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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.35 Lisboa set. 2012

 

O estudo da política externa. Combinar teoria e contexto

 

António Raimundo

Doutorado em Relações Internacionais pela London School of Economics and Political Science (2012) com uma tese intitulada The Europeanisation of National Foreign Policy: Portuguese Foreign Policy Towards Angola and Mozambique, 1978-2010. Foi auditor do Curso de Política Externa Nacional no Instituto Diplomático (2006-2007). Trabalhou como assistente de investigação no Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (2005-2006). Tem atualmente como principais interesses académicos a análise de política externa, teorias da integração europeia, política externa portuguesa, política externa da ue, relações ue-Á frica.

 

Maria Raquel Freire (coord.)

Política Externa: As Relações Internacionais em Mudança

Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra,2011, 394 páginas

 

É comum referir-se que desde o final da Guerra Fria a análise de política externa (ape) adquiriu uma renovada importância no estudo da política internacional. O aparente fracasso das teorias tradicionais dominantes em prever ou elucidar o colapso do bloco soviético, bem como a complexidade e fluidez do mundo pós-bipolar que lhe seguiu, vieram realçar a utilidade de modelos teóricos menos centrados em variáveis sistémico-estruturalistas. Enquanto subdomínio das relações internacionais que procura explicar ou entender a política externa de uma forma menos agregada, a ape abre mais espaço para a consideração do papel do agente. Por outro lado, embora visando integrar variáveis presentes a diferentes níveis, esta abordagem permite prestar mais atenção às dinâmicas internas com relevância para a política externa. A ape considera o processo de formulação da política externa como tão ou mais importante do que a análise dos seus resultados. Outra das suas marcas distintivas é o uso de teorias de alcance médio que, ficando aquém de princípios gerais e parcimoniosos, vão no entanto mais além de uma abordagem meramente empirista, evidenciando padrões em relação a aspetos delimitados da política externa. Para além disso, o seu pluralismo e ecletismo permitem-lhe derivar ensinamentos provenientes de diferentes perspetivas e disciplinas. É precisamente no âmbito deste domínio que o volume Política Externa: As Relações Internacionais em Mudança traz um contributo válido. A sua edição parece responder sobretudo a objetivos pedagógicos. De acordo com os seus autores, o livro «resulta da identificação de lacunas bibliográficas, especialmente no que concerne a estudos sistematizados e inclusivos que combinem teorização e vasta análise empírica na área da política externa». Esta constatação orienta também a organização do volume que se estrutura em duas partes principais: enquanto que a primeira foca aspetos teórico-conceptuais, a segunda apresenta uma série de estudos de caso centrados na política externa de diferentes países.

 

A ANÁLISE DE POLÍTICA EXTERNA: MODELOS E VARIÁVEIS

A parte teórica do volume está condensada num único capítulo que funciona mais como um texto introdutório à ape, do que como um quadro analítico sistemático para os estudos de caso subsequentes. O capítulo começa por descrever as origens da ape no período imediato à II Guerra Mundial, traçando de forma breve os principais marcos da sua evolução, bem como as suas características centrais e relevância atual. De seguida são discutidas algumas definições de política externa, realçando a multiplicidade de atores, processos e dinâmicas que pode envolver. Os autores dedicam uma parte importante do capítulo àquilo que descrevem como os principais modelos teóricos de formulação de política externa: «ator racional», «organizações burocráticas», «pequenos grupos» e «líderes». Em traços largos, o primeiro modelo corresponde à abordagem tradicional que vê a política externa como o produto de um cálculo racional visando maximizar os ganhos para o interesse nacional tal como formulado pelo Estado, enquanto ator principal e unitário. O segundo realça a influência que os procedimentos operacionais e interesses específicos de diferentes burocracias podem ter na condução da política externa. Por sua vez, o terceiro modelo centra-se nas dinâmicas e potenciais efeitos de processos de decisão em grupos restritos. O último modelo aborda a forma como a política externa pode ser moldada pelas características pessoais e tipo de liderança de certos decisores individuais. Não menos substancial é o número de páginas consagrado às «determinantes e condicionantes» do processo de decisão de política externa. Para além do papel da comunicação social, estruturas políticas internas e cultura nacional, as variáveis que recebem maior atenção são os grupos de interesse, comunidades epistémicas e opinião pública. Grande importância é igualmente dada a fatores psicológicos, tais como processos cognitivos e de representação. Na sua parte final, o capítulo enuncia propostas para melhorar o processo de decisão de política externa.

O exercício de providenciar esta visão de conjunto da vasta e dispersa literatura sobre a ape (ainda que longe de ser exaustivo) é meritório e útil. Para além disso, a parte do capítulo centrada nos modelos teóricos de política externa é certamente um dos pontos forte do volume. Tal deve-se à clareza com que são apresentados, mas também à sua importância intrínseca. Com efeito, apesar de frequentemente negligenciados, os modelos de política externa, ao tornar explícitos os pressupostos teóricos em que se baseiam, ajudam o analista a identificar os fatores e mecanismos que em dadas circunstâncias poderão ser mais relevantes. Menos bem conseguida é a parte dedicada às variáveis que condicionam as decisões de política externa. O critério avançado para justificar a escolha dessas variáveis (a sua suposta prevalência na bibliografia temática) não parece totalmente convincente. Os fatores que podem estar envolvidos são seguramente múltiplos, mas isso deveria ser uma razão adicional para seguir um método de escolha menos ateorético. Por exemplo, o uso de categorias analíticas tão simples como a diferenciação entre influências internas e externas é usual na literatura e, neste caso, teria ajudado a obter uma estrutura mais clara e equilibrada. De forma relacionada, as longas enumerações de algumas passagens (e.g., tipos e formas de decisão, características do contexto internacional, estruturas cognitivas) trazem um nível de detalhe difícil de justificar no contexto do livro. Em última análise, o espaço que ocupam poderia ter sido aproveitado para abordar outros aspetos importantes da ape que ficaram omissos e que teria sentido incluir nesta parte do volume. Um exemplo, para o qual o subtítulo do livro parece aliás apontar, seria as implicações para a ape de desenvolvimentos contemporâneos tais como a globalização, a regionalização ou o humanitarismo internacional. A inclusão de uma secção para discutir estes temas teria ajudado o capítulo a adquirir um caráter menos estático.

 

A POLÍTICA EXTERNA DOS ESTADOS: VOZES DIVERSIFICADAS

A segunda parte do volume inclui estudos de caso da política externa de 14 países. São eles: Alemanha, Arábia Saudita, Brasil, China, Estados Unidos da América, França, Grã-Bretanha, Índia, Irão, Japão, Nigéria, Portugal, Rússia e Turquia. A escolha destes países resultou da combinação de três principais critérios: o facto de se tratar de atores relevantes nas relações internacionais; a necessidade de traduzir um certo equilíbrio geográfico; e, finalmente, o objetivo de representar a diversidade de processos de formulação e implementação de políticas externas. A maior parte dos autores dos estudos tem uma especialização no país que aborda, sendo muitos deles investigadores relativamente jovens e com percursos académicos ligados à Universidade de Coimbra e Universidade Nova de Lisboa. Os estudos de caso seguem uma estrutura similar (mas bastante flexível), incorporando aspetos como os principais atores, objetivos, recursos, instrumentos e processos de formulação e condução de política externa, bem como salientando de forma evolutiva a interligação entre fatores internos e externos. Em termos temáticos, a ênfase é em matérias de segurança, política e economia, muito embora nalguns casos também sejam abordadas questões culturais e ambientais. Em termos temporais, os capítulos de forma geral cobrem o período desde a II Guerra Mundial até à atualidade, realçando a fase pós-Guerra Fria. Para além disso, refletindo as preocupações didáticas do volume, cada estudo de caso contém no final uma listagem de questões para análise, fontes na internet e bibliografia recomendada. Ao longo do livro é também visível a preocupação em facilitar a leitura e interpretação da informação através da inclusão de quadros e gráficos.

A qualidade dos estudos de caso é assaz variada. Resulta difícil providenciar uma avaliação detalhada no espaço deste texto, mas entre os melhores, devido essencialmente à profundidade da sua análise, estrutura equilibrada e clareza do estilo de escrita, estão seguramente os capítulos sobre a Grã-Bretanha, Alemanha, China e Rússia. Estes dois últimos apresentam a vantagem adicional de, melhor do que todos os outros, destacar de forma explícita os aspetos mais conceptuais ou teóricos da sua análise. Fazendo uma referência especial ao capítulo sobre Portugal, o texto apresentado (que no essencial retoma o conteúdo de outros trabalhos já conhecidos do autor) descreve de forma breve e clara os «modelos de inserção internacional» que o país conheceu ao longo da sua história. Esta visão geral e de longo prazo, baseada principalmente nos instrumentos de análise da história, representa porventura, até à data, uma das principais contribuições na matéria. Mas ao mesmo tempo, não se pode deixar de constatar o quanto abordagens mais informadas pelos ensinamentos da ape poderiam contribuir para uma melhor compreensão da política externa portuguesa contemporânea. Aspetos secundários, mas que vale a pena mencionar aqui para o caso de haver uma nova edição do livro, é o facto de a bibliografia de alguns capítulos ser desadequada. Tal verifica-se no estudo sobre a política externa dos Estados Unidos cuja bibliografia é demasiado generalista e centrada em fontes primárias, bem como no capítulo sobre a França que apresenta uma lista longa de referências quase exclusivamente francófonas. Para além disso, o volume teria beneficiado de uma revisão de texto mais cuidada a fim de evitar as gralhas e expressões menos claras que em algumas partes do livro estorvam a leitura. O resultado final é decerto um «volume rico, em termos teóricos e empíricos», mesmo se não tão bem sucedido na articulação entre esses dois aspetos. Em suma, trata-se de um «primeiro passo» muito bem-vindo no panorama português, que se revelará útil sobretudo para estudantes de licenciatura, bem como para um público mais vasto com um interesse geral por estas matérias.