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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.34 Lisboa jun. 2012

 

Verdades incómodas da África emergente

 

Jon Schubert

Doutorando no Centro de Estudos Africanos da Universidade de Edimburgo, onde desenvolve uma tese sobre as experiências populares do poder político em Angola.

 

Rafael Marques

Diamantes de Sangue. Corrupção e Tortura em Angola

Lisboa, Tinta-da-China, 2011, 232 páginas

 

A recuperação pós-guerra de Angola é reconhecida internacionalmente como um milagre económico. Angola está no seu décimo ano de paz depois de uma guerra civil de quase trinta anos que terminou apenas em 2002, e o esforço de reconstrução – impulsionado pelo Governo e alimentado pelo petróleo – tem atraído investidores de todo o mundo. O centro de Luanda está a transformar-se com novos arranha-céus, uma rede de novas estradas e a reabilitação dos aeroportos provinciais, à medida que os caminhos de ferro da era colonial facilitam cada vez mais a circulação e as trocas internas.

Contudo, a expansão económica tem um lado oculto, que tem vindo a ser ignorado por aqueles que competem pelo acesso às riquezas petrolíferas de Angola – em especial pelos países europeus que necessitam desta economia «aditivada» para apoiar as suas próprias economias debilitadas. O desenvolvimento económico que se verificou sob a liderança «sábia e iluminada» do Presidente da República, o engenheiro José Eduardo dos Santos – já no seu 32.º ano no poder – beneficiou apenas uma pequena elite, enquanto que o dia a dia da maioria da população não melhorou muito desde o fim da guerra em 2002.

Recorrendo a uma mistura de meios legítimos e ilegítimos, o mpla (Movimento Popular para a Libertação de Angola) ganhou as eleições legislativas de 2008 com uma maioria de 82 por cento. Conseguiu afastar a oposição democrática e mantém um controlo apertado sobre as liberdades civis. Uma nova constituição, que o mpla fez passar no parlamento no início de 2010 com o intuito de «garantir a estabilidade e refletir as realidades de Angola», aboliu efetivamente a eleição presidencial, garantindo a José Eduardo dos Santos uma reeleição quase automática enquanto chefe de Estado nas próximas eleições legislativas de 2012.

É neste contexto que este livro de Rafael Marques surge como uma correção, pertinente e bastante útil, às leituras enviesadas da situação de Angola. Nesta análise, Marques mostra como a prospeção de diamantes na zona leste do país criou e perpetuou um sistema de exploração e repressão que é mantido de forma consciente e propositada através da cumplicidade entre o Estado e as forças de segurança angolanas, por um lado, e os concessionários públicos e privados, por outro.

Numa prosa clara e lúcida, ao estilo jornalístico, maravilhosamente editada pela Tinta-da-China, Marques analisa as origens deste sistema, as suas bases legais, ramificações económicas e, o que é mais importante, o seu impacto na vida e subsistência das populações das províncias da Lunda, onde os diamantes são abundantes.

 

UMA HISTÓRIA DE REPRESSÃO E SUBDESENVOLVIMENTO

No primeiro capítulo, Rafael Marques descreve como o regime colonial criou em 1917 a Diamang, a companhia mineira estatal, e como esta companhia passou a restringir de forma sistemática a liberdade de movimentos e a destruir os meios alternativos de subsistência que as populações locais tinham ao seu dispor, obrigando-as a fornecer mão-de-obra barata para as atividades de extração mineira. Em seguida, o autor mostra a continuidade entre as políticas de exploração da era colonial e pós-colonial, exemplificadas nos diplomas legais e atos administrativos que mantiveram propositadamente as províncias da Lunda numa situação de atraso. Ainda que as continuidades entre o regime salazarista e o governo pós-independência do mpla já tenham sido documentadas noutros contextos – nomeadamente a utilização dos serviços secretos para controlar a população –, continua a ser instrutivo olhar para as contradições entre a retórica socialista da liderança do mpla, que fala em «colocar o Povo Angolano em primeiro lugar», e a realidade prática na qual persiste a exploração de muitos às mãos de um pequeno grupo de privilegiados.

O segundo capítulo mostra como existe hoje em dia uma discrepância entre a realidade nas Lundas e as reformas legais e tratados internacionais que enfatizam a proteção dos direitos humanos e das liberdades individuais, ao mesmo tempo que defendem uma exploração dos diamantes «para benefício de todos os Angolanos». Ora, de boas intenções está o Inferno cheio, como se diz – e o mesmo se aplica ao Processo de Kimberley. No terceiro capítulo, Rafael Marques pergunta, com toda a justiça, por que razão foram aplicadas sanções internacionais ao Zimbabué por violação dos direitos humanos na mina de Marange, mas não a Angola por violações semelhantes ou mesmo piores nas Lundas. Segundo o autor, o Governo de Angola exerceu pressão, através da Associação dos Países Africanos Produtores de Diamantes (adpa),sediada em Luanda, no sentido de uma circunscrição da definição de «diamantes de conflito» para diamantes extraídos durante um conflito armado.

 

A DANÇA DA PROMISCUIDADE

Depois do primeiro terço do livro, no qual é explicitado o contexto, Rafael Marques debruça-se sobre a parte substancial do seu argumento: a forma como as elites dirigentes de Angola são cúmplices e beneficiam de violações dos direitos humanos nas Lundas. Recorrendo a fontes do domínio público, mas de difícil acesso para a maioria dos angolanos, Marques nomeia os generais que detêm participações em companhias mineiras como a Lumanhe, a Lapi ou a smc, bem como a empresa de segurança privada Teleservice.

Devido a esta acumulação de funções, as chefias militares têm a possibilidade de enviar soldados para controlar a extração mineira artesanal, colocando os garimpeiros à mercê dos soldados, da polícia e da Teleservice. Vários exemplos de torturas e assassinatos são relatados. O capítulo seguinte mostra ao pormenor como a privatização das estradas de acesso aos distritos e a destruição ou expropriação sistemáticas de terra arável para agricultura de subsistência ou de pequena dimensão acabaram por privar as populações de liberdade de movimentos e de meios de subsistência, forçando-as a procurar trabalho nas minas. O ponto fulcral do livro – que constitui o capítulo mais longo, com 88 páginas – é o relato de 109 testemunhos de violação dos direitos humanos por parte das Forças Armadas Angolanas e da Teleservice. Estas violações incluem assassinatos fora dos trâmites legais, tortura e extorsão, e constituem um corpo de prova que clama por intervenção judicial. Porém, como o autor explica em capítulos anteriores, todas as tentativas de levar estes casos à atenção das autoridades competentes redundaram em fracasso.

Rafael Marques é, claramente, o jornalista-ativista angolano com maior visibilidade e reconhecimento internacional, e este j’accuse apaixonado tem como objetivo não só alertar e elucidar os leitores, mas também alcançar um impacto político e judicial em Angola. Na verdade, Marques apresentou recentemente ao procurador-geral da República de Angola queixas-crime contra o Presidente José Eduardo dos Santos e contra várias figuras importantes do regime, relativas a violações dos direitos humanos nas Lundas. Só por esse facto, a sua coragem e este livro merecem elogios sem reservas.

No entanto, é também aqui que as limitações da obra se tornam evidentes. O argumento tenta estabelecer uma ponte entre uma audiência académica e ativista – e acaba por não fazer justiça a nenhuma delas. Apesar do grande número de notas de rodapé com referências a meios de comunicação social, diplomas legais e entrevistas, referências adicionais a trabalhos académicos teriam fortalecido o argumento, em especial nos três primeiros capítulos. A história da exploração mineira nas Lundas, bem como os pontos fracos do Processo de Kimberley, mereceriam uma análise mais aprofundada – talvez estas sejam pistas para investigações futuras? Para além disso, ao longo do livro a linguagem descamba por vezes para um tom ativista acusatório. Por outro lado, para uma audiência não académica, os capítulos introdutórios parecerão algo desconjuntados, enquanto que o capítulo 6 – a enumeração dos casos de violação dos direitos humanos – é de leitura perturbante, ainda que algo repetitiva.

Finalmente, o autor baseia-se num discurso ocidental dos direitos humanos; pode dizer-se que o livro está desta forma orientado para uma audiência europeia, e que na atual Angola os procedimentos judiciais, ainda que suportados por provas ou testemunhos, continuam a ser um gesto fútil e simbólico. No entanto, como o autor escreve na conclusão (p. 216), estes direitos humanos não são um conceito abstrato; a população afetada tem uma perceção bem clara das injustiças que são perpetradas contra si, bem como um desejo de obter reparação ou justiça através de quaisquer meios disponíveis.

Estas são, todavia, falhas de pouca relevância. A coluna vertebral deste trabalho, os testemunhos de Cuango e Xá-Muteba, constituem uma fonte de provas que até agora nunca tinham sido pesquisadas, coligidas e publicadas, e que são de leitura obrigatória para todos aqueles que têm interesse em direitos humanos e na indústria de diamantes em Angola. Seria também desejável que este livro fosse obrigatório para todos aqueles que pretendem fazer negócio em Angola e com o Governo angolano – ainda que, como referi na introdução, os interesses comerciais quase sempre acabem por prevalecer sobre os valores ditos «universais» como os direitos humanos.

O livro aborda ainda vários temas importantes da política angolana que mereceriam uma investigação mais detalhada, como a questão «tabu» dos conflitos étnico-regionais: quando Marques cita uma testemunha que justapõe a autonomia dos tchoqué com os «estrangeiros» que se aproveitam das riquezas de diamantes (p. 100), reflete um sentimento bastante comum entre os angolanos, o de que são governados por um poder que lhes é externo, e o desprezo da elite governante pelo «povo burro, povo matumbo». Este é também um dos casos mais evidentes da partidarização das instituições do Estado angolano, que resulta numa crescente promiscuidade entre partido, Estado, Governo, interesses privados e poderes públicos.

Os desafios que o autor teve de enfrentar para ter acesso às entrevistas e para juntar e publicar os materiais – meios que incluem o furto de documentos, e que são referidos de forma breve na introdução – são, no mínimo, assustadores. Mas isso não é nada quando comparado com as provações diárias que a população das Lundas sofre desde há vários anos. Em seu nome, é importante que este livro encontre uma audiência vasta e recetiva.

TRADUÇÃO: JOÃO REIS NUNES