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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.34 Lisboa jun. 2012

 

Revisitar a política externa da I República para além das evidências fossilizadas

 

Bruno Navarro

Investigador integrado do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia (ciuhct). Mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Doutorando em História, Filosofia e Património da Ciência e da Tecnologia pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.

 

Filipe Ribeiro de Meneses e Pedro Aires Oliveira (coord .)

A I.ª República Portuguesa. Diplomacia, Guerra e Império

Lisboa, Tinta-da-China, 2011, 398 páginas

 

A obra A I.ª República Portuguesa. Diplomacia, Guerra e Império, editada pela Tinta-da-China, com coordenação de Filipe Ribeiro de Meneses (University of Ireland, Maynooth) e Pedro Aires Oliveira (Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa – fcsh – unl), reúne, em volume, a maioria das comunicações apresentadas no colóquio «A Primeira República e a Política Externa», que decorreu no Museu do Oriente, nos dias 9 e 10 de setembro de 2010, com o patrocínio da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, do Instituto Diplomático (id – mne), da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (fct) e do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa (ipri – unl). O peso institucional das entidades envolvidas e, sobretudo, a qualidade do painel de oradores convidados, onde pontificavam alguns dos mais destacados especialistas, nacionais e estrangeiros em história diplomática e história da I República, fizeram desse momento um acontecimento marcante do programa oficial das comemorações do centenário da implementação da República. Os aspetos internacionais da I República portuguesa são, ainda hoje, terreno fértil para a investigação histórica, facto que não deixa de ser evidenciado pelos coordenadores desta obra coletiva, que aqui deixam bem expresso o desejo de verem exploradas «novas hipóteses de trabalho», sinalizando, inclusivamente, para o futuro, algumas linhas de investigação que justificam um amplo aprofundamento. Sendo certo que os últimos anos têm vindo a revelar, com regularidade assinalável, um conjunto de novidades editoriais correlacionadas com o período histórico da I República. Se não podemos negar a relevância do contributo de alguns desses estudos para o conhecimento das relações internacionais daquele regime, seja pela abordagem biográfica a alguns dos mais proeminentes diplomatas e políticos da época, seja pelo aprofundamento historiográfico da participação portuguesa na Grande Guerra, seja, ainda, pela escalpelização de algumas das principais relações diplomáticas bilaterais, feitas com recurso ao valioso e pouco explorado espólio documental dos arquivos internacionais, não é menos legítimo sinalizar a inexistência de uma obra de referência que consiga fazer a síntese de todos esses novos contributos. De um modo geral, os investigadores continuam a socorrer-se dos tomos da História de Portugal de Joaquim Veríssimo Serrão e da Nova História de Portugal de A. H. de Oliveira Marques e Joel Serrão, bem como da obra precursora de Pedro Soares Martinez, A República Portuguesa e as Relações Internacionais (1910-1926) que, além de enfermar de uma assumida parcialidade analítica, tem a pecha de circunscrever a sua análise ao memorialismo impresso da época e aos fundos arquivísticos do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Ora, esta nova coletânea de textos, substancialmente ancorados em documentação de arquivos nacionais e internacionais, não esconde a ambição de se instituir, justamente, como «o livro de referência sobre as relações geopolíticas da Primeira República», apesar da descontinuidade das contribuições, reveladora de abordagens historiográficas com propósitos muito distintos e de alcance muito diverso que, como seria expectável, fragilizam a coesão interna da obra. Destaque-se, contudo, o esforço bem-sucedido de contextualização e interconexão do material coligido, feita no texto de introdução, onde se demonstra que a diversidade das abordagens não impossibilita, ou sequer compromete, a fixação de algumas conclusões fundamentais que, só por si, justificam, inteiramente, a oportunidade e a pertinência desta edição.

O livro está dividido em três partes: Na primeira, «Factores permanentes», incluem-se os trabalhos que se debruçaram sobre «questões relevantes para o estudo da política externa da Primeira República ao longo de toda a sua existência» (p. 18). Nuno Severiano Teixeira (fcsh – unl), em «A República e a política externa», avaliou o impacto da mudança de regime na evolução da estrutura diplomática e consular e no correspondente corpo da elite política; Edward F. Arnold (Trinity College, Dublin), em «Narrativas e figurações da República na França da belle époque», analisou «o estado do republicanismo em França no final da primeira década do século xx», partindo da premissa tradicional de que a cultura francófona exerceu, naquela época, uma influência primordial nas elites portuguesas; Álvaro Ferreira da Silva e Luciano Amaral (fe – unl), em «A crise orçamental e monetária portuguesa no contexto internacional», lançaram um olhar verdadeiramente pertinente sobre a evolução económica e financeira da I República no contexto internacional. Na segunda parte, «Relações bilaterais», que constitui o eixo central deste livro, examinam-se algumas das principais linhas de força das relações internacionais do regime, apesar de algumas ausências de monta (França, Alemanha). Rui Ramos, em «Aparências e realidades: os republicanos perante a Aliança Inglesa até à Primeira Guerra Mundial» (ics – ul), procedeu a uma reavaliação crítica à narrativa tradicional das relações luso-britânicas; Hipólito de la Torre Gomez (Universidad Nacional de Educación a Distancia, Madrid), revisitou os seus trabalhos precursores, em torno das relações peninsulares, com o artigo «A I República e a Espanha»; Bruno Cardoso Reis (ics – ul), com obra publicada referente às relações entre o Estado Novo e a Santa Sé, trouxe-nos o artigo «A Primeira República e o Vaticano (1910-1926): a sombra inglesa e o peso do império»; Thiago Carvalho (ipri – unl) e Fernando Martins (Universidade de Évora) debruçaram-se sobre «As relações luso-brasileiras »; Luís Nuno Rodrigues (iscte – iul) analisou as particularidades das relações luso-americanas, em «Portugal e os Estados Unidos durante a Primeira República». Finalmente, na terceira parte, «A Grande Guerra e as suas consequências», reuniu-se, genericamente, um conjunto de textos subordinados à intervenção portuguesa naquela deflagração mundial e à ulterior participação nas negociações de paz, que tiveram lugar em Paris. Filipe Ribeiro de Meneses, em «A grande aposta da república: o corpo expedicionário português», recuperou o debate em torno da constituição do contingente nacional para integração nas tropas aliadas, na Flandres; Manuela Franco (ipri – unl) analisou as políticas de desnacionalização de cidadãos com ligações, mais ou menos remotas, à Alemanha e seus aliados, no artigo «Os desnacionalizados da Primeira República»; Robert McNamara (University of Ulster,Irlanda), introduziu o tema do imperialismo colonial, na época em análise, com «Os impérios europeus ultramarinos durante a Primeira República Portuguesa»; Pedro Aires Oliveira fez incidir a sua análise nos esforços diplomáticos do regime republicano para defesa da integridade do património colonial, no texto «O factor colonial na política externa da Primeira República»; Francisco Romero Salvadó (Bristol University, Inglaterra), acompanhou o percurso político da Espanha, na ressaca da Grande Guerra, com o artigo «Convulsão social e vingança política na Europa do Pós-Guerra. O caminho espanhol para a ditadura, 1919-1923 »; e José Medeiros Ferreira (fcsh – unl) regressou a alguns dos seus trabalhos anteriores para fazer um balanço crítico da participação portuguesa na Sociedade das Nações, em «A globalização da Primeira República».

 

A REPÚBLICA SOB O SIGNO DA CONTINUIDADE

A ideia mais recorrente no conjunto das contribuições aqui reunidas é a de que a República, apesar de toda a retórica revolucionária de mudança, não conseguiu demarcar-se efetivamente do legado político da monarquia constitucional. Ao serem confrontados com as contingências do pragmatismo governativo, os republicanos cedo se aperceberam da impossibilidade de conservarem o edifício doutrinário radical-jacobino, construído nos tempos da propaganda. Uma conjuntura internacional de grande indefinição e volatilidade, como a que existia na viragem do século, associada às dificuldades decorrentes da afirmação de um regime marginal no contexto europeu, numa nação debilitada, periférica e acossada na sua soberania metropolitana e colonial, obrigou os arautos do novo regime a sacrificarem uma parcela significativa do seu ideário redentor, ainda antes de assistirem à derrocada definitiva da Monarquia. A embaixada republicana enviada às chancelarias internacionais com o propósito de tranquilizar os espíritos mais apreensivos, quanto à natureza do movimento revolucionário, introduzindo-lhe moderação e assegurando a sua determinação em honrar os compromissos externos assumidos pelo país, foi bem a imagem dessa transfiguração decisiva, que haveria de condicionar toda a existência do próprio regime. Rui Ramos demonstra, de forma elucidativa, como a República, outrora anglófoba e ufanamente francófila e iberista, se viu constrangida a uma «colagem agressiva», de absoluta cedência e subordinação, diante da Inglaterra, orientação que contrastava com a discrição do alinhamento diplomático nos tempos da Monarquia. Na vigência do regime republicano, a comunidade internacional encarou com naturalidade a sujeição de Portugal a uma presumida «tutela informal» britânica, aparentemente entendida como o único recurso para assegurar a salvaguarda da sua soberania. Dela dependeram o reconhecimento internacional do novo regime; as aspirações anexionistas dos vizinhos espanhóis; as ambições coloniais alemãs; os avanços e recuos nas relações com o Vaticano; a participação de Portugal na Grande Guerra e na Conferência de Paz; a autorização para o estabelecimento de uma base naval americana no arquipélago dos Açores; a entrada de Portugal na Sociedade das Nações; a defesa dos direitos portugueses sobre o Padroado do Oriente; e, de um modo geral, a manutenção da integridade do império colonial.

Mantiveram-se, portanto, as coordenadas fundamentais da política externa monárquica, ainda que, com a mudança de regime, se tenham sacrificado «muitas das ligações pessoais» privilegiadas, entretanto consolidadas, e que desempenhavam um papel nada despiciendo na defesa dos interesses estratégicos do país. Nuno Severiano Teixeira sublinhará, de resto, a própria «continuidade da máquina diplomática e, em especial, do peso relativo da distribuição geográfica da rede diplomática e consular » (pp. 27-28), facto que não deixa de ser revelador da incapacidade da elite republicana para gerar quadros suficientes e uma estratégia política alternativa para assegurar uma verdadeira rutura com o passado. Pela continuidade concluem também Álvaro Ferreira da Silva e Luciano Amaral quando avaliam a política económica, financeira e monetarista da República, não obstante a retórica inflamada de absoluta fratura e saneamento. Portugal continuou a ser o «doente do Ocidente», um dos países mais pobres da Europa, «emparelhando com os países balcânicos» (p. 53). Só a partir de 1922-1924 foi possível, em linha com os restantes países do velho continente, levar a cabo um sólido plano de estabilização financeira de que o Estado Novo haveria de retirar dividendos políticos. De continuidade nos fala, enfim, Pedro Aires Oliveira, quando analisa a orientação da política colonial da I República, ali observando a manutenção da tradicional «visão sacralizada do império», onde se consumia uma percentagem considerável dos parcos recursos metropolitanos, sem que dali adviesse retorno significativo. Permaneceu, por isso, o modelo desnacionalizado de exploração «rentista», à revelia das intenções iniciais de uma administração mais proeminente e descentralizada e apesar da tentativa tardia de criação dos altos-comissariados nas colónias.

 

A INCONSISTÊNCIA DAS NOVAS OPÇÕES ESTRATÉGICAS

Soçobrados, à partida, os propósitos de uma reorientação da política externa portuguesa, no sentido de uma aproximação estratégica a Espanha e a França, seriam também condenados ao insucesso quase todos os restantes esforços feitos, na vigência da I República, para a diversificação e multilateralidade diplomática. A forte aposta na dinamização das relações luso-brasileiras, consideradas prioritárias, pelo novo regime, por razões políticas e económicas, não foi secundada pela nação irmã, do outro lado do Atlântico. Como notam Thiago Carvalho e Fernando Martins, as ligações privilegiadas, entre os dois países, circunscreveram-se a uma «retórica dos afetos», com impacto reduzido no incremento da atividade comercial e na concertação estratégica dos esforços diplomáticos. Com os Estados Unidos da América, depois das inesperadas hesitações no processo de reconhecimento do regime republicano em Portugal, foi possível estabelecer uma cooperação estreita, no decurso da Grande Guerra, com as facilidades concedidas no arquipélago dos Açores. O fim do conflito, porém, ditaria também o esmorecimento daquela colaboração e o «regresso a uma situação de semi-isolacionismo, que caracterizaria a política externa dos Estados Unidos nos anos de 1920». As relações bilaterais, entre os dois países, não tiveram

«qualquer seguimento na altura da Conferência de Paz e da organização da Sociedade Internacional após o fim da Primeira Guerra Mundial, sendo inclusivamente conhecido o apoio dos eua à entrada da Espanha [neutral, no conflito] no Conselho Executivo da Sociedade das Nações, em detrimento de Portugal» (p. 216).

Bruno Cardoso Reis sinalizará, de forma substanciada, os dois momentos decisivos de fratura com a tradição diplomática portuguesa que, aparentemente, redundaram em fracasso: o corte de relações com o Vaticano, decorrente da aplicação da Lei da Separação do Estado das Igrejas, e a intervenção portuguesa na Grande Guerra. No primeiro caso, percebe-se como a opção precipitada e voluntarista por um anticlericalismo radical contribuiu, decisivamente, para o agravamento das tensões sociais e políticas no país, sendo, por esse motivo, parcialmente invertida, com a necessária prudência, nos anos subsequentes, aproveitando os sinais da estratégia de ralliement, iniciada por Bento XV e o ambiente de acalmação, gerado, sobretudo, com a ascensão de Sidónio Pais ao poder. A ida à Guerra, esse «compromisso sem limites», teste verdadeiramente decisivo que o regime não soube superar (como notou Filipe Ribeiro de Meneses), teve consequências mais determinantes para o futuro do regime e da nacionalidade: desde logo, consequências económicas devastadoras – um verdadeiro «terramoto financeiro», que ajudará a «explicar o desaparecimento do regime da I República». Por outro lado, consequências políticas, dividindo irremediavelmente a sociedade portuguesa em torno dessa «questão magna», de onde resultou ainda mais instabilidade para o regime. A intervenção na Grande Guerra terá obedecido, essencialmente, a imperativos de política interna. Mas a manutenção da integridade do território colonial português foi, como se sabe, a par da necessidade de emancipação da diplomacia portuguesa de qualquer tutela externa, o argumento que mais esteve presente na legitimação da narrativa intervencionista. Finda a guerra, porém, o império não deixou de estar ameaçado, como o demonstram as sucessivas tentativas da União Sul-Africana, do Japão, da Bélgica e da Itália, na Conferência de Paz, para se apropriarem de parcelas mais ou menos significativas do seu território ultramarino e, por outro lado, a emergência de novas doutrinas que pretendiam impor a internacionalização das questões coloniais. Gorada ficaria também, em parte, a intenção de anular a superioridade diplomática espanhola (e, com ela, o eterno fantasma do «perigo espanhol») e de conquistar, por merecimento próprio, uma posição de independência e notoriedade no concerto das nações. Finalmente, como fica assinalado por José Medeiros Ferreira, a rejeição das sucessivas candidaturas de Portugal ao Comité Executivo da Sociedade das Nações e, até, o reduzido valor das reparações financeiras e militares, decorrentes da sua condição de nação aliada, vieram frustrar, ainda mais, as expetativas dos causídicos do intervencionismo.