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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.34 Lisboa jun. 2012

 

O PCP e a Revolução de Abril «um pé dentro outro fora»

 

Carlos Cunha

Doutorado em Ciência Política, é executive chair do corpo docente do Dowling College em Oakdale (Nova York). Investigador associado do cies (iscte – iul). Autor de The Portuguese Communist Party’s Strategy for Power, 1921-1986 (Garland, 1992) e de numerosos artigos, capítulos de livros e recensões sobre várias dimensões da política portuguesa.

 

Raquel Varela

A História do PCP na Revolução dos Cravos

Lisboa, Bertrand Editora, 2011, 400 páginas

 

O meu ponto de vista, descobrir a estratégia de poder do Partido Comunista Português (pcp) será o resultado da junção, ao longo de décadas, de várias peças minúsculas de um puzzle. Trata-se de um exercício moroso, que requer grande paciência e levará anos sem fim a ser concluído. O investigador descobre frequentemente que certas peças do puzzle não encaixam exatamente onde começou por pensar que encaixariam. Este puzzle do pcp está a ser/tem sido trabalhado por vários investigadores (alguns dos quais levaram as suas descobertas/experiências para a cova), ajudando-nos a compreender melhor a história do partido. Este juntar de peças irá continuar depois de eu (um dos investigadores) estar na cova. É com grande satisfação que vejo investigadores mais jovens interessados em juntar-se -ao esforço, nomeadamente uma recém- -doutorada em História pelo ISCTE. A sua dissertação, revista para fins editoriais, está agora disponível num volume comercial e de leitura fácil.

Raquel Varela escolheu centrar-se numa parte específica do puzzle, a revolução portuguesa de 1974-1975. A sua tese, contrariando as visões de muitos outros investigadores (incluindo a minha), é a de que o pcp não estava interessado numa revolução mas antes numa aproximação democrática do poder. Para apoiar a sua tese, começa por apresentar um estudo de teorias revolucionárias, como a de Charles Tilly, para mostrar que Portugal foi, de facto, além da mera mudança política, alcançando mudanças económicas e sociais reais no final de 1975. O golpe de esquerda de 25 de novembro de 1975 acabou com o impulso revolucionário porquanto as forças dominantes acentuaram a via democrática. Ao longo do livro, Varela descreve o modo como o partido lidou com os grandes ziguezagues durante aqueles meses revolucionários, descrevendo os passos das diferentes forças (Movimento das Forças Armadas [mfa], partidos políticos, movimentos de trabalhadores, Igreja, camponeses, etc.) para lidar com os problemas da nação após anos de ditadura e de guerra colonial. A análise inclui a chegada do pcp à condição de partido de massas e a sua ênfase na redução das greves de modo a ganhar a confiança do mfa, as primeiras tentativas de Spínola de controlar a mudança, as manobras em torno da Assembleia Constituinte (antes e depois das eleições), os conflitos com a extrema-esquerda (que o pcp apelidava de contrarrevolucionários), a direita, o Partido Socialista (ps), o processo de descolonização e o «verão quente» de 1975, entre muitos outros tópicos esperados.

Raquel Varela escreveu um livro não só acessível ao leitor leigo mas também com interesse para o investigador, sempre com cuidadosa atenção às notas e às fontes. Fez um bom trabalho de revisitação de acontecimentos da época com base na leitura da imprensa do partido e de vários estudos, incluindo outros trabalhos académicos e a sua própria investigação em diversos arquivos. Guardar esses anos revolucionários na memória do público já justifica, por si só, a emergência deste último estudo.

Talvez uma diferença nas nossas abordagens seja a de que, quando li a imprensa do partido, sempre tive uma inclinação mais «soviétologa». Concentrei-me não só no que era dito mas também no que não era. Li muitas vezes nas entrelinhas e acabei por eliminar suposições através de entrevistas a comunistas, ex-comunistas e outros envolvidos no processo, incluindo militares. Julgo que, por vezes, a autora tende a dar demasiada importância ao que a linha oficial do partido ou Cunhal tinham a dizer. A minha posição não foi necessariamente aceitar a voz do partido, mas considerá-la frequentemente mera propaganda. Os partidos ortodoxos, incluindo o pcp, têm uma longa prática de censurar os seus factos tanto durante como depois dos acontecimentos. Os documentos muitas vezes desaparecem, são manipulados ou reinterpretados. Por isso, a documentação nem sempre pode ser aceite pelo seu valor aparente. Por exemplo, a certa altura (p. 175) a autora realça que o debate interno do pcp sobre a descolonização foi feito sobretudo fora da documentação do partido, pelo que os pormenores são difíceis de detetar. No entanto, diria que, mesmo quando os documentos estão disponíveis, estes não devem ser interpretados de forma muito literal. O facto de não existirem documentos disponíveis dos debates sobre a descolonização é muito interessante, na medida em que o partido certamente não queria sequer correr o risco de as ramificações dos debates serem tornadas públicas. Por exemplo, a formação da F rente de Unidade Popular, a 25 de agosto de 1975, suscitou confusão considerável relativamente ao envolvimento do partido na aliança (p. 286). Não discutir o seu envolvimento nos debates sobre a descolonização protegia-o de ter de explicar posições potencialmente confusas.

Raquel Varela trata o tema do ponto de vista da esquerda, como pode ser ilustrado por várias abordagens e escolhas de palavras. Por exemplo, a sua análise de porque Cunhal concordou apoiar o mfa, que era dirigido por oficiais «burgueses» (pp. 199-202), o facto de as nacionalizações nunca terem realmente questionado o «capital privado» e de o pcp ter favorecido o controlo do «Estado» em detrimento do controlo dos «trabalhadores» (pp. 224-231), que analisa a partir de três perspetivas teóricas diferentes (gramsciana, trotskista e leninista), revelam as tendências esquerdistas.

A autora conclui o seu estudo com uma comparação entre o pcp e as táticas leninistas em 1917, defendendo que a atitude do pcp não era leninista mas mais consonante com os mencheviques e Kerensky. Um aparte interessante é que Henry Kissinger, na altura secretário de Estado dos Estados Unidos, fez a mesma comparação, embora tenha escolhido Soares como Kerensky:

«O senhor é um Kerensky», disse Kissinger a Soares. «Acredito na sua sinceridade, mas o senhor é ingénuo.» «Com certeza que não quero ser um Kerensky», ripostou Soares. «Tão-pouco queria Kerensky», respondeu Kissinger1.

Julgo, contudo, que o pcp seguiu, de facto, táticas leninistas. Lenine não esperava que os partidos ortodoxos de todas as nações seguissem uma via semelhante à dos bolcheviques. Em última análise, o importante era a revolução, mas cada partido tinha de seguir a sua própria via para a alcançar. O facto de o pcp estar a seguir as táticas que considerava serem as melhores consistia, a meu ver, numa posição leninista: «Dois passos em frente, um passo atrás. Dois passos em frente, um passo atrás.»

Contudo, na verdade, o livro de Raquel Varela é um contributo valioso para o corpus da literatura sobre a revolução portuguesa, bem como sobre a história do pcp. Proporciona uma leitura interessante, instrutiva e agradável. É sempre bom revisitar análises deste período fulcral da história portuguesa quando a obra se encontra bem escrita, com investigação aprofundada e bem documentada. Aguardo pois com interesse a continuação da montagem do puzzle da história do pcp, na sequência do contributo agora oferecido por investigadores mais jovens, como Raquel Varela.

TRADUÇÃO: MOIRA DIFELICE

 

NOTAS

1 Isaacson, Walter – Kissinger: A Biography. Nova York: Simon & Schuster, 2005, pp. 683-684.