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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.35 Lisboa set. 2012

 

A revolução na encruzilhada

 

Luís Farinha

Investigador do Instituto de História Contemporânea da fcsh – unl.

 

Bruno J. Navarro

Governo de Pimenta de Castro. Um General no Labirinto Político da I República

Lisboa, Assembleia da República, 2011, 295 páginas

 

O livro de Bruno Navarro apresenta razões de sobra para ser tido e lido com justificada disponibilidade por todos quantos se interessam pela ocorrência efémera da I República e, mais especialmente, por todos aqueles que olham para este regime como um episódio do longo processo de modernização do País, iniciado no último decénio do século xix e só concluído (no sentido da sua aproximação à Europa democrática) quase um século depois, após o desmembramento do Império, velho de quatro séculos. O autor não tem dúvidas: o governo de Pimenta de Castro é um excelente objeto de estudo, ainda por cima inexplorado – um bom laboratório político-militar, diríamos nós – desse período intenso de experimentalismo político que foi a I República. Estão por isso de parabéns o autor, bem como o orientador da tese de mestrado de que resultou a obra, o professor Ernesto Castro Leal da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que também prefacia o livro.

O autor (e o livro) arrecadou três prémios: o Prémio «O Parlamento e a República», atribuído pela Assembleia da República, o Prémio de História Contemporânea – Dr. Victor de Sá, atribuído pelo Conselho Cultural da Universidade do Minho, e ainda a distinção da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, no âmbito do Programa de Edição de Teses e Dissertações «República e Academia». Os prémios não acrescentam à obra o valor que já possui, bem entendido. Mas têm no seu conjunto um significado que é indispensável não ignorar.

 

UMA MEMÓRIA POLÉMICA

De onde vem então o valor indiscutível do trabalho de Bruno Navarro? Sem dúvida o de ter eleito como objeto de análise um tema que sempre constituiu uma «memória polémica» da I República. Ele próprio o admite em vários passos do livro. Depois, o de analisar esse curto período político com minúcia e sem complexos historiográficos. Eeste é, porventura, o seu maior mérito: a comummente designada «ditadura de Pimenta de Castro» não terá sido a antecâmara do sidonismo nem as duas experiências em si a passadeira para a Ditadura Militar e muito menos para o Estado Novo salazarista, como era timbre ser explicada pela oposição republicana que a derrubou, ou mesmo pelos defensores de uma República ordeira e conservadora – muitos deles atores comprometidos nas novas experiências militaristas e anticonstitucionais atrás referidas. No entanto, não terá sido por acaso que Pimenta de Castro, ele próprio, voltou ao País durante o período da governação de Sidónio Pais. Como não terá sido um mero acaso o facto de a imprensa afeta ao novo chefe se ter aplicado no elogio ao velho general depois da sua chegada ao País, vindo da Espanha. Não há como apagar os factos, porque são teimosos na sua «factualidade». Também não há maneira de ignorarmos o papel da «memória» na condução dos acontecimentos e na construção da História como ciência, porque tanto uns como outra são tudo menos «objetivos», se bem nos alertaram para o facto os mestres dos Annales.

Bruno Navarro interpreta o governo de Pimenta de Castro como a primeira «situação de exceção» constitucional (conservadora na sua natureza política), nomeado pelo Presidente Arriaga para promover eleições justas e «pacificar a família portuguesa», impondo uma situação de ordem e obtendo um recentramento da política republicana. Das novas eleições – esperava-se –, resultaria uma alteração do quadro político-partidário e uma interrupção do curso imparável da «corrente de radicalismo jacobino que tinha em Afonso Costa o seu caudilho», corrente essa que, desde 1910, «hostilizara a generalidade da população portuguesa», segundo a opinião do autor, pelo seu sectarismo antirreligioso e pela imprudente política de intervenção na guerra europeia. E tudo o resto – e o resto foi muito, apesar do tempo curto de governação – se teria resumido a uma pura ação de luta partidária, amplificada pelo crivo da propaganda: falamos dos atos conspirativos das oposições, da pressão legal para abrir o Congresso, da reunião clandestina do Parlamento em Santo Antão do Tojal ou das ações de descredibilização externa do Governo junto dos Aliados. No que me parece que o autor tem absoluta razão. Nunca esteve em causa a imposição de uma «ditadura» – apesar de propalada a sua existência aos quatro ventos para efeitos propagandísticos pelas oposições – e muito menos o desrespeito por qualquer fórmula de governação constitucional, tal qual era entendida na época. Podemos antes considerar que houve um interregno – como tantos outros ocorreram durante a I República –, com a finalidade de preparar umas novas eleições. Evidentemente que se verificava uma diferença de forma importante – o Parlamento fora encerrado, numa altura em que era suposto e normal estar aberto, e a pugna política passou a dirimir-se nos diretórios partidários, nos jornais e na «rua». Também é verdade que o Presidente da República não conseguiu um apoio consistente para a formação do governo «extrapartidário» de Pimenta de Castro (até pela sua frágil legitimidade constitucional). Mas nem uma nem outra destas características estavam (ou alguma vez estiveram), na sua intrínseca natureza, totalmente fora do modo prático de formação dos governos da I República: apesar de vitórias sucessivas – irregulares ou não, tanto importa neste caso – do Partido Republicano Português, depois designado de Democrático, só raros governos foram hegemonicamente constituídos por elementos do prp: ao invés, eles foram, esmagadoramente, compósitos e resultaram de uma nomeação feita pelo Presidente da República, depois de complicadas negociações entre as diferentes forças partidárias representadas no Parlamento. Lembremos um momento com algumas semelhanças, o de final de 1921: quem representava partidariamente Cunha Leal e que legitimidade tinha (para além do prestígio pessoal) quando foi nomeado pelo Presidente António José de Almeida para (mais uma vez) «pacificar a família portuguesa e promover eleições justas», e assim recentrar a política portuguesa num quadro ordeiro e conservador? Responder-se-á que a «Noite Sangrenta» e os efeitos dramáticos da I Guerra tinham sido um antídoto suficiente para convencer o Partido Democrático de que iria ganhar as eleições seguintes. Talvez… Ena verdade assim foi, embora esse facto não explique inteiramente a diferença de atitude do Partido Democrático nos dois momentos em causa. Em 1921, o Partido Democrático já não lutava pela revolução.

 

O «PIMENTISMO» FOI UMA DITADURA?

Importa, pois, realçar o trabalho de análise de fontes de Bruno Navarro com o objetivo expresso de desmistificar algumas das acusações infundadas da propaganda antipimentista, antes de discutir a sua perspetiva de análise e de avaliar o seu juízo final sobre a natureza do governo de Pimenta de Castro. Porque, na verdade, este é o corpus fundamental do livro (sem qualquer desmerecimento para a 1.ª parte em que analisa a primeira fase do novo regime republicano), aquele em que pretende responder à verdadeira natureza do «pimentismo»: foi de facto uma ditadura? O compasso de espera para a entrada na I Guerra foi apenas um acidente, ou Pimenta de Castro (germanófilo ou não) estava empenhado numa posição de neutralidade? Que forças apoiavam esta governação extrapartidária e que forças se lhe opunham? A sua queda era «inevitável»?

O autor é claro: este interregno parlamentar forçado correspondeu a um período de pacificação da sociedade portuguesa, com maior liberdade de ação para as oposições (incluindo a monárquica) e com ampla liberdade de imprensa. Por razões essencialmente partidárias colheu o apoio de forças antiguerristas e traduziu-se, por isso, numa política equívoca e frágil, já que algumas delas, como se viu com os evolucionistas de António José de Almeida, haviam de participar no futuro governo guerrista, dito de «União Sagrada», no ano seguinte.

Era «inevitável» a sua queda, como considera o autor? Nada é inevitável em História. Mas muito provável, sim, sem dúvida. Eporquê? Porque era frágil e não conseguira os apoios de que necessitava para sobreviver, segundo a opinião de Bruno Navarro, incluindo os apoios do campo militar.

Mas… uma resposta a uma pergunta levanta sempre outra pergunta: então onde estava a força política capaz de se impor ao país? O autor sugere que estaria no Diretório do Partido Democrático e em toda a sua rede de influência implantada pelo País. Respondendo desta forma ao problema não estaremos a correr o risco de criar outro «demónio» enquanto lutamos contra a diabolização que foi arquitetada sobre o «pimentismo»?

Não esqueçamos que tinha havido uma revolução de cariz radical em 1910, imposta por uma frente pequeno-burguesa e popular, com o contributo de largos setores militares de baixa patente e de forças civis armadas; e que, em 1915, esta frente estava ainda longe do apaziguamento. Na verdade, a «situação de exceção» criada pelo Governo Provisório não tinha ainda evoluído para a normalização que, habitualmente, ocorre em todas as revoluções liberais e democráticas de que temos conhecimento desde a Revolução Francesa. Nesta perspetiva de análise não será mais correto considerar o «pimentismo» como um episódio contrarrevolucionário? Para os vencedores da «revolução de 14 de maio de 1915» foi-o sem dúvida. E para nós, hoje, sê-lo-á também se não esquecermos que – de forma oportuna ou não – houve uma revolução em 5 de outubro de 1910 (e muito especialmente no ano de governação provisória revolucionária que se lhe seguiu). Bem sei que Bruno Navarro considerou no seu livro este período até 1915 como profundamente marcado por «uma deriva radical de permanente perturbação política e social». Mas aqui teríamos que recorrer à(s) teoria(s) da revolução, matéria que não cabe num texto desta natureza. De resto, esta «situação de exceção» nunca deixou de pairar, por razões diversas, sobre toda a I República: à «governação constitucional» e demoliberal, os dirigentes do Partido Democrático – com Afonso Costa na primeira linha –, preferiram sempre a «republicanização do Estado e da sociedade», ou seja, a sua modernização pela via revolucionária, de inspiração «iluminista», ou mesmo de inspiração socialista, na linha de um Benoit Malon. Democratizar seria, nesta ordem de ideias, mais do que confrontar poderes político-partidários em eleições e no Parlamento, modernizar o País, republicanizar a sociedade, «nacionalizar» as colónias e assim encontrar um novo lugar para Portugal no concerto das nações saído da I Guerra Mundial. Para além de outras prioridades, embora em grau secundário, de caráter emancipatório: nos campos do ensino, do trabalho, da segurança social, etc.

Por fim, uma última palavra para a natureza da violência política que marcou o derrube do governo de Pimenta de Castro em 14 de maio de 1915, e que o autor considera, na peugada de afirmações comuns, a revolução mais sangrenta de toda a I República. Na verdade, a violência está na sua natureza – a de derrubar pela força um governo legitimado pelo Presidente da República –, não seguramente nos números que Bruno Navarro teve o cuidado de apresentar através do Relatório construído sobre dados fornecidos pela Cruz Vermelha Portuguesa, talvez a única fonte objetiva para poder apreciá-los na sua verdadeira dimensão até este momento.

Uma última referência, esta mais formal, para o excelente álbum iconográfico que foi carreado para o livro, constituído sobretudo por caricatura: como leitor muito agradado desta obra de Bruno Navarro, recomendaria que se começasse por aí, como uma espécie de leitura introdutória e verdadeiramente esclarecedora da visão impressiva dos contemporâneos sobre o «pimentismo».