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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.35 Lisboa set. 2012

 

«Os brancos estão para ficar»?

 

Antonio Peciccia

Doutorando em História das Relações e das Organizações Internacionais, na Universidade de Lecce (Itália), com um projeto sobre a questão colonial na política externa portuguesa durante os anos do marcelismo. Licenciado em Línguas e Literaturas Estrangeiras, variante Histórico-Institucional, pela Universidade de Lecce. Fez o programa Erasmus na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa. Defendeu uma tese de história das relações internacionais sobre a política de appeasement britânica face ao regime nazi. Tem artigos publicados em revistas científicas, nomeadamente, «L’enígma di Hitler e l’ombrello di Chamberlain. La politica di appeasement britannica e la Conferenza di Monaco del 1938» na revista Itinerari di Ricerca Storica (2009), e «La bambola di catrame. La dottrina Nixon e l’Oltremare portoghese, 1968-1974» (no prelo).

 

Myra F. Burton (ed.)

Foreign Relations of the United States 1969-1976, Volume XXVIII. Southern Africa

Washington DC,US Government Printing Office,2011, 751 páginas*

 

O Office of Historian do Departamento de Estado americano publicou o volume xxviii da série «Foreign Relations of the United States», referente à política americana para a África Austral durante as administrações de Richard Nixon e Gerald Ford. O conjunto de documentos abrange o período 1969-1976, incluindo a altura em que, apesar das demissões de Nixon, a permanência de Henry Kissinger nos cargos de secretário de Estado e conselheiro de Segurança Nacional assegurou uma substancial continuidade na política externa. A importância deste conjunto de documentos deve-se ao facto de não conter apenas documentos pertencentes aos National Archives de Washington e à Nixon Library de Los Angeles, mas de contemplar também muitos documentos extraídos dos «Kissinger Papers» – um fundo que, embora já depositado na Biblioteca do Congresso de Washington, é ainda em larga medida inacessível aos historiadores.

O volume não abrange todos os países da região, mas apenas aqueles onde os interesses dos Estados Unidos eram prioritários. As principais preocupações na região eram as possíveis infiltrações comunistas resultantes das insurgências nacionalistas em Angola, Namíbia e Rodésia; e a crescente oposição à política do apartheid na República da África do Sul. O problema das colónias portuguesas, da sua transição para a independência e do envolvimento americano na guerra civil angolana ocupa um grande espaço nesta obra.

A primeira parte do volume, «Regional issues», consta de 86 documentos relativos à definição geral da política da Administração Nixon sobre a África Austral, entendida como toda a área desde a foz do Congo até Zanzibar. Nesta área, os problemas mais espinhosos estavam relacionados com a questão da República da África do Sul, que na altura instaurara o regime do apartheid em relação à população negra do chamado Bantustan, e da Rodésia do Sul, colónia britânica que declarara unilateralmente a independência em 1965, instaurando um regime de minoria branca. Angola e Moçambique inseriam-se num quadro maior que incluía o problema do colonialismo português em geral, e, sobretudo, a grande importância dada pela nato à Base das Lajes, nos Açores.

As razões desta redefinição são indicadas pelo próprio Kissinger num memorando para Nixon de 3 de abril de 1969 (documento n.° 5), em que pedia autorização para constituir um Interdepartmental Group for Africa para o estudo do assunto:

«Não se trata de uma crise iminente, os regimes de minoria branca podem sobreviver pelo menos mais 3-5 anos. […] Os Estados Unidos têm interesses contrastantes nessa área: o interesse em dissociar-se dos regimes de minoria branca mas também fortes interesses materiais; nenhuma planificação política foi feita desde os primeiros anos de Kennedy e a situação mudou muito em consequência do crescente apoio soviético aos movimentos terroristas […] é melhor que o nsc tenha uma palavra a dizer sobre todas as opções políticas possíveis.»

Fruto do trabalho deste grupo de estudo, o relatório conhecido como «Study in Response to National Security Study Memorandum 39» (documento n.° 17) foi publicado em 1976 por Mohamed A. El-Khawas e Barry Cohen, e consta de uma longa análise da conjuntura local e das implicações internacionais, incluindo a posição da Organização pela Unidade Africana, declarada no «Manifesto de Lusaka» (n.° 9), de julho de 1969. Este documento constituía um sinal de abertura dos estados africanos em relação aos regimes de minoria branca, em larga medida consequente à transição no poder que se verificara em Lisboa.

A partir desta análise, elaboravam-se cinco diferentes opções políticas: a primeira foi escrita por Dean Acheson e era mais abertamente favorável aos white minority regimes; a segunda foi elaborada por Roger Morris, assistente no Conselho de Segurança Nacional para os Assuntos Africanos, e pelo representante do Pentágono, Richard Kennedy, e propunha uma maior abertura para com os regimes de minoria branca (in-cluído um parcial relaxamento do embargo) baseado sobretudo numa maior cooperação económica, sem que se afetassem as relações com a África Negra; a terceira, pelo contrário, era mais próxima das posições do Departamento de Estado, defendendo a manutenção do embargo e a continuação das pressões políticas sobre os regimes de minoria branca para a aceitação do majority rule, e representava a política até então seguida; a quarta opção, que visava uma política mais favorável à Africa Negra, e uma zero option, expressão de tendências neo-isolacionistas, não representavam escolhas políticas realistas.

Os resultados do relatório foram debatidos numa reunião do Conselho de Segurança Nacional de 17 de dezembro de 1969 (n.° 20), em que esteve presente o próprio Nixon. Embora não existam documentos que explicitamente se refiram a alguma opção do nssm 39, todas as fontes reconhecem na opção 2 as linhas da política seguida desde então. Foi o próprio Nixon a repetir, nesta reunião, as palavras que constituíam a premissa da opção 2: «os brancos não podem regressar, estão ali para ficar»; e acrescentou: «Não podemos absorver o golpe? Seria a única coisa útil que podíamos fazer. Não vamos conseguir nada isolando os portugueses.»

Os resultados desta reunião talvez já tivessem sido decididos por Nixon e Kissinger; as diretrizes executivas, porém, só foram emitidas em 1970, com dois «National Security Decision Memoranda»: o nsdm 38 (n.° 23), estabelecia que «equipamento não letal que pode ter dupla utilização, civil ou militar, será excluído do embargo a Portugal»; e o nsdm 81 (n.° 40), especificava a noção de equipamento de dupla utilização, e quais os compradores que podiam ser autorizados a adquirir equipamento semelhante no mercado americano.

A segunda parte, «Portuguese Africa», contém documentos diretamente relacionados com a África portuguesa, incluindo relatos de conversas relativos aos primeiros contactos entre os governos de Marcelo Caetano e Nixon, em 1969, primeiro com o embaixador português em Washington, Vasco Vieira Garin, em fevereiro (n.° 87), e com Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros, por ocasião das celebrações dos vinte anos da nato, em abril do mesmo ano (n.° 88). Nestes encontros, a Administração americana sugeriu que começara um novo curso nas relações entre os dois aliados, mas o Departamento de Estado, não sincronizado com a Casa Branca, estimulava a Embaixada em Lisboa a aprofundar a comunicação com Caetano sobre as relações com a África Negra e o futuro das colónias (n.° 89) e continuou a esboçar Guidelines for policy para Angola e Moçambique (n.os 93 e 94) bastante diferentes dos nsdm delineados por Kissinger. De facto, apesar das démarches de Mobutu (n.° 91) e das Intelligence Notes que alertavam para o crescente apoio soviético aos movimentos independentistas africanos (n.° 92), também na Casa Branca o interesse pela questão colonial portuguesa foi diminuindo e o mencionado «novo curso» nas relações entre os dois países pareceu ter-se esgotado rapidamente.

A África, até ao começo dos anos 1970, não era considerada uma área de grande importância estratégica, e o próprio interesse soviético na área era subestimado. Em conversa com Nixon e Spiro Agnew (n.° 95), Rogers afirmou:

«Penso que o perigo na África vem do confronto entre brancos e negros. [...] Penso que os russos estão a tentar provocar o máximo de problemas que puderem, mas não olham para a África como uma área de importância estratégica. É apenas mais um sítio onde podem armar sarilhos e explorar a sua ideologia, mas não possuem aí um ascendente. Não estão a desempenhar um papel muito ativo.»

Esta perspetiva da Casa Branca mudou radicalmente com a queda do regime na metrópole portuguesa. Num memorando de 29 de abril de 1974 sobre os acontecimentos em Lisboa (n.° 98), Kissinger comentou com Nixon que «uma reorientação de Portugal fora da África e para a Europa podia ser traumática». Passado pouco tempo, os Estados Unidos já estavam e envolver-se na questão angolana: logo em setembro de 1974, a pedido de Mobutu, aumentaram o apoio financeiro que já concediam à fnla de Holden Roberto (n.° 99 e 100); o documento n.º 103 é o relato da conversa de 19 de abril de 1975, entre Kissinger, o Presidente Ford e Kenneth Kaunda, Presidente da Zâmbia, em que este pedia ao Governo americano para apoiar a Unita de Jonas Savimbi. Nesta conversa, já referida pelo próprio Kissinger como o começo do envolvimento americano na guerra civil angolana1, Kaunda declarou falar também em nome de Nyerere e de outros líderes da área. «Mobutu também?» – perguntou Kissinger –, e Kaunda, sorrindo, respondeu que sim, desta vez também Mobutu estava de acordo.

Foi com base nesta conversa que Kissinger emitiu o nssm 224, ordenando um estudo aprofundado sobre os interesses americanos em Angola e a possibilidade de uma intervenção (n.° 105). Contudo, parece evidente que Kissinger – ao contrário do Departamento de Estado – já era a favor da intervenção e no encontro do «40 Committee» de 11 de junho, o debate entrava já nos pormenores técnicos de uma eventual intervenção, antes que o Departamento de Estado completasse o «Study in Response to nssm 224» (n.° 109). Este documento, conhecido também como «Relatório Davis», propunha três opções políticas: a neutralidade absoluta, o esforço diplomático para uma solução pacífica com meios diplomáticos, e o envolvimento ativo visando apoiar a fnla e/ou a Unita. Ao mesmo tempo, porém, foi esboçado pela cia o «Plan for Covert Action in Angola» (n.° 116). Em 17 de julho, Kissinger apresentou este plano ao Presidente Ford, sublinhando que ele estava a favor da ação e que provavelmente Nathaniel Davis, o subsecretário de Estado para os Assuntos Africanos e autor do nssm 224, ia demitir-se caso o plano para uma ação clandestina fosse aprovado. No dia seguinte, Ford comunicou a Kissinger que tomara a sua decisão: «Penso que deveríamos avançar» (n.os 117 e 118).

A ação secreta da Administração Ford em Angola encontra-se no fim da segunda parte – que termina com a saída oficial dos portugueses de Angola, no dia 11 de novembro de 1975 – e a terceira parte do volume, inteiramente dedicada a Angola. Aseleção documental enquadra esta ação de uma perspetiva mais política do que operacional: destacam-se as divergências entre Kissinger e o próprio Departamento de Estado (n.os 106 e 123, entre outros), e entre Kissinger e William Colby, diretor da cia (n.° 121); a questão do envio de instrutores militares não americanos (n.os 127 e 139, entre outros); e o problema dos fundos secretos americanos que, pela primeira vez, chegaram a esgotar, deixando o Governo americano na impossibilidade de prosseguir a sua ação em Angola sem pedir mais fundos ao Congresso (n.° 125).

Do ponto de vista político, destacam-se alguns pontos da ação americana em Angola: em primeiro lugar, o objetivo de Kissinger não era guardar a aplicação do Acordo de Alvor e garantir um governo de coligação entre os três movimentos de libertação, mas sim afastar os comunistas do mpla do governo (n.° 123); era essencial para os americanos que os portugueses esclarecessem a sua política em Angola, afastando as dúvidas de favorecer o mpla; neste sentido, o próprio apoio americano na ponte aérea para repatriar os colonos portugueses podia ser intensificado ou travado, como meio de pressão sobre o Governo de Lisboa (n.° 125). Enfim, a afirmação de Kissinger que «não precisámos de uma vitória total», e o facto de o próprio «40 Committee» não saber ainda quem encarregar do Governo, se Holden Roberto ou Jonas Savimbi, deixa-nos com elementos para avaliar a própria visão estratégica americana sobre a ação em Angola.

O resto do terceiro capítulo documenta os ganhos do mpla frente a uma fnla e uma Unita sempre mais enfraquecidas, e os contínuos esforços da Administração americana para reequilibrar a correlação de forças entre os movimentos independentistas – apesar da situação no campo de batalha e da aprovação do «Tunney Amendment» (n.° 156). Esta lei, aprovada pelo Congresso no dia 19 de dezembro de 1975, cortava os fundos adicionais necessários aos Estados Unidos para estender a sua participação na guerra em Angola. Apesar destas restrições, o próprio Presidente Ford recomendava gastar todo o dinheiro que fosse legalmente possível gastar para chegar a uma solução diplomática em Angola (n.° 163), tendo a covert action americana em Angola custado um total de 31 milhões de dólares (n.° 183). A terceira parte do volume acaba com o debate sobre o estabelecimento de relações diplomáticas normais e a admissão de Angola à onu.

Por fim, o quarto capítulo documenta os esforços americanos para chegar a uma solução negociada na Rodésia e na Namíbia. A maior parte do capítulo é dedicada às negociações sobre a Rodésia, onde Kissinger trabalhou com e por meio dos britânicos, dos sul-africanos e dos líderes negros militantes para forçar Ian Smith e os nacionalistas rodesianos a sentarem-se à mesa das negociações. Os resultados foram um quadro de negociações e a convocação de uma conferência para discutir o futuro da Rodésia. Contudo, apesar do grande esforço diplomático empregado pelos Estados Unidos, os participantes na conferência não conseguiram chegar a um acordo.

Sobre a questão de Angola, que ocupa a maior parte do volume, ficam na cabeça as palavras do cônsul americano em Luanda, poucos dias antes da independência de Angola:

«Não confio em ninguém nesta peça – nem nos portugueses, que não têm vontade, nem no mpla, que não tem escrúpulos, nem na fnla, que não tem sentido, nem na Unita, que não tem força, pelo menos por enquanto. Todos os fatores que condicionam os líderes dos três movimentos são negativos – ódio, avidez, ambição – e a solução final em Angola terá que ser pela força das armas. O epílogo chegará depois da independência e vai ser sangrento» (n.° 130).

 

NOTAS

*[Acessível para download em http://static.history.state.gov/frus/frus1969-76v28/pdf/frus1969-76v28.pdf]

1Kissinger, Henry – Anos de Renovação. Lisboa: Gradiva, 2003.         [ Links ]