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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.35 Lisboa set. 2012

 

A arte de governar os outros…*

 

Sónia Rodrigues

Investigadora do ipri – unl e assistente convidada no Departamento de Estudos Políticos da fcsh – unl. Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais (fcsh – unl), mestre em História das Relações Internacionais (iscte – iul) e doutoranda em Relações Internacionais (fcsh – unl).

 

James Mayall e Ricardo Soares de Oliveira (eds.)

The New Protectorates: International Tutelage and the Making of Liberal States

Nova York,Columbia University Press, 2011, 375 páginas

 

Como é possível governar os territórios dos outros após o fim dos impérios coloniais? Esta é a pergunta a que este conceito de «novos» protectorados pretende dar resposta ao longo dos catorze ensaios de dezasseis autores que compõe a obra editada por James Mayall e Ricardo Soares de Oliveira.

Não pretende ser uma colectânea de estudos de caso em que os agentes externos executam funções tradicionalmente desempenhadas por agentes internos. Não pretende ser um livro sobre o papel de um único actor internacional (Estado ou instituição internacional) na experiência de governar os outros. Pretende sim ser um contributo para a literatura sobre os «novos» protectorados – por oposição aos «velhos» de índole colonial –, articulando o estudo de pressupostos ideológico-normativos e a análise empírica de áreas sectoriais, como a economia ou a polícia, contempladas na governação de territórios temporariamente sob a égide de um agente externo.

 

A LEGITIMIDADE E A LEGALIDADE DOS «NOVOS» PROTECTORADOS: DUAS FACES DA MESMA MOEDA?

Estes «novos» protectorados são diferentes dos outros «velhos» porque os impérios coloniais estão extintos e a ainda nova ordem internacional – fruto do pós-II Guerra Mundial e consolidada com o fim da Guerra Fria – consagrou, primeiro, a responsabilidade internacional em salvar a vida de estranhos quando os estados falham no cumprimento desse dever soberano e, segundo, a hipótese de um actor externo – mandatado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas – poder administrar temporariamente o território de outros. Curiosamente, ou talvez não, princípios e instrumentos consagrados na doutrina sobre a responsabilidade de proteger, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2005.

Contudo, a tentativa de afastar o pendor neocolonialista inerente aos «velhos» protectorados esbarra com uma semelhança salientada por William Bain, que considera os «novos» protectorados como «instrumentos de civilizações beligerantes que procuram propagar um modo de vida superior» (p. 33) e é também confrontada com a percepção de James Mayall quando destaca que poucos «estão preparados para aceitar que a lógica da intervenção é imperial» (p. 55) na sua natureza, facto que nem a associação dos «novos» protectorados com a necessidade de «estabilização institucional» em estados fracos – em vez da tradicional exportação de regimes democráticos – lhe atenua esse cariz hegemónico.

É neste enquadramento que se torna relevante considerar a receptividade da China e da Índia a esta nova forma não colonial de «alguns» poderem governar «os outros». Se para Shogo Suzuki, a aceitação e a participação chinesa nestes «novos» protectorados é mais um instrumento de legitimação e de socialização de Pequim perante os grandes poderes ocidentais – pressuposto que ocupa uma posição dominante na política externa chinesa –, já para Aswini Ray – e apesar do princípio gandhiano de que a «boa governação não é substituto para a governação própria» (p. 108) –, não só a natureza interina dos «novos» protectorados deve ser intangível, como as competências centrais destes regimes interinos devem ir ao encontro das urgências dos respectivos estados falhados e o agente ideal para as conduzir deverá recair sobre a estrutura das Nações Unidas, para que a percepção indiana seja positiva.

Na perspectiva dos grandes poderes ocidentais, a experiência europeia nos Balcãs (Spyros Economides) e a forma como a evolução histórica dos protectorados – «antigos» e «novos» – se encaixa na paradoxal essência da política externa norte-americana (Stefan Halper), confirmam o empenho atlântico no recurso à administração directa e interina de territórios – com vista à sua estabilização – como um instrumento a considerar na (re)construção de estados falhados.

Contudo, Christopher Clapham destaca que apesar de a maioria das crises humanitárias críticas terem acontecido/acontecerem em África – nomeadamente na Somália, no Ruanda e no Darfur –, o facto é que não se registou no continente africano qualquer implementação destes «novos» protectorados, mesmo quando a opção pela administração directa de territórios foi considerada como um instrumento apropriado para estabilizar a Libéria e a Serra Leoa, nos anos 1990-2000.

Ainda que renitentes em entrar no continente africano, estes «novos» protectorados são considerados juridicamente legais quando implementados em conformidade com a legislação internacional mas – embora distintos dos «antigos» de cariz colonial – nem sempre são percepcionados como legítimos, quer pelos actores internos, quer por parte da comunidade internacional.

Nesta perspectiva, torna-se pertinente questionar se a legalidade da intervenção militar a priori condiciona a legitimidade do protectorado a posteriori e vice-versa.

Apesar de James Mayal e Ricardo Soares de Oliveira explicitamente afirmarem que a obra apenas versa sobre as acções externas em territórios no período pós-conflito e não necessariamente na (des)adequação da respectiva intervenção militar a priori com a legitimidade e a legalidade internacionais, o certo é que essa menção é incontornável para o enquadramento normativo da administração e para a ponderação da receptividade do protectorado pelos actores internos a posteriori. Assim, se é a conformidade da intervenção militar, a priori, com os princípios de legitimidade e de legalidade que define as posteriores acções de (re)construção do Estado pelo protectorado como uma ocupação consentida ou como uma invasão rejeitada, estas tornam-se indissociáveis. Neste sentido, centrando-se nas competências sectoriais das operações de (re)construção de estados no período pós-conflito, esta obra não faz qualquer distinção normativa entre a intervenção militar das Nações Unidas em Timor-Leste ou a acção militar defensiva dos Estados Unidos no Afeganistão em resposta ao 11 de Setembro – ambas legais e legítimas – com o bombardeamento de Belgrado pela nato em 1999 ou a invasão do Iraque pela coligação liderada pelos Estados Unidos em 2003 – ainda que legítimas, a sua legalidade jurídica não é consensual.

 

(RE)CONSTRUIR OS ESTADOS DOS OUTROS: COM OU SEM OCUPAÇÃO?

Podemos falar de ocupação quando há um convite interno ao auxílio externo na (re)construção de estados pós-conflito?

Sob a definição conceptual adoptada pelos autores – declaradamente política e não necessariamente jurídica –, qualquer agente externo de cariz multilateral e de liderança ocidental pode arquitectar um «novo» protectorado para governar os outros, de forma transitória e com objectivos «transformativos» (p. 1).

Por multilateral pode inferir-se dois ou três estados? Ocidental é necessariamente de natureza democrática? A legitimidade//legalidade de uns é necessariamente a legitimidade/legalidade de outros?

Primeiro a Sociedade das Nações, depois as Nações Unidas e a União Europeia. Opapel das instituições internacionais na (re)construção de estados não é uma originalidade dos anos 1990 mas é sem dúvida um novo recurso à disposição do intervencionismo da comunidade internacional, apenas possível de ser implementado pelas Nações Unidas com o fim da Guerra Fria. Contudo, quando as funções soberanas de administração directa de territórios é concretizada por dois ou três estados, sem a chancela de uma instituição internacional e sem o convite prévio das autoridades internas, mesmo a concepção deste «novo» protectorado terá sérias dificuldades em escapar ao rótulo de ocupação imperial.

Contudo, para Wolfgang Seibel, estes «novos» protectorados são o culminar da evolução das cada vez mais complexas competências que as missões de paz assumiram, durante a década de 1990, e que tentam combinar a tensão entre a capacidade da estrutura das Nações Unidas – enquanto agente – em produzir burocracia jurídica internacional – que cria e enquadra as administrações directas de territórios – e a sua essência multilateral dominada pelos interesses divergentes das cinco potências pós-II Guerra Mundial. Ideia que é reforçada quando Richard Caplan e Richard Ponzio destacam que a normatividade subjacente à Comissão de Construção da Paz na produção de princípios ultrapassa a efectiva capacidade deste órgão consultivo intergovernamental das Nações Unidas em produzir resultados operacionais concretos.

Ainda assim, apesar do sucesso em redigir princípios normativos e do insucesso em materializar normas em acções no terreno, determinadas áreas sectoriais contempladas na administração interina por um agente externo, como a polícia, a economia ou as relações hierárquicas entre militares-civis dentro do protectorado, acumulam já um rol de experiências consideráveis na história do intervencionismo das Nações Unidas. Neste sentido, a polícia das Nações Unidas – que restaura o monopólio do uso da força para o agente administrante interino – ao desempenhar funções determinantes no restabelecimento da lei e da ordem em cenários pós-conflito, contribui para o reforço da autoridade e da legitimidade do protectorado, salienta Michael Boyle. Por outro lado, os efeitos da intervenção externa na economia política de territórios em conflito e como as prioridades dos agentes administrantes nem sempre vão ao encontro da realidade económica local, reforçam as teses de Mats Berdal e David Keen em como uma abordagem político-económica aos conflitos produz resultados relevantes para o estudo dos protectorados. Ese, por um lado, o major-general K. J. Drewienkiewicz destaca como o protótipo de ter sob um só mandato a componente militar e a componente civil do agente administrante é uma excepção e não a norma vigente nas relações entre militares e civis, dentro da estrutura do protectorado, por outro, Clare Lockhart salienta a competição pela liderança governamental entre os actores afegãos e os agentes internacionais. Oque uma vez mais nos remete para questões relacionadas com a legitimidade na construção de estados de outros, salientada por Dominik Zaum quando refere não só a legitimidade do agente externo mas também das próprias instituições criadas no período pós-conflito.

O certo é que, até hoje, esta nova forma de governar os «outros» tem sido mais uma excepção do que a regra preferencialmente escolhida pela comunidade internacional para estabilizar e reconstruir estados pós-conflito. Alguns são os casos em que a opção por implementar um «novo» protectorado foi equacionada. Poucas foram as situações em que uma administração internacional foi efectivamente constituída. Mas muita é a controvérsia em torno do recurso a estes «novos» protectorados como forma de estabilização de estados fracos. Observações a que esta colectânea de ensaios editada por James Mayall e Ricardo Soares de Oliveira destacam ao longo de um livro indispensável para compreender os dilemas inerentes à problemática sobre os protectorados internacionais, «novos» e «velhos».

 

NOTAS

*A pedido da autora este texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.