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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.34 Lisboa jun. 2012

 

O grande salto no abismo

 

Helena Ferreira Santos Lopes1

Licenciada em História pela FCSH – UNL e mestre em Estudos Chineses pela School of Oriental and African Studies – University of London. Atualmente estuda na National Taiwan Normal University.

 

Frank Dikötter

Mao’s Great Famine: The History of China’s Most Devastating Catastrophe, 1958-62

Londres, Bloomsbury, 2010, 420 páginas

 

Mao’s Great Famine é provavelmente o melhor livro publicado sobre história chinesa nos últimos anos e será certamente uma obra obrigatória no futuro próximo não só para quem estuda história da China como também história das relações russo-chinesas ou do século xx em geral. Frank Dikötter, professor na Universidade de Hong Kong, fez o mais completo estudo da tragédia em torno do Grande Salto em Frente publicado em inglês até à data, tendo baseado a sua informação em vários arquivos provinciais chineses até recentemente fechados aos investigadores estrangeiros. O que encontrou vem reavaliar a dimensão da tragédia num novo patamar, colocando o número de pessoas mortas desnecessariamente entre 1958 e 1962 em pelo menos 45 milhões, número bastante acima dos 32 milhões apontados como limite máximo em trabalhos anteriores. Dikötter não tem medo de frases definitivas chamando ao desastre colectivo gerado pelo Grande Salto em Frente «uma das mais mortíferas chacinas em massa da história humana» (p. xi), resultando na «pior fome registada na história humana» (p. 63) e «na maior destruição de propriedade na história humana» (p. xi). Porém, a riqueza desta obra está não só nas conclusões a que chega mas no chocante relato pormenorizado da vivência da tragédia.

O autor divide o livro em seis partes – nas duas primeiras traça o contexto histórico e a evolução das decisões de política interna e externa que puseram em marcha o Grande Salto em Frente e nas restantes quatro partes detalha os efeitos devastadores desta iniciativa para a agricultura, a indústria, o comércio, a habitação, a natureza e, claro, as pessoas. Estas merecem três partes onde são detalhadas as estratégias de sobrevivência, os grupos mais vulneráveis aos efeitos da fome (crianças, mulheres e idosos) e as diferentes maneiras de morrer. O autor inclui também uma introdução, um epílogo e um capítulo sobre as fontes primárias e secundárias sobre esta temática.

 

PLANO INTRANSIGENTE E APOIADO

Tudo terá começado em 1957, quando, perante um progressivo esfriar nas relações entre Mao e a União Soviética liderada por Khruchchev, o líder chinês declarou que se a Rússia iria ultrapassar os Estados Unidos em produção económica em quinze anos, a China ultrapassaria a Grã-Bretanha. Para o conseguir, Mao põe em marcha um plano de colectivização radical, tendo o termo «Grande Salto em Frente» sido cunhado primeiramente no contexto de uma campanha para projectos de conservação de água no final desse ano. Dentro do partido, Mao afastou os adversários às suas ideias através de purgas como a campanha antidireitista de 1957. O autor observa, no entanto, que sem o apoio interno, que também teve, a dimensão do desastre poderia ter sido diminuída. Se os líderes provinciais apoiaram as campanhas do centro, «prometendo alvos mais altos numa série de actividades económicas» (p. 16), nos escalões mais altos do poder esse apoio a Mao foi igualmente determinante. Dikötter não poupa nas palavras mesmo quando se refere a uma figura ainda bastante mitificada na China, Zhou Enlai. «Mao Zedong era o visionário, Zhou Enlai o intermediário que transformou pesadelos em realidade […], ele trabalharia incansavelmente no Grande Salto em Frente para provar as suas capacidades» (p. 20). Por todo o país e em todos os níveis de governo os dados eram inflacionados para satisfazer os planos da liderança. Em 1958 a produção de grão declarada fora de 410 milhões de toneladas mas na realidade apenas haviam sido produzidos 200 milhões. No entanto, sendo as requisições estatais feitas segundo o valor declarado, os camponeses foram deixados com pouco ou nada para sobreviver, sendo o que faltava extraído por via da força. A prioridade da liderança era alimentar as cidades e mesmo os seus habitantes – em número crescente devido a migrações internas – que não tinham o suficiente. Após o cisma com a União Soviética em 1960, Mao decidiu que «todo o esforço deveria ser empreendido para pagar a dívida soviética em dois anos e que tal deveria ser feito aumentando a exportação de grão, algodão e óleos alimentares o mais possível» (p. 105). Os efeitos destas exigências foram devastadores para os camponeses que, no entanto, culparam a URSS pela sua miséria, quando «os russos nunca pediram um pagamento acelerado» (p. 106). Apesar da deteriorante situação interna, o Governo chinês recusou ajuda oferecida tanto por aliados comunistas como por entidades como a Cruz Vermelha e aumentou o número de produtos que exportava e doava como ajuda a países em desenvolvimento para garantir o seu prestígio internacional na competição com a URSS.

Ao contrário do que por vezes é defendido, a situação no terreno era conhecida pelo Governo.

«Mao recebeu numerosos relatórios sobre fome, doença e abusos vindos de todos os cantos do país, fossem cartas pessoais enviadas por indivíduos corajosos, queixas não solicitadas de quadros O grande salto no abismo Helena Ferreira Santos Lopes 135 locais ou investigações efectuadas por sua vontade por pessoal da segurança ou secretários privados» (p. 69).

Em 1959 a situação foi abertamente denunciada pelo ministro da Defesa Peng Dehuai em Lushan mas isso só resultou na sua purga e no lançamento de outra campanha antidireitista. Mao foi intransigente na sua política: «quando não há comida suficiente as pessoas morrem à fome. É melhor deixar metade das pessoas morrer para que a outra metade possa comer» (p. 134).

 

HORROR TOTAL

Se o conhecimento do que se passava nos bastidores do poder tem enorme relevância, é nas descrições da vida das pessoas comuns que Mao’s Great Famine mais choca o leitor. A violência da colectivização e do trabalho forçado em projectos megalómanos que frequentemente não tiveram resultados práticos é descrita com impressionante pormenor. «Por toda a China camponeses estavam a ser conduzidos a uma situação de fome em projectos de irrigação gigantescos, pressionados fortemente por quadros [do partido] com medo de serem rotulados de direitistas» (p. 33). Tudo era colectivizável, «até os seres humanos» (p. 51): casas foram arrasadas (o autor estima entre 30 por cento e 40 por cento), alimentos e animais foram mortos para impedir que o Estado os levasse, utensílios de cozinha foram confiscados, por vezes até a roupa. «Por todo o país, era muitas vezes nuas que as pessoas morriam de fome, mesmo no meio do Inverno» (p. 141). Os salários foram abolidos em alguns locais, tendo algumas comunas dispensado a existência de dinheiro. Os campos agrícolas foram abandonados porque a mão-de-obra era requerida para outros projectos, o que em muito contribuiu para a fome generalizada. Com Mao a declarar guerra à natureza (p. 174), a exploração não sustentada levou a desastres naturais. O exagero tornou-se o normal: «Em Hunan o lixo humano incluía cabelo e em algumas aldeias de Guangdong as mulheres foram obrigadas a rapar as cabeças para contribuir como fertilizante ou arriscavam-se a ser banidas da cantina» (p. 38). Em Xandong e Xaanxi cadáveres foram usados como fertilizante (p. 173). Em várias províncias as «crianças eram vendidas por aldeões esfomeados» (p. 67).

As primeiras mortes por fome ocorreram em 1958 e na primeira metade de 1959 tornaram-se comuns por todo o país, fazendo com que a situação dos camponeses piorasse com a limitação da sua mobilidade interna. A violência nos campos era tal que a designação «campos da morte» era já usada na província de Gansu antes de o ser no Camboja.

As condições não eram melhores nas cidades, onde nas fábricas «sujidade e fedor permeavam as instalações, piolhos e sarna eram comuns. O caos reinava no terreno» (p. 148). A prostituição, retoricamente combatida pelo Governo, voltou a ter lugar com jovens mulheres vendendo favores sexuais em troca de «um cupão de racionamento no valor de 10 ou 20 cêntimos ou meio quilo de arroz» (p. 234). Uma cultura de desperdício instalou-se, e atalhos na qualidade para aumentar a quantidade da produção resultaram em incontáveis bens defeituosos cuja produção se tornou uma imagem associada à China até aos nossos dias. Muitas pessoas foram envenenadas por químicos industriais. Outras procuraram fugir do país, desde a Birmânia a Hong Kong, mas muitas foram repatriadas para a China.

A corrupção era imensa e transversal a toda a sociedade. As trocas informais aumentaram assim como o jogo. «Um dos muitos paradoxos da economia planificada era que toda a gente comercializava» (p. 202), até as crianças. Vendiam-se os tijolos, a roupa, até o próprio sangue (p. 206). O roubo tornou-se endémico já que, muitas vezes, não o fazer equivalia a morrer de fome. Os membros mais vulneráveis da sociedade eram secundarizados na hierarquia do direito à alimentação por serem menos produtivos, «criando um regime em que os incapazes de trabalhar no máximo das suas capacidades eram lentamente mortos à fome» (p. 265). No meio rural, a «forte competição pela sobrevivência erodiu gradualmente qualquer sentido de coesão social. […] a família tornou-se uma arena de contendas, ciúme e conflito» (p. 213). Para sobreviver algumas pessoas recorreram ao canibalismo de membros da própria família, como mostra um dos casos citados pelo autor, o de Yang Zhongsheng que matou e comeu o seu irmão mais novo. A causa apontada num relatório da época era «questões de subsistência» (p. 322). A violência tornou-se a face comum do quotidiano e não faltam exemplos aterradores no livro de Dikötter sobre como era aplicada.

«Em Hunan, Tan Yunqing, de doze anos, foi afogado num lago como um cachorrinho por ter roubado comida da cantina. Por vezes os pais eram forçados a perpetrar o castigo. Quando um rapaz roubou um punhado de grão na mesma vila em Hunan onde Tan Yunqing fora afogado, o chefe local Xiong Changming forçou o seu pai a enterrá-lo vivo. O pai morreu de desgosto alguns dias depois» (p. 248);

na comuna popular de Chengdong, em Hunan, «mulheres grávidas que não apareciam para trabalhar eram obrigadas a despir-se no meio do Inverno e forçadas a partir gelo» (p. 256).

A sexta parte do livro, «Formas de morrer», sumariza terrificamente as diversas formas em que alguém podia morrer desnecessariamente durante o Grande Salto em Frente, muitas vezes de forma lenta e dolorosa. De acidentes laborais a doenças, passando pelos infames laogai, campos de reeducação através do trabalho, até ao suicídio. «Esquadrões de espancamento» tomaram a seu cargo a disciplinarização em algumas partes do país (p. 311). As descrições são vívidas e chocantes: «Quando as pessoas não eram comidas por ratos, os ratos eram comidos por pessoas» (p. 284); «Água a ferver era despejada em cima das pessoas. Como o combustível escasseava, era mais comum cobrir as pessoas em urina e excremento» (p. 295); «as pessoas eram enterradas vivas nas cavernas escavadas dos montes de loesse. No Inverno eram enterradas sob a neve» (p. 309). Um quadro do partido numa comuna no Hunan aconselhava os novos recrutas – «se querem ser membros do partido têm de saber como espancar pessoas» (p. 294) – e o autor avança com a explicação de que «os membros do partido eram eles próprios vítimas de terror e, por seu turno, aterrorizavam a população sob o seu controlo» (p. 301). Formas de humilhação que ficaram associadas à Revolução Cultural, como as paradas com chapéus de burro ou placards com insultos ao pescoço, eram já uma realidade durante o Grande Salto em Frente. O autor observa que «os Guardas Vermelhos, durante a Revolução Cultural dez anos depois, inventaram muito pouco» (p. 296).

 

CONCLUSÃO

Apesar da dimensão dantesca que Dikötter descreve no seu livro, a sua obra é mais um ponto de partida que um de chegada e o autor tem a consciência que este livro será ultrapassado no futuro. Isto porque boa parte dos documentos nos arquivos provinciais onde pesquisou permanecem classificados e, sobretudo, porque, à excepção do arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, os arquivos centrais permanecem de muito difícil acesso, sendo a sua abertura «improvável de acontecer num futuro próximo» (p. xiii). Mao’s Great Famine é um trabalho historiográfico de enorme relevância, que reavalia um período determinante não só do período de governo de Mao Zedong como da China do século xx. Fá-lo sustentado por fontes de arquivo coevas maioritariamente em chinês, o que nem sempre é a regra nos trabalhos sobre a China que merecem a atenção mediática que este livro suscitou, figurando em várias listas de melhores do ano e tendo sido galardoado com o prémio Samuel Johnson para não ficção em 2011. Ilustrando com pormenor uma das maiores catástrofes do século passado, esta obra é talvez o passo definitivo para que o período em análise não permaneça relativamente esquecido no Ocidente, onde a Revolução Cultural é o movimento mais conhecido dos anos Mao.

 

NOTAS

1 A pedido da autora este texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico