3.2

As debilidades das teses realistas não se esgotam, no entanto, na ausência de tratamento cabal das diferentes modalidades de poder19. Num registo mais epistemológico, o realismo pode mesmo ser autocontraditório, porque se tudo se resume a relações de poder, também o realismo a elas não escapa, sendo uma particular forma de poder académico com clara influência nas instâncias decisoras. Logo a sua força é relativa à sua vigência como forma imperante (de poder) de análise e de apoio à decisão e quando esta vier a cessar, cessa igualmente a força de penetração da sua visée; afinal não universal, mas questão de poder simpliciter. Não querendo submeter-se à lógica de poder que preconiza, então o seu programa é inverificável e sem significado. E dizemo-lo sem rebuço, porque se ainda há na ciência teoria em que o verificacionismo assenta que nem uma luva, o realismo é essa teoria.

No fundo, as correntes realistas confundem linhas epistemológicas distintas que não têm porque se harmonizar, podendo até ser contraditórias entre si. Uma primeira linha defendida pelo realismo é a de que não devemos ser nefelibatas e abandonar a realidade no sentido trivial do termo. A análise internacional exige bom senso. Ora, esta linha é de imediato mesclada com uma outra, hoje indefensável em termos epistemológicos, que defende um realismo gnoseológico ingénuo. A realidade, no caso vertente, internacional, ditaria sem mais ou quase a forma como a conhecemos. A estas duas linhas junta-se outra, de extracção romântica, que defende ser o homem uma potência autotranscendente, no sentido que se afirma como vontade (de poder), não havendo outra legalidade superveniente. Os homens são livres e aderem apenas à sua vontade de afirmação e reconhecimento uns face aos outros, que é o que é e que lhes está no sangue, por assim dizer. Porém, este é o que é e o estar no sangue, que supostamente os livra das legalidades impostas pelos idealismos e pelas filosofias da história de coloração diversa não se coadunam em nada com a liberdade romântica da vontade, antes a estrangulam. Isto para já não falar da tentação sistémica mecanicista dos neo-realismos, incompatível de raiz com a ideia de potência autotranscendente.

 

3.3

Deixámos para o fim, aquele que nos parece ser o argumento decisivo contra o realismo. Um argumento que explora uma faceta da soberania e do poder soberano de facto de enormes repercussões e sobre a qual se tem abatido, nas diversas correntes realistas, um espantoso silêncio.

Na realidade, o poder soberano, apesar do seu império, nunca se manifesta pleno e puro na realidade, querendo com isto dizer que o reconhecimento mútuo de poderes soberanos assenta não apenas na força, no puro poder, mas também numa impuissance, numa relativa incapacidade de base para transformar a potência em poder, ou de fazer coincidir quase sem fissuras (potência que quase se esgota em acto) potência e poder; numa passividade de fundo que é a contraluz da cinética soberana – claro está, não no sentido genérico de não poder agir, ou de não poder ser agido, até porque o ser agido, o estar originariamente aberto ao outro ou intimado por ele é essencial à passividade, à potência que se não esgota no acto, antes no sentido da ontologia política, de uma pressão originária indeclinável sobre a lógica de poder (inerente à soberania), que se apresenta sempre como pôr em acto e assunção encarniçada desse pôr em acto até às últimas consequências, expulsando ou subjugando as outras possibilidades. Sendo, portanto, uma lógica de domínio, do princípio da identidade, do irreversível, enquanto excludentes.

Por mais que as soberanias testem mutuamente o seu poder, em particular através da guerra, nunca o conseguem fazer indefinidamente, pondo à prova todas e cada uma das facetas do rival. De modo que não resta às soberanias senão a opção do reconhecimento de parte a parte no âmago das suas relações, de uma legitimidade essencial que tanto se exime quanto transborda das relações de força. No essencial, as soberanias vêem-se compelidas, a contragosto, ao reconhecimento da alteridade de princípio e com ela de um estado de paz20, independentemente dos distintos meios de escrutínio do poder adverso. E o que é mais, vêm, por essa via da alteridade e da hospitalidade visceral que acarreta, da qual não nos podemos ultimamente livrar, questionando de raiz o poder em si nas suas diversas formas: o poder impositivo; o poder enquanto determinação de modos de vida; ou o poder como pura potência.

Todavia, esta contenção estrutural não se deve às soberanias o quererem (por isso é até, num primeiro momento, inesperada), nem infirma o matricial carácter ab-soluto das mesmas, tão-somente mostra que no domínio do finito o absoluto nunca pode ser tão absoluto assim, manifestando-se mais como o irrelativo, para dizê-lo de alguma forma – apesar de no seu zénite o exercício soberano atingir cristas inauditas de violência.

O que implica que na realidade as soberanias nunca se apresentem em estado puro, e que o raio de acção de cada uma em concreto varia em termos espacio-temporais21.

Esta mesma contenção também pode ser observada doutra maneira, atentando à articulação inovadora que a soberania vem trazer à relação entre a paz e a guerra. É ao soberano, que se caracteriza por ter a faculdade de proclamar o Estado de excepção (e sendo o Estado de excepção caracterizado não pelo vazio anárquico mas pela indefinição legal, política e ôntica adscrita à discricionariedade violenta) que se fica a dever em grande parte a normalização política da guerra, à sua politização. O que o soberano faz é concatenar os mundos da paz e da guerra apartados até à modernidade, encaixar ordem e desordem uma na outra num novo estado, que exprime a possibilidade, a eventualidade ontológica e fenomenológica da guerra permanente, porque doravante a guerra é considerada como acção política ordinária.

Porém, para que o estado de indefinição prospere, nunca a excepção bélica poderia ser ostensiva e grosseira excepção fáctica feita regra, caso comum, muito menos fundo ontológico permanentemente activo, como querem os defensores da imagem de anarquia internacional. Não apenas porque ninguém aguentaria um tal estado de coisas por muito tempo, mas sobretudo porque isso seria remitificar o estado de guerra, ressacralizando-o como potência demoníaca, e, desse modo, colocando-o fora do comércio normal dos homens22, por mais tempo que vigorasse, ou precisamente por vigorar tanto tempo – como a guerra quebra o discorrer comum dos processos sociais, o perenizar o estado de guerra é aqui inimigo da normalização.

A normalização da guerra pede a sua dessacralização e a secularização, de resto uma marca de água de desabrochar da razão de estado e da lógica soberana, só é possível com o tornar profano, por mais que pro-fanum o seja por relação ao sagrado – a soberania desenvolve-se por transposição de caracteres de natureza sacral. Mas o ente profano somente consegue ser, na melhor das hipóteses, um deus mortal, e ser um deus mortal é o máximo que o soberano pode almejar. A extensão da desordem ou a sua estabilização nuclear podem muito bem ser a morte do artista, isto é, do soberano, porque, por definição, o que se subtrai à ordem escapa à suserania do poder absoluto de dar e quebrar a lei23 – por mais que esta paradoxal ordem assente, quiçá por força do seu fundo teológico an-árquico, mas sem a bondade do verdadeiro fundamento infundado, na dissolução permanente dos laços comuns entre os homens, que em última instância sempre evita por meio de uma união artificial de indivíduos; ou seja, por intermédio de uma união de divididos até à exaustão uns face aos outros e face ao comum.

Em síntese, o soberano vê-se confrontado com uma obrigada liberalidade e sentido de contenção, que tem por detrás uma hospitalidade ultimamente maior do que a simples munificência, não o esqueçamos, porque lhe é impossível não ser um deus mortal.

Mas isso, pese embora seja demolidor para o argumento da existência de anarquia internacional, apenas numa pequena parcela aponta para um quadro menos mau. Porque, como já Benjamin percebera relativamente às tentações do soberano barroco face ao mundo e ao seu próprio corpo finito, a soberania tende a culminar em tragédia, uma vez que na criatura, enquanto tal finita, a potência de realização se materializa sempre em acto limitado, em mero poder de facto (contingente)24, que no caso se quer puro poder (que de qualquer forma nunca consegue alcançar absolutamente) e por isso denega todas as outras potencialidades e manifestações. Ao absorver todo o campo disponível, a soberania acaba por não deixar espaço sobrante para mais nada nem ninguém.

Enquanto divindade mortal, a soberania configura assim uma divinização impossível, por isso ela é mortal no duplo sentido de que não escapa às limitações dos entes, à sua contingência, mas também no sentido em que mata, esmaga, violenta, por natureza. ou melhor, na medida em que pretende ser como o absoluto de Deus não passando de um absoluto terrestre (criatural), a figura da soberania incorre na tentação de transformar o limitado em ilimitado, culminando naturalmente na desmesura, na violenta arrogância do puro poder, na fuga para a frente em que incorre sempre qualquer criação que o homem queira pôr no lugar de Deus, julgando com isso poder afastar a vã glória do seu im-poder e escapar à caducidade. Se a estas limitações, desde logo nocionais, da soberania juntarmos as fragilidades em sentido estrito das pessoas em concreto (isto é, do seu corpo natural, para usar uma metáfora de grande calado histórico) que encarnam o poder, ou das constelações históricas que assumem a forma soberana25, pode aquilatar-se da dimensão da tragédia26.

Seja como for, por mais limitado que seja o ser da soberania comparativamente ao molde metafísico em que se quer rever, ou em relação ao fundamento antropológico donde nasce, enquanto ente histórico, uma dia vindo ao mundo e condenado a desaparecer, o ser soberano não deixa de, infelizmente, justificar os atributos de que se diz portador.

O mesmo é dizer que, se o absoluto da soberania permite pontos de fuga e a própria soberania assenta num ponto de fuga em relação à sua pura determinação, ainda assim o absoluto «que resta», no nível em que nos confrontamos com ele, é o que matricialmente anuncia: ser ab-soluto; e como tal, inescapavelmente violento quando se exerce sobre nós, que a ele estamos abandonados. Na soberania conflui todo o absoluto humano que pudemos imaginar e pôr em prática e por isso o seu exercício cobre-nos absolutamente. Porém, como o absoluto humano diz respeito a um ser contingente, partícipe da liberdade integral da transcendência, e que não tem uma determinação acabada de uma vez por todas, o deslizar contínuo dessa mesma contingência consegue transbordar a frente soberana (por mais extensa que seja, porquanto é só uma medida de extensão humana)27, e escapar a qualquer cerco dito irrevogável com que esta nos procure acuar. Daí que o absoluto da soberania seja real e corresponda, sem contradição, àquilo que o conceito obriga e, ao mesmo tempo, não possa ser nunca definitivo, por consequência, absolutamente absoluto, por mais que se não resuma ao irrelativo.

Se apenas Deus não tem esquinas e, eventualmente, as coisas e os restantes seres vivos estão presos às suas esquinas, o homem consiste em estar sempre a dobrar aquelas que lhe são próprias. O absoluto e incindível da soberania é a representação de uma esquina decisiva inultrapassável, que afinal se tem de conformar ao esquema conhecido: se há esquinas são para dobrar. O absoluto sem mais, simpliciter, precisamente por isso não tem esquinas, mas por essa mesma razão não pode ser humano. A soberania, sim, é humana e não sobre-humana, mas como a face satânica que emerge por dentro do homem, qual filha do obsceno, para bloqueá-lo na sua dimensão mais própria, na sua potência conectiva e transitiva de ser-para-o-outro. Derivando daí a expressão do absoluto como barreira ao primevo estado de paz, que, de qualquer forma, não consegue impedir, porque fruto de um «absoluto maior».

Chegados a este ponto, o não reconhecimento deste im-poder nuclear de facto no exercício do próprio poder põe em sérios apuros o realismo, ilustrando à maravilha as suas tremendas insuficiências, que já se vinham revelando, como o leitor não terá deixado de notar. É certo que não infirma a quota-parte de verdade que o realismo encerra, mas revela que este não passa de um conjunto de intuições certeiras que deveriam fazer parte do património das RI. O realismo é a tradição que compagina essas intuições, em particular, a intuição de que as relações de poder não podem ser obviadas na compreensão da cena internacional, desempenhando, enquanto os racionais soberanos forem prevalecentes, um papel de extrema relevância. No entanto, isso não deveria ter sido suficiente para forjar uma escola. Fundar toda uma escola à volta da importância de determinados termos de uma equação não é ainda fazer matemática. E a equação do poder é muito mais complexa que afirmar ser a política internacional, em última instância, uma política de poder.

 

4.

Mas se o realismo guarda uma parcela de verdade, o conceito de anarquia internacional, que pressupõe que as relações internacionais são relações de poder, choque de poderes, logo em primeira e constitutiva instância, sem mais, não resiste ao embate com a impuissance relativa de fundo do poder soberano de facto. A anarquia internacional é uma ideia definitivamente fora de jogo, uma ideia que, afinal nem a soberania cauciona.

Pormenorizando essa primeira contenção estrutural inerente ao exercício soberano, se a mesma não sai da lavra da soberania como árquica tout court, mas é meramente gestionária, expedita, porque resposta prática a uma força ordenadora que não é capaz de controlar, não deixa, à partida, de impossibilitar o anárquico. Porém, essa contenção primeira não se resume a isso. Como se pode depreender do argumentário exposto na secção antecedente, a contenção primeira revela ter arqui-inscita uma espécie de marca de água, que nem a soberania consegue apagar. uma arche de origem, indelével, que é a arche da sororidade e da diaconia28. Quer dizer que a soberania, fazendo agora caso omisso do elevado preço prático do seu momento cinético total, não cauciona, pelo contrário, impossibilita a materialização da anarquia internacional. De resto, e muito a seu pesar, por dentro da contenção soberana, em si mesma tão-só económica, aninha-se uma outra imemorial e muito mais potente que dá o tom e sem a qual nem haveria contenção soberana. Onde era suposto ver anarquia o que se observa é ordem – princípio ordenador, seria mais preciso.

Ou sintetizando o assunto pela via concomitante da novel articulação histórica que o soberano faz entre a paz e a guerra, deve dizer-se que um estado de guerra estrutural relativo tanto à pré-compreensão como à compreensão ontológicas dos actores políticos no seu próprio ser não é de todo compatível com um estado de soberania.

O estado de guerra tornado regra liquidaria as pretensões soberanas. Se o fundo operativo das relações internacionais fosse a guerra a soberania nunca teria existido, e como a soberania existe e os racionais soberanos ainda são dominantes, o estado de guerra não pode ser determinante. Onde grassam os soberanos a anarquia pura e simples não faz sentido, a guerra não é a palavra primeira, apenas a sua possibilidade (normalizada e naturalizada pelo soberano) o é. Contudo, como estamos a falar do domínio ontológico, a diferença entre a eventualidade de ser o e o registo de ser é tremenda, tanto mais, não o esqueçamos, que não se trata somente da consistência lógica do ser da soberania ficar afectada radicalmente pelos abismos entrópicos da guerra em si feitos motor da política internacional, mas da realidade primeiríssima da sororidade, incontornável até para os soberanos, porque verdadeira imago Dei e, por consequência, força expansiva ilimitada na abertura ao interminável – que quando cumprida será salva e revitalizada para todo o sempre. ante isto, o poder de obstruir será não mais que um poder de morte e como tal igualmente mortal, preso que está às ilusões impropriamente julgadas absolutas de «divindades» afinal tão criaturais.

 

4.1

É certo que as escolas que se opõem ao realismo, nas quais, não obstante, o conceito de anarquia internacional perpassa como uma sombra, defendem que a tese da anarquia é unilateral na caracterização da cena internacional, que é tão normativa quanto as restantes, contrariamente à ideia de que seria uma descrição fidedigna da realidade, e que como tal o mundo seria melhor servido com outra normatividade. No fundo, o que há de descritivo na realidade até nos diz que os actores, sem excepção, procuram desempenhar determinado papel, correspondente a outras tantas expectativas dos demais actores, que caso sejam goradas comportam sanções. Não fosse assim, fossem as relações internacionais de puro poder, e que necessidade teriam as principais potências de justificar o seu comportamento? Quando isso pode ser contraproducente, não apenas porque as justificações atrasam a acção, com consequências imprevistas, como podem revelar-se falsas, incrementando a desconfiança. Essas críticas são todas correctas, mas nada dizem sobre o mito que efectivamente é a anarquia internacional.

 

4.2

A anarquia internacional não significa, na argumentação realista, como se pode depreender do exposto anteriormente, um permanente e generalizado estado de guerra ou de desordem. A guerra não tem, na vida internacional corrente, um carácter de necessidade; não existe nem tem de existir nenhum estado fático de guerra constante, às vezes adormecido, outras em lume brando, outras ainda em fogo vivo – não sendo possível falar, nesse preciso sentido, na política como continuação da guerra por outros meios. O conceito de anarquia internacional significa antes que, em última análise, cada actor internacional não pode depender senão das suas capacidades impositivas, do seu poder sem mais. Querendo-se com isto dizer que mesmo não havendo guerra nem desordem efectiva (fenomenologia), esta pende permanentemente sobre os actores, mais que como possibilidade, como a razão de ser última (ontológica) do seu comportamento29. Mas então surgem duas vias de identificação genética da anarquia, qualquer delas não sendo estritamente política nem tendo a ver com o poder em si, tal como são formuladas.

Uma delas, lavrada em meios norte-americanos, e derivada de uma visão apocalíptica e messiânica, no pior sentido dos termos, de contornos dualistas gnósticos, faz depender o exercício dos actores de um contexto desordenado dado de antemão, que uma antropologia pessimista de raiz individualista possessiva reforça30. Um contexto onde o poder está subordinado a potências maléficas, puramente terrenais, face às quais conviria aos Estados Unidos isolarem-se, ou, num sentido contrário, tentar domá-las. Os Estados Unidos tomariam o lugar do velho império romano enquanto katechon, e o resto do mundo, esse, de algum modo, já viveria sobre o reinado do anti-Cristo31. Em qualquer caso, as questões de poder estariam subordinadas a questões escatológicas, de pouca usança para definir a cena internacional moderna e contemporânea, precisamente aquela que se secularizou e na qual os racionais do poder em si ganham verdadeira autonomia. Logo, a ideia de anarquia internacional, por esta via, não toca o cerne do poder e as relações internacionais como relações essencialmente de poder não podem ser explicadas por ela. O poder na sua expressão máxima, de natureza soberana, é contido desde o primeiro momento e agora percebe-se porque não se percebeu isso mesmo, porque a visada em causa não era política, daí que tenha passado ao lado da lógica de poder, das suas forças e fraquezas.

Com a segunda via, afasta-se de vez a possibilidade de engendrar uma defesa para o conceito de anarquia internacional aparentando-o com a linha foucaultiana. Segundo esta linha, a guerra, e com ela o poder nu, funda de forma constitutiva a modernidade, pelo menos32. Os foucaultianos centram-se no poder em si mesmo, qual poder-no-mundo, poder-aí, em vez de ser-no-mundo, ser-aí, assente historicamente em estruturas de tendência imperial, mas ao mesmo tempo e de maneira crescente, com enorme capilaridade e disseminação reticular. Já os defensores da tese da anarquia internacional, nesta segunda via, fazem derivar a anarquia directamente de um modelo individualista possessivo de inspiração liberal (a que não é alheio, como vimos, pelo contrário, a primeira via)33. A anarquia existe porque os indivíduos enquanto átomos possessivos, competitivos e rivais, que estão na base de qualquer organização social, na ausência de um poder que os constranja lutam até à morte pela sobrevivência. Ora, aquilo que se mostra desde logo à evidência, seguindo estritamente o raciocínio dos proponentes desta segunda via, é a ausência de poder, de dinâmicas de poder, e não a omnipotência do mesmo. Isto só pode querer dizer, sendo coerentes com a sua perspectiva, que o que está na base da anarquia é um problema antropológico, económico, que tange, quando muito, a ontologia política, e de maneira nenhuma o problema da secularização do poder e da sua alforria enquanto puro poder: da sua autonomização através da novel figura do Estado, coroado como fim majestático em si mesmo através da soberania, materializada esta na razão de Estado, na salvação pública. Um poder soberano que politicamente, sabêmo-lo, transforma os homens em indivíduos, dessocializando-os, mas que, como já vimos, não consegue ser de todo incontido em absoluto, especialmente no âmbito externo. Mas como poderiam os proponentes desta segunda via da tese da anarquia internacional alcançar tal conclusão, se a preocupação deles não era o poder. Uma vez mais, a tese da anarquia não toca o cerne do poder nem pode justificar serem as relações internacionais basicamente relações de poder.

Todavia, as consequências políticas mesmo daquilo que não é directamente político no novo paradigma individualista são tão profundas que poderiam fazê-los, aos proponentes do conceito de anarquia internacional, chegar lá, ao que verdadeiramente estava em causa com a nova ordem soberana, e com a internalização da guerra no edifício político, como exercício político ordinário a par da paz – uma questão de cálculo. Infelizmente, os proponentes de tal conceito derivam o seu raciocínio, seja de premissas escatológicas, seja de premissas antropológicas quase sem o saberem, ao jeito do senso comum inquestionado donde partem. e quando vão mais além parecem basear-se em leituras indirectas e imprecisas, o que é visível na completa tergiversação de Hobbes.

 

5.

Metanoia – Mas não façamos de ingénuos, nem nos deixemos levar por tolos. Toda a digressão até aqui empreendida foi-o apenas por antanagoge, e como que uma quase contínua suspensão do juízo principal, porque aquilo que o discurso da anarquia internacional quer na prática de há muito é sabido.

É célebre uma inspiradora passagem de Benjamin, inúmeras vezes glosada e norte de tantos percursos, e que também nós devemos reproduzir: «a tradição dos oprimidos ensina-nos que o “estado de excepção” em que vivemos é regra. Temos de chegar a um conceito de história que corresponda a esta ideia. Só então se perfilará diante dos nossos olhos, como nossa tarefa, a necessidade de provocar o verdadeiro estado de excepção.»34

Cá está em acção mais um dos índices secretos que caracterizam a metodologia benjaminiana, a mostrar que não há anarquia internacional nenhuma por detrás das ruínas da história, mas sim uma ordem bem precisa de potestades e dominâncias em acto soberano. Evocar a anarquia serve antes de mais para preservar o poder, ou, enveredando por truques de ilusionismo, para o mascarar debaixo da ideia que o mundo é caótico e depende da roda da fortuna, estando todos por igual a ela submetidos, mesmo que assim não pareça acontecer: vítimas e verdugos; oprimidos e opressores; deserdados da terra e privilegiados – tudo seria fruto do acaso, mas de um acaso como fado, superlativamente arbitrário, contra o qual seria vão intentar qualquer acção.

Para começar a escancarar a porta ao messias, para que o messias chegue só depois de ter chegado, quando já não for preciso, a não ser para nos exaltar ao jubileu perpétuo, devemos libertar-nos dos mitos que nos enfeitiçam.

Já é tempo, pois, de passar a certidão de óbito ao conceito de anarquia internacional. Mais que um instrumento analítico que não explica nem pode explicar nada, um dispositivo que nos logra e nos pretende manter cativos.

 

NOTAS

* A pedido do autor este texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

1 Por exemplo, Alexander Wendt teria sido muito mais consequente se em vez de dizer que a anarquia «is what states make of it», tivesse dito que a anarquia é somente aquilo (aquele constructo) que os pensadores queiram fazer dela. Cf. Wendt, Alexander – «Anarchy is what states make of it: the social construction of power politics». In International Organization. Vol. 46, N.º 2, 1992, pp. 391 -425,         [ Links ] e ainda, de Wendt, Alexander – Social Theory of International Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1999,         [ Links ] em particular o capítulo 6, intitulado «Three cultures of anarchy» (pp. 246 -312). O problema é que Wendt acredita que o conceito de anarquia é operacional porque há condições para o idear, ensimesmar e reproduzir, em virtude da possibilidade de guerra sempre subjacente na ausência de uma autoridade central na cena internacional (mesmo numa anarquia kantiana, expressão que não é nada despicienda, pois descodifica a sua sensibilidade sobre a ausência ou a superação do conflito, que se configura a partir do conflito). Mas das duas uma: ou o estado de guerra é ontologicamente patente e fenomenologicamente latente, com maior ou menor probabilidade de ocorrência – presunção que o presente artigo pretende confutar –, ou o estado de guerra é apenas ontologicamente eventual e nesse caso não há lugar a anarquia porquanto, em termos ontológicos, a diferença entre o ser e a sua eventualidade é como do dia para a noite, para dizê-lo de algum modo. Não estamos seguros de qual seja a posição de Wendt.

2 Numa dissertação de doutoramento defendida não há muito, também Luís Tomé julga pertinente afirmar que na perspectiva realista o domínio das relações internacionais é anárquico e permanentemente competitivo-conflitual. Salientando que está a incidir nos seus traços definidores cruciais, sem prejuízo das diversas variantes realistas. Cf. Tomé, Luís Leitão – A Geopolítica e o Complexo de Segurança na Ásia Oriental: Questões Teóricas e Conceptuais. Dissertação de doutoramento policopiada. Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Abril de 2010, p. 26. Disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/14031/1/A%20geopol%C3%ADtica%20e%20o%20complexo%20de%20seguran%C3%A7a%20na%20%C3%81sia.pdf .         [ Links ] Naturalmente que as variantes realistas em que estamos a pensar se cingem em exclusivo à ciência das relações internacionais (RI).

3 Neste particular, Kenneth Waltz é provavelmente o mais coerente de todos os internacionalistas que brandem o conceito de anarquia, ao afirmar, com meridiana clareza e de forma amplamente justificada, que entre homens ou entre estados a anarquia (enquanto desordenamento) está associada à violência. Cf. Waltz, Kenneth – Theory of International Politics. Reading: Addison-Wesley, 1979, p. 102.         [ Links ] É verdade que ao parafrasear Waltz omitimos uma outra sua frase intercalada que identifica anarquia com ausência de governo – literalmente a passagem reza assim: «Among men as among states, anarchy, or the absence of government, is asociated with occurrence of violence.» Mas omitimo-la pela sua ambiguidade. Se a mesma quer significar ausência de regras, então nada há a acrescentar. Já no caso de a frase apontar para ausência de uma autoridade central de governo, então sim, há muito a dizer, uma vez que a ausência de uma tal autoridade não implica necessariamente a inexistência de regras políticas comuns, como o mostram as teses da segunda escolástica (teses que configuram a primeira aproximação teórica às relações internacionais) e, até certo ponto, as primícias das relações internacionais de facto que emergem no período primomoderno.

4 Não deve ser um acaso que a grande tradição realista tenha nascido no mundo anglo-saxónico, berço do moderno individualismo possessivo (que marca por igual a síntese neoliberal em RI, que neste ponto não se nos afigura diferente da realista no essencial). E se pensarmos que também as restantes tradições principais das RI, bem como as novas correntes críticas, são oriundas do mundo anglo-saxónico ou perfilham em grande parte a koine individualista contemporânea, talvez não seja estranho que o conceito de anarquia internacional continue a ser considerado como operacional, mesmo quando fortemente criticado. Todavia, nem sequer para o realismo, será este o nosso ponto crítico nevrálgico. Fica apenas como acicate para uma reflexão sistemática de raiz metateórica em RI, a ver se alguém a quer pegar.

5 Se o conceito não se aplica às épocas moderna e contemporânea, muito menos se poderia aplicar a períodos históricos anteriores (que, de qualquer forma, não configuram relações internacionais), onde brilha a dicotomia entre paz e guerra, lançando a guerra para os confins da política, e onde a incidência da soberania não se fazia sentir enquanto figura acabada.

6 Cf. Fernandes, António Horta – Acolher ou Vencer? A Guerra e a Estratégia na Actualidade. Lisboa: Esfera do Caos, 2011, pp. 91 -98;         [ Links ] e Fernandes, António Horta – «Soberania». In Relações Internacionais. N.º 24, Lisboa, dezembro de 2009, pp. 141 -146.         [ Links ]

7 Reflexões fundamentais sobre o tema fê-las Foucault nos vários cursos ministrados no Colégio de França. Mas já antes escrevera que se deveu ao humanismo, ou seja, ao conjunto de discursos enquanto sintagma de poder, o persuadir o homem ocidental moderno de que podia ser soberano apesar de não exercer o poder. Pelo contrário, quanto mais renunciasse a exercer o poder e quanto mais submetido estivesse ao que lhe fosse imposto, mais esse mesmo homem seria soberano, mais liberto estaria do ominoso fardo para se dedicar a ser inteiramente si mesmo e à sua plena liberdade; ou, em rigor, à liberdade (administrada) que o biopoder lhe achasse por bem atribuir. Cf. Foucault, Michel – Microfísica del Poder. Madrid: La Piqueta, 1979, p. 34.         [ Links ] Aqui, apenas a ideia que Foucault e os foucaultianos fazem do humanismo nos parece desajustada. A invenção do sujeito enquanto ser encasulado, indivíduo, e a sua defesa, apelidada de humanismo, nada retiram a um sentido mais profundo daquilo que é o humanismo: a abertura e a responsabilidade pelo outro homem.

8 Cf. Esposito, Roberto – Bios. Biopolítica e Filosofia. Lisboa: Edições 70, 2010, p. 94.         [ Links ]

9 Efectivamente o soberano é lobo do homem (uma metáfora que os biólogos bem sabem os lobos não merecer) e o estado de excepção tende a tornar -se regra, mas a discricionariedade do soberano não é a arbitrariedade da ausência de regras, da norma, expressando antes a sua suspensão. Esta inclui, por força da excepção, o que a norma não abrangia anteriormente. querendo isto dizer que a norma se mantém vigente sob a forma peculiar da sua própria suspensão, tornando impossível a distinção entre observância e transgressão da mesma. Neste caso não existe verdadeiramente um fora de lei, mas uma submissão sem defesa ao soberano, o estar pura e simplesmente à sua mercê. «O estado de excepção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão.» Por outro lado, a soberania nunca se dá na realidade em estado puro, e, como se verá abaixo, a própria relação de facto dos soberanos entre si comporta uma contenção de raiz incompatível com a anarquia, isto é, com a ausência de qualquer regra como pano de fundo do comportamento inevitavelmente securitário daí decorrente. Acerca do estado de excepção que caracteriza o poder soberano, cf.o incontornável ensaio de Schmitt, Carl – Théologie Politique. Paris: Gallimard, 1988.         [ Links ] Nele afirma Schmitt expressamente que o soberano é aquele que decide o estado de excepção (p. 15). De Agamben, Giorgio – O Poder Soberano e a Vida Nua. Homo Sacer. Lisboa: Presença, 1995,         [ Links ] em particular, a primeira parte, donde, aliás, retirámos a passagem acima citada (p. 29); e ainda Agamben, Giorgio – Estado de Excepción. Homo Sacer. Valência: Pretextos, 2004, ii, 1.         [ Links ]

10 Economia como oikonomia. Como «administração da casa» e de tudo o que lhe diga respeito. Logo, economia enquanto governo, ordenação, disposição, organização funcional, natureza gestionária do reino das pessoas e/ou das coisas em que incide.

11 Cf. Agamben, Giorgio – El Reino y la Gloria. Por una genealogía de la economía y del gobierno. Valência: PreTextos, 2008, pp. 154 e seguintes.         [ Links ]

12 Cf. Hobbes, Thomas – Leviatã. 3.ª edição. Lisboa: Imprensa Nacional -Casa da Moeda, 2002, cap. XXX, p. 277.         [ Links ]

13 Cf. Ibidem, cap. XVI. Onde a questão central ainda é a da representação de uma pessoa por outra e as condições dessa representação, e não o carácter representativo do Estado enquanto pessoa fictícia. Aliás, o Estado não possuirá personalidade jurídica própria antes do século XVIII, como nos informa Homem, António Barbas – História das Relações Internacionais. O Direito e as Concepções Políticas na Idade Moderna. Coimbra: Almedina, 2003, p. 83.         [ Links ]

14 Cf. SOROMENHO-MARQUES, Viriato – A Era da Cidadania. De Maquiavel a Jefferson. Mem Martins: Europa-América, 1996, p. 143.         [ Links ]

15 Podemos questionar-nos por que razão afinal Kant, defendendo uma antropologia mais optimista que a de Hobbes, acaba por ser muitíssimo mais «hobbesiano» que este (que não o é de todo, daí a sem-razão do adjectivo) na leitura da realidade internacional com que se depara (não da realidade internacional a haver, bem entendido). é que no tempo de Kant não só se tinha reforçado sobremaneira o equilíbrio internacional enquanto equilíbrio de poder per se, mas também se tinha acentuado a tendência de personalização do Estado, obviamente de acordo com os seus objectivos específicos e não com a passionalidade própria de cada indivíduo. Trata-se então de uma personalização de 2.º grau em que os estados interagem como se fossem na íntegra átomos rivais num estado de natureza, tal como supostamente o fariam os indivíduos em Hobbes, com independência dos motivos distintos que os levam a agir dessa maneira. Claro que na ausência de um soberano internacional a lógica poder em si não compromete, muito menos absorve, todos os restantes mecanismos de carácter convivencial, a não ser porque Kant, apesar de Vestefália, volta a projectar directamente a compulsão soberana interna sobre o externo: o soberano que persegue os seus próprios súbditos não hesitará em prosseguir os seus intentos com os súbditos de outros, da mesma forma que os constantes receios face ao exterior, que perpetuam a razão de Estado, são um bom álibi para coarctar direitos políticos internos e perpetuar governos injustos Vide KANT, Immanuel A Paz Perpétua” in A Paz Perpétua e outros Opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1992, pp.119-171,         [ Links ] ademais do excelente ensaio de Viriato Soromenho-Marques, intitulado «Os desafios de Marte e a cidadania. grandeza e solidão do projecto kantiano.» In SOROMENHO-MARQUES, Viriato – A Era da Cidadania. De Maquiavel a Jefferson, pp. 137-164.         [ Links ] Não quer isto dizer que Kant não tenha razão sobre a maneira como a cinética soberana enlaça o interno com o externo. Mas suportar quase em exclusivo as relações internacionais na compulsão que caracteriza internamente o soberano não nos parece avisado, já que não atende ao que de bom tem não haver uma autoridade internacional na forma soberana e à peculiar contenção manifesta na relação entre soberanos.

16 Em data tão tardia, relativamente aos alvores primomodernos, como é aquela em que o Cardeal de Richelieu exercia o poder, podemos verificar que este suposto paladino da razão de Estado tendia a basear, ainda que não exclusivamente, a política externa francesa em considerações tradicionais de carácter moral, determinadas pelas exigências da lei natural, da guerra justa e da legítima defesa. Procurando, dessa maneira, defender a liberdade da Igreja e chegar a um equilíbrio pacífico entre os estados europeus, assegurado pela França, contra aquilo que dizia serem as arrogantes ambições dos Habsburgos. Essas sim, poder-se-ia concluir, muito realistas. Evidentemente que Olivares, em parte, pensava da mesma forma, só que imputando o papel de perturbador à França. Cf. Elliot, John H. – Richelieu y Olivares. Critica: Barcelona, 2002, pp. 162 -163.         [ Links ] De notar que o teórico italiano da razão de Estado católica, Giovanni Antonio Palazzo, a concebia como metodologia política para a paz. No seu Discurso do Governo e da Verdadeira Razão de Estado (Discorso del Governo e della Ragione Vera di Stato, 1604) define a razão de Estado como «a essência da paz e a regra da vida em sossego». Cf. Homem, António Barbas – História das Relações Internacionais. O Direito e as Concepções Políticas na Idade Moderna, p. 187, donde extraímos a citação.

17 Cf. Almeida, João Marques de – «A paz da Westefália, a história do sistema de Estado moderno e a teoria das relações internacionais». In Política Internacional. N.º 18, Lisboa, 1998, pp. 48 -68.         [ Links ] Acerca do processo paulatino de afirmação do Estado na Idade Moderna, vejam -se os muitos trabalhos de António Hespanha e a já citada obra de António Barbas Homem.

18 A ideia de um smart power é uma ideia palerma. qualquer poder que não fosse smart nem sequer chegaria a sê -lo.

19 Para uma análise mais circunstanciada acerca das três modalidades de poder descritas, cf. Fernandes, António Horta – «A Europa como resto no jogo das potências». In Renaud, Michel, e Marcelo, Gonçalo (coord.) – Ética, Crise e Sociedade. Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2011, pp. 333 -344.         [ Links ] Num artigo nem sempre tão lembrado quanto o deveria ser, João gomes Cravinho faz um judicioso apuramento crítico das análises realistas à volta da noção de poder, ou melhor, da ausência delas, apesar de o poder ser uma noção decisiva para o realismo. Cf. Cravinho, João gomes – «O vácuo no centro: reflexões sobre o conceito de poder na tradição realista». In Política Internacional. N.º 18, Lisboa, 1998, pp. 21 -43.         [ Links ] De todas estas críticas escapa Raymond Aron e, eventualmente, Reinhold Niebhur. Mas será mesmo realista o realismo de Aron?

20 Trata -se de um estado de paz primacial, o qual já lá estava desde sempre como inclinação primeva e autêntica do homem, por ser aquele que a convocação do outro, mais antiga que toda a história, paradoxal e insólito testemunho, ademais, de um passado que nunca foi presente, transportava. A expressão estado de paz devêmo-la a Ricoeur. Cf. Ricoeur, Paul – Caminos del Reconocimiento. Tres estú-dios. Madrid: Trotta, 2005, pp. 227 e seguintes.         [ Links ] Está bom de ver que a nossa interpretação dos estados de paz não é precisamente a de Ricoeur e que se dá uma opção pelo pólo levinasiano, o que não acontece em Ricoeur; ou não acontece de forma franca, mas acaba implicitamente por acontecer, pois quando se diz que na gratidão do dom recebido a resposta, a dar-se, não é uma restituição e que um é o que recebe e outro o que devolve (pp. 248 -249, 266), está -se a incluir a assimetria no próprio eu, porque a consciência do eu enquanto consciência identitária tende a tematizar as diferenças, neutralizando-as e unificando-as como simples termos numa relação. Ser eu é desde início ser com os outros, mais além da mutualidade e reciprocidade para com o outro como outro eu. A nossa interpretação da contenção soberana difere também da de Foucault, que lê a contenção externa dos estados na Idade Moderna como resultado de uma autolimitação da razão de Estado, por força do abandono do desejo de uma posição imperial dos estados uns face aos outros. Cf. Foucault, Michel – Nascimento da Biopolítica. Lisboa: Edições 70, 2010, pp. 30 -31.         [ Links ] A obra em causa reproduz o curso de 1978 -1979, ministrado no Colégio de França sintetizando Foucault na primeira lição, aquela a que nos referimos, as principais linhas de força do curso do ano transato. Parece-nos que essas limitações ao poder se ficam a dever à influência, em franca retracção é certo, da velha dicotomia entre paz e guerra que entretanto soçobra e ao peso que ainda detêm as constrições teológicas, morais, jusnaturalistas (que o próprio Foucault reconhece – p. 28) no exercício político; um exercício que até ao século XVIII os racionais soberanos não moldam por completo, como atrás referimos. Podendo então concluir-se que não é a razão de Estado que se autolimita, mas uma outra concepção da política a cair em desuso que barra a assunção da razão de Estado ao nível externo. Para todos os efeitos, também nunca seria fácil harmonizar as considerações de Foucault atrás sintetizadas com as linhas de força «guerristas» do curso de 1975 -1976, do qual se fará referência adiante.

21 Poder-se-ia pensar que o raio de acção das entidades soberanas, como depende das condições concretas, strictu sensu, do exercício do poder soberano, não variaria caso a soberania existisse em estado puro, tal seria a sua força centrípeta, não deixando aos homens margem de manobra. Mas se pensarmos que para ser puramente absoluta a soberania não poderia ter tido certidão de nascimento, nem ser uma criação contingente, torna-se impossível imaginar sequer como seria um mundo imanente definido, à sua escala e em concorrência com os seus próprios avatares, por uma força transcendente. E mesmo que por absurdo fosse possível imaginar um tal mundo operativo, que não tivesse já sido sugado na totalidade pela transcendência, pois se não se ocultasse só ela existiria – parafraseando um tanto livremente Simone Weil –, pode sempre questionar -se se a encarnação da soberania por criaturas contingentes não repercutiria na estrutura desta, modificando, isto é, alterando substantivamente o seu estado de pureza. Por conseguinte, saber se a variação do raio de acção soberana depende mais das condições históricas concretas do exercício da soberania, ou, em última análise, da soberania nunca se dar em estado puro afigura-se-nos ocioso. Como não há nem é possível haver nenhum estado puro de soberania, a única coisa interessante a fazer é averiguar como entra em cena a variabilidade humana, incluindo o carácter factível da pureza, isto é, o absoluto da soberania pensável e realizável entre homens; o que já não é pouco, para mal dos nossos pecados.

22 Só que agora pendendo directamente sobre esse comércio normal dos homens e já não somente podendo influir sobre o mesmo, mas como um continente todavia apartado.

23 Não esqueçamos que a noção de guerra absoluta corresponde ao valor de utilidade de todas as guerras, exprimindo o núcleo duro da guerra, que a torna ultimamente irredutível a um tratamento político e estratégico integral. O mesmo é dizer que na guerra sempre há algo que transborda de toda a articulação racionalizadora e prudencial possível. Pior ainda, erigir as relações internacionais por sobre um estado de guerra seria valorizar em alta a guerra absoluta, ou seja, incrementar em muito a sua «rendibilidade marginal». Atente-se que, com ou sem dessacralização, a gramática e a lógica interna irredutíveis da guerra estão sempre presentes, em maior ou menor escala. É provável até que a sacralização distópica da guerra até à modernidade se deva ao reconhecimento desse núcleo intratável que subjaz a qualquer conflito bélico.

24 Cf. Benjamin, Walter – Origem do Drama Trágico Alemão. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 64 -68 e 80 -83.         [ Links ] Benjamin não deixa, no entanto, de notar que já na teoria barroca da soberania, esta é, por vezes, feita derivar do poder atribuído a Adão enquanto senhor da criação, pelo que o simples súbdito seria, afinal de contas, um animal, sensível e inteligente, mas um animal. Animal esse, apascentado pelo deus mortal, suprema criatura, na qual também a animalidade poderia emergir, mas neste caso como puro estado de natureza, selvagem ferocidade (pp. 81 -83).

25 No caso da encarnação do poder em concreto podemos pensar em Hitler, ou, por contraste, num qualquer estadista que a história atire para o anonimato. Relativamente às diferentes constelações históricas que assumem a forma soberana, e a mero título de exemplo, tanto podemos atender aos nacionalismos belicosos em forma de soberania popular, como às condições e actos históricos que estão na base dos desiguais raios de acção soberana das diversas entidades políticas existentes ou desaparecidas; neste último caso, desde que possam ser conformadas à lógica soberana, um produto acabado somente a partir da Idade Moderna, como é sabido.

26 Walter Benjamin joga com os dois planos: o do carácter criatural e, por consequência, finito dos homens de carne e osso que detêm o poder ou fazem uso dele, mas também o do carácter igualmente criatural e finito da própria figura soberana enquanto concepção e materialização. Todavia, não terá sido esse o entendimento no passado, ao exaltar-se a dignidade régia à condição de imortalidade, por contraste com o corpo corruptível do monarca. A perpetuidade da soberania não terá sido colocada em contexto, até porque era tomada como vicária de Deus e da sua economia. Por força dessa condição, a soberania detinha a gestio, ou seja, a faculdade discricionária de realizar actos por conta de outrem. Contudo, também é certo que a exaltação supramundana não se limitou à dignidade real, uma vez que durante a Idade Média e o período primo-moderno antes incluía preferencialmente o corpo político da comunidade, do qual o monarca, ainda não enquanto soberano, era representante, ao fazer parte de um todo organológico. Além disso, essa exaltação, num mundo não secularizado, não excluía a dependência do modelo divino/crítico em que se baseava e, por conseguinte, dos ditames da ordem querida por Deus. O que é mais, a atribuição de caracteres transcendentes às estruturas políticas apenas se fazia porque se pensava que as mesmas expressavam na terra, a lei natural, a natural sociabilidade do homem, o bem comum, entre outras regras com que Deus informou o homem e o mundo. Tudo dispositivos, para-constitucionais, dir-se-ia numa linguagem de hoje, limitadores do poder soberano. Acerca da história da transcendentalização dos institutos políticos, vide KANTORO-WICZ, Ernst – Los Dos Cuerpos del Rey. Un estudio de teología política medieval. Madrid: Akal, 2012.         [ Links ]

27 Uma gigantesca e monstruosa paragem do ser do homem, megapólis na aparência ilimitada, mas que por ser humana o é, e da qual, portanto, se pode dobrar a esquina.

28 O princípio de sororidade e de diaconia funciona como princípio, ordenação, para o mundo, mas ele é verdadeiramente an-árquico na sua fonte, nas palavras de Levinas, no preciso sentido em que não tem fundamento. Discorre de Deus enquanto Infinito não fundado, Ordem ética que ordena desde sempre, quer dizer, sem começo. Cf. Levinas, Emmanuel – De Otro Modo que Ser o más allá de la Esencia. 4.ª edição. Salamanca: Sígueme, 2003, pp. 216, 226 e 233.         [ Links ] Não é menos verdade que mesmo no mundo, face à responsabilidade para com o próximo, fazendo justiça à alteridade radical do outro, uma ontologia forte não se mostra como o melhor caminho. Mas aqui estávamos a pensar na arche como imperativo, mandamento do decálogo, convocação que nos intima por oposição à sem-razão (por isso etimologicamente an-árquica) da violência. Se a anarquia da violência é ou não fruto de uma ontologia forte ou da desagregação em que o mal consiste, e se essa mesma ontologia não é uma dessas figuras, na aparência criteriosa, dotada de razões, de que o mal se reveste afastando o justo da sua justiça, é um problema fundamental. Tememos, no entanto, que reproduzir o problema hoje em dia no seio das ciências sociais seja malhar em ferro frio. Falar das questões últimas ou penúltimas com os proponentes do conceito de anarquia internacional é uma experiência de solipsismo que não deve ter paralelo.

29 Daí que falar em sistema anárquico seja uma intrujice intelectual. Um sistema mecanicista estruturalmente baseado na desordem é inconcebível. Vale tanto como a fracção de um pão em três metades. Se não vejamos: o conceito de anarquia como princípio ordenador do sistema internacional em Waltz refere-se à inexistência de qualquer autoridade superior que possa exercer legalmente ou em nome de uma qualquer ordem hierárquica a sua vontade sobre um membro do sistema se este o não quiser. Pois bem, se uma tal realidade, antes de ser fruto da interacção entre os actores estaduais, é sobretudo a propriedade ordenadora da estrutura de fundo do sistema, do todo, então é porque é a própria autoridade do sistema a poder efectivamente violar a vontade dos membros; e se observarmos bem verificamos que na verdade os actores estaduais membros desse sistema são funcionalmente equiparados (reduzidos) a peças semelhantes. Mas o que é que o sistema pode afinal? Pode a impossibilidade de agir superiormente contra a vontade de um membro. O sistema pode o que não pode; pode o não poder. Por sua vez, os actores são reduzidos a peças de um mecanismo que consiste precisamente em eles não serem peças. Na realidade, tanto a guerra como a soberania impossibilitam essa redução dos actores a peças. Aliás, Waltz reconhece expressamente que por se tratar de actores soberanos é que não admitem superior. Em síntese, o sistema pode a impossibilidade que o seu próprio fim ordenador define. Mais, consiste mesmo na violação das suas próprias regras (não há nada acima das partes se elas o não quiserem, estabelece o todo enquanto sistema como regra básica para o sistema, acima das partes e de forma prévia, impondo-se às partes). Cf. Waltz, Kenneth – Theory of International Politics, caps. 5 e 6. à parte a sua terrível incoerência sistémica, Kenneth Waltz precisa judiciosamente o que os realistas querem dizer com anarquia internacional: não necessariamente um estado de guerra efectivo, mas um estado de guerra como sua principal característica ôntica, se não ontológica, já que é identificado com o estado de natureza, em alusão última, errónea já se sabe, às considerações que Hobbes teria produzido (Waltz, Kenneth – Theory of International Politics, pp. 102 e seguintes). Vide igualmente um dos fundadores do realismo, o não-sistémico Hans Morgenthau, que ainda que distinguindo poder político e uso da força, e não mencionando o termo anarquia, ao centrar as relações de poder na luta pelo poder não pode deixar de afirmar o seguinte sobre a política internacional: «in international politics in par-ticular, armed strenght as a threat or a potentiality is the most important material fact making for the political power of a nation». Cf. Morgenthau, Hans – Politics among Nations. The Struggle for Power and Peace. 5.ª edição. Nova York: Alfred Knopf, 1978, p. 31.         [ Links ]

30 Cf. Moltmann, Jürgen – «El “Sueño Americano”». In Moltmann, Jürgen – Teología Política – Etica Política. Salamanca: Sígueme, 1987, p. 69.         [ Links ] A este propósito, diz Irving Kristol, um dos pais do chamado movimento neoconservador, que «os desígnios da política externa americana devem transcender uma definição estreita e demasiado literal da “segurança nacional”. Devem estar sintonizados com o interesse nacional, na medida em que este é definido por um sentido de destino nacional». Cf. Kristol, Irving – Reflections of a Neo-Conservative. Nova York: Basic Books, 1983, p. xiii,         [ Links ] citado por Lieven, Anatol – América a Bem ou a Mal. Uma Anatomia do Nacionalismo Americano. Lisboa: Tinta -da -China, 2007, p. 29.         [ Links ] Lieven afirma, com acerto, haver nas palavras de Irving Kristol «um empenhamento numa visão messiânica da nação e do seu papel no mundo». Reforçando, de seguida, a sua análise de Kristol, com a referência a Richard Hofstadter, para quem a cultura política norte -americana padece de uma certa propensão para impulsos de cruzada moral (p. 29). Seria, igualmente, interessante reter o polémico livro de Bloom, Harold – The American Religion. Nova York: Chu Hartley, 2006,         [ Links ] que talvez aposte de mais numa religião gnóstica norte -americana autónoma em detrimento das ligações ao milenarismo cristão.

31 Temos em mente uma vetusta tradição que culmina em Carl Schmitt, na sua interpretação da deutero-paulina Segunda Carta aos Tessalonicenses (2 TES 2, 3 -9), onde identifica o katechon como aquele que retarda o fim dos tempos, retendo o anti-Cristo. Uma potência histórica (o império romano nos alvores da tradição) que actua como retentora do tempo presente face à dissolução sempre iminente. Cf. Schmitt, Carl – El Nomos de la Tierra. En el derecho de gentes del “Ius publicum europaeum”. granada: Comares, 2003, p. 24.         [ Links ] Para uma desconstrução, a nosso ver definitiva, desta tradição, cf.Agamben, Giorgio – El Tiempo que Resta. Comentario a la Carta a los Romanos. Madrid: Trotta, 2006, pp. 108 -111.         [ Links ]

32 Michel Foucault dedica a esta problemática o curso ministrado no Colégio de França, em 1975 -1976. Cf. Foucault, Michel – «Il Faut Défendre la Société». Cours au Collège de France (1975-1976). Paris: Seuil/Gallimard, 1997.         [ Links ] Cf. ainda de Roberto Esposito, ele próprio remetendo para Foucault: Esposito, Roberto – Bios. Biopolítica e Filosofia, p. 48. Como já argumentámos no corpo do trabalho existe uma impossibilidade ontológica no fazer assentar a modernidade de forma constitutiva na guerra, de acordo com uma ordem soberana. Pelo que os nossos racionais críticos se estendem igualmente aos foucaultianos.

33 A título de exemplo, é explícita e procurada a analogia entre a anarquia enquanto princípio ordenador do sistema internacional e a teoria económica clássica e neoclássica sobre o mercado por parte de Kenneth Waltz em Theory of International Politics. Infelizmente para Waltz, a mão invisível dos mercados tem por detrás e pressupõe uma longa história actuante da ideia de providência, aqui no sentido em que a decisão soberano -transcendente determina os princípios gerais de ordenação do cosmos, confiando a sua administração a um poder gestionário subordinado mas autónomo, que vela para que os indivíduos estejam em permanência submetidos à férrea cadeia de causas e efeitos. governando esse poder imanente (providência efectiva/destino) pelo ajustamento contingente e expeditivo face aos efeitos colaterais, inerentes à suposta natureza das coisas, que pingam sobre os indivíduos expostos ao encadeamento inexorável. De certa forma, é isso que acontece com o estado de bem-estar. Assim, o mercado não vai de si, pace Waltz, pelo contrário, é fruto da máquina soberano-governamental. Digamos antes que uma economia de mercado mais «pura» indica que o governo e os seus agentes têm uma menor sensibilidade para as consequências dos efeitos colaterais, ou por imaturidade, ou por opção, ou ainda, por julgarem, talvez como Adam Smith, que os ditames previamente estabelecidos de uma «economia natural» e imanente assegurariam a meta da harmonia (verdade seja dita que Adam Smith estava eticamente convencido dessa harmonia e só assim a aceitava, porque desconfiava da marca ética dos lugares concretos de mercado e era eticamente ambivalente em relação ao capitalismo – veja-se a crítica de Adam Smith ao espírito comercial como menorizando a mente humana, em Lectures on Jurisprudence; referenciado por Hirschman, Albert – As Paixões e os Interesses. Argumentos Políticos para o Capitalismo antes do seu Triunfo. Lisboa: Bizâncio, 1997, p. 131.         [ Links ]Obra, esta última, na qual Hirschman faz uma belíssima problematização das principais teses de Adam Smith e do seu enquadramento teórico e epocal, devendo, no entanto, ser cotejada com essoutro livro não menos relevante de Díez, Fernando – Utilidad, Deseo y Virtud. La formación de la idea moderna del trabajo. Barcelona: Península, 2001).         [ Links ] Sobre a expressão histórica, relativa à política e à economia, da oikonomia teológica da providência, incluindo bibliografia relativa aos pressupostos do pensamento de Adam Smith, vide a articulação, proposta por Giorgio Agamben, dos paradigmas teológico-político-soberano e teológico-económico-governamental, em Agamben, Giorgio – El Reino y la Gloria, pp. 144-145 e 306-308.

34 Cf. Benjamin, Walter – «Sobre o conceito de história». In Benjamin, Walter – O Anjo da História. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 13 (oitava tese).         [ Links ]