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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.33 Lisboa mar. 2012

 

Direitos humanos no tempo e no espaço*

 

José Pedro Monteiro

Licenciado em Relações Internacionais pela Universidade do Minho, é doutorando do Programa de Doutoramento Inter-Universitário em História onde desenvolve investigação em torno das problemáticas do trabalho nativo no império colonial português em articulação com as dinâmicas de diferentes organismos internacionais.

 

Stefanludwig Hoffmann (ed.)

Human Rights in the Twentieth Century

Cambridge, Cambridge University Press, 2011, 351 páginas

 

Human Rights in the Twentieth Century é uma com-pilação de intervenções que tiveram lugar numa conferência com o mesmo nome em 2008, em Berlim. O livro assume-se, tanto na forma como no conteúdo, ancorado deliberadamente no campo da história, ainda que represente um importante contributo para outras disciplinas como as relações internacionais e a ciência política. Registos contraditórios, parciais e complexos, como necessariamente não poderiam deixar de ser, integram-se numa rubrica mais global da história dos direitos humanos no século xx.

Estamos perante um livro que não pretende teorizar em torno de absolutos morais. Ao invés da literatura normalmente produzida em torno deste tópico, este volume pretende historizar o percurso concreto do programa dos direitos humanos durante o século xx. O objectivo principal é fazer incidir luz sobre como aquilo que os autores apelidam de doxa contemporânea ou língua franca da sociedade internacional, se constituiu e co-constituiu, como se sintetizou ao longo de debates nem sempre explicáveis por lógicas finalistas. Como, por fim, este conjunto de linguagens e argumentos foram mobilizados, sempre em circunstâncias políticas e históricas concretas.

Este empenho na contingência histórica e na irredutibilidade do espaço político, enquanto espaço marcado pelo conflito e o compromisso, na compreensão da evolução do programa dos direitos humanos indicia uma análise histórica da afirmação deste programa como os conhecemos hoje, desvinculada de visões triunfalistas e teleológicas (The Rise and Rise of Human Rights).

Porquanto se encontre implícita no livro a crítica a uma visão marcada pela continuidade em detrimento das rupturas, não se deve daqui inferir que estamos perante uma tentativa de legitimar as acusações, de diferentes tonalidades de relativismo cultural, que se focam num alegado carácter etnocêntrico desta língua franca. Ao invés, o livro presta-se a mostrar que o modo como concebemos hoje os direitos humanos e como estes são mobilizados, é resultado directo do envolvimento e discussão entre diferentes actores não circunscritos à esfera do Ocidente.

Se, por um lado, não se nega o particular contributo europeu para a institucionalização de um regime internacional de direitos humanos, por outro, os contributos dados por actores de outras latitudes, como seja o caso dos movimentos e dos estados socialistas e anticoloniais, são integrados como partes constitutivas do discurso sobre este fenómeno contemporâneo e pela plasticidade da sua invocação.

A necessidade de situar historicamente a emergência e desenvolvimento da linguagem dos direitos humanos constitui, pois, o propósito central. E historizá-los, para os vários autores, implica não adoptar visões que intentam retrospectivamente forjar uma unidade comum de propósitos em diferentes momentos históricos. Pelo contrário, para os diferentes autores deste livro, a linguagem destes direitos como a conhecemos hoje – com as suas características universalizantes – tem a sua origem no século xx e ter-se-á desenvolvido numa permanente relação dialógica com processos históricos coevos. A II Guerra Mundial, o conflito bipolar, as vagas de descolonização ou as tensões entre os conceitos de autodeterminação, soberania e lei penal internacional ou entre concepções naturais, positivas ou personalistas do direito constituem o pano de fundo em que os direitos humanos se afirmaram e desenvolveram.

 

DESCOLONIZAÇÃO, EUROPA E GUERRA FRIA

Definir o friso cronológico onde se expandem os direitos humanos no período posterior à II Guerra Mundial implica uma linha de demarcação com outros momentos históricos, que se traduz também numa ruptura em relação às concepções positivas e naturais do direito.

Com o século xviii e as suas revoluções atlânticas, marcadas pela relação primordial entre cidadão e Estado enquanto espaço de concretização de direitos e pelo peso do direito natural.

Com o século xix e o século xx até 1945, séculos marcados por conceitos como classe ou raça, clara alusão ao redireccionamento dos processos de aquisição de direitos para as esferas económica e sociais dos diferentes movimentos operários e às políticas de cariz marcadamente racialista e excludente desenvolvidas no seio dos impérios, no entender dos autores.

É apenas natural que esta leitura remeta movimentos que contestaram determinadas práticas dos impérios, como os movimentos filantrópicos abolicionistas, para uma relação subordinada às ambições expansionistas dos impérios, integrando a abolição num programa mais vasto de missões civilizadoras.

É nesse sentido que corre o argumento de Mark Mazower, um dos autores, ao estabelecer uma relação entre a erosão da força do conceito de civilização e a ascensão de um programa de direitos humanos.

A natureza diferenciada do desenvolvimento humano contida nos programas civilizacionais colocaria um entrave fundamental à afirmação de um modelo universalizado de direitos e garantias.

A antevisão do problema colonial emerge, desta forma, como uma equação incontornável na acomodação de um programa dos direitos humanos. Como poderiam as principais potências coloniais europeias conciliar um papel destacado na sua promoção dentro do espaço internacional com a manutenção das suas populações coloniais num estado de privação de alguns desses direitos impedindo-as de serem participantes activos na produção das políticas dos respectivos governos? A este problema não será estranho o facto de a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos não fazer referência ao direito à autodeterminação como nos mostra Andreas Eckert, resultado de considerações diplomáticas e políticas mas também de uma afirmação histórica dos direitos individuais a expensas de direitos colectivos como os das minorias, fruto do desencanto perante a Sociedade das Nações.

Apesar dessa omissão, movimentos anticoloniais africanos e líderes pós-coloniais, como Kwame N’Krumah e Jomo Kenyatta, apropriaram-se da linguagem dos direitos humanos na contestação aos diferentes regimes coloniais. Ainda que esta fosse uma apropriação instrumental, na medida em que os temas da autodeterminação primeiro, e da desigualdade e do desenvolvimento depois, ofuscaram a ênfase atribuída pelos estados pós-coloniais a esta questão. Esta opção não pode ser compreendida sem se aduzir a estes argumentos a fragilidade de alguns destes estados. O medo da secessão levou a que os estados pós-coloniais desconfiassem do alcance da acção internacional em torno dos direitos humanos. É exactamente sobre a independência do Bangladesh em 1971, com a intervenção da Índia e os acontecimentos anteriores que levaram à acusação do Exército paquistanês de genocídio, que se debruça A. Dirk Moses apontando os constrangimentos a uma acção mais enérgica da comunidade internacional, nomeadamente por parte da onu, num cenário marcado pelo conflito entre as necessidades de apoio humanitário e a vontade de uma intervenção humanitária.

É com a Organização Internacional do Trabalho como pano de fundo que Daniel Roger Maul se debruça sobre o problema colocado pelos estados pós-coloniais em torno do direito ao desenvolvimento e a uma mais justa repartição mundial da riqueza. Estes imperativos foram fortemente mobilizados por estes estados no seio de uma organização que a partir da declaração de Filadélfia em 1944, e rompendo com um passado marcado pela produção dual de regulamentos para os «nativos», colocou a agenda dos direitos humanos como ponto de referência de toda a sua actividade. Ironicamente, foi no campo do trabalho forçado, um «crime colonial» por excelência, que a maioria dos estados africanos transigiu com a força programática destes direitos, exigindo matizações para fazer face aos desafios do desenvolvimento.

Os desafios colocados pelos estados pós-coloniais ao discurso dos direitos humanos não obscurecem a importância do momento anticolonial na mobilização e recriação destes. Ao explorar a temática do «estado de emergência colonial», Fabian Klose demonstra como o enfoque nos direitos individuais como estratégia de contestação colonial se materializou antes das independências. Particularmente, explorando a dualidade de critérios de impérios como a França ou o Reino Unido, que à medida que suspendiam temporária e violentamente direitos civis e políticos dos povos coloniais em rebelião, se afirmavam internacionalmente empenhados na sua disseminação global. As insurreições Kikuyu e da Frente de Libertação Nacional na Argélia e as medidas contra-subversivas que lhes sucederam são dois exemplos mobilizados pelo autor para demonstrar o campo altamente politizado onde se desenvolveu a progressão do discurso dos direitos humanos.

É precisamente o conflito argelino que Mikael Rask Madsen invoca como um dos argumentos explicativos da ratificação pela França da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (1950) apenas em 1974. O contexto europeu de dinamização e desenvolvimento deste programa merece a atenção dos autores. A decisão do Conselho da Europa de criar uma convenção sobre os direitos humanos é aqui compreendida à luz das memórias da II Guerra Mundial e dos problemas que lhe sobreviveram bem como do contexto particular da Guerra Fria. Só assim se empresta sentido aos efeitos que estes acontecimentos tiveram no desempenho institucional das estruturas criadas pela convenção: o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a respectiva Comissão. O legado europeu na construção de um regime global de direitos humanos é identificado por Samuel Moyn ao mesmo tempo que se contextualiza esse legado num momento político fortemente dominado pela democracia cristã. Segundo o autor, a formação deste regime integrou e foi fortemente influenciada pelas políticas normalmente associadas à democracia cristã – com as suas preocupações muito personalistas – que vieram dar lugar a uma nova forma de entender a pessoa enquanto agente inserido numa comunidade. A ênfase no estudo da forma como o discurso dos direitos humanos se afirmou e foi enformado por circunstâncias específicas é reiterado pelos artigos de Glenda Sluga e Lora Widenthal que se debruçam respectivamente sobre os trajectos de René Cassin, representante francês na Comissão das Nações Unidas para a redacção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e Rudolf Laun, um advogado alemão não comprometido com o nazismo e que assumiu um papel central na defesa dos direitos dos deslocados alemães.

O terceiro complexo histórico-político-geográfico que domina este livro reporta-se ao conflito bipolar e às contribuições das mundivisões socialistas e comunistas. Ambos os artigos de Jennifer Amos e Benjamin Nathans questionam as tradicionais abordagens ao problema dos direitos humanos na União Soviética, dominados por uma visão dicotómica da discussão em torno deste problema em que o Ocidente surge vinculado aos direitos negativos (políticos e cívicos), por oposição ao bloco socialista, apostado em fazer valer os direitos positivos (direitos económicos e sociais). Registando o evidente incumprimento de muitos dos direitos contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos pela urss, Amos explora a forma como a União Soviética, tendo-se abstido na votação da Declaração, a explorou com propósitos primeiramente internacionais mas posteriormente também internos. Por sua vez, Nathans centra-se na evolução dos debates em torno das quatro diferente constituições que a urss experienciou e nos processos de debate que lhe estiveram associados, bem como, na tendência expansionista da concessão de direitos ao longo da evolução constitucional, de um direito neocorporativo para um direito mais abrangente, evolução que incorpora uma concepção de direitos negativos materializáveis através do Estado.

 

OS DIREITOS HUMANOS E A HISTÓRIA

O argumento mais forte de Human Rights in the Twentieth Century é o de que a história dos direitos humanos que conhecemos foi esta, mas dadas outras circunstâncias históricas e políticas poderia ter sido muito diferente, sem que isso coloque em causa a sua universalidade. Estamos perante um livro fascinante e riquíssimo, que materializa a temática dos direitos humanos e a situa historicamente, respondendo assim ao repto de dotar de substância uma temática que muitas das vezes tem sido tratada a-historicamente.

Contudo, no seu ensejo de localizar espacial e temporalmente a génese e o desenvolvimento desta doxa contemporânea, oblitera a maior parte do século. O período anterior à II Guerra Mundial encontra-se omisso à guisa de uma abordagem demasiado genérica que o epitomiza como sendo um tempo de diferenciação e exclusão. O argumento de que os movimentos filantrópicos abolicionistas serviram propósitos imperialistas e expansionistas é um bom exemplo desta simplificação abusiva. Sendo verdade, confunde-se vontade com consequência. Os movimentos abolicionistas radicavam em última instância na crença de o «outro» poder ser «civilizado» e na necessidade de acabar com práticas desumanas. Se a apropriação do discurso filantrópico foi instrumentalizada com fins expansionistas isso não invalida o movimento que se processou no sentido de conferir, pelo menos, o direito de não ser escravizado ao «outro». Da mesma forma, dificilmente pode ser obviado que a dominação fortemente racializada protagonizada pelos impérios motivou contestação interna e internacional que obrigou a reequacionar o lugar do colonizado em termos radicalmente diferentes. Nem o argumento de que à escravatura se sucedeu o trabalho forçado pode ignorar o nexo que liga o combate à escravatura e ao trabalho forçado à posterior contestação colonial tout court, com todas as implicações na linguagem em torno dos direitos que este processo despertou, como sugerem várias obras recentes, entre elas, as de Suzan Miers e Neta Crawford. Da mesma forma que estes movimentos são colocados fora da linguagem específica dos direitos humanos também é ignorada, por exemplo, a literatura mais recente sobre o papel da Comissão de Mandatos da Sociedade das Nações e o seu Sacred Trust of Civilization na forma como evoluíram as representações e preocupações em torno das populações coloniais.

Em suma, e sem que isso coloque em causa o valor intrínseco da obra, acaba por ser uma história essencialmente circunscrita ao período da Guerra Fria, deixando deliberadamente de fora tanto o período anterior a 1945 como, mais estranhamente, a década de 1990 com todas as implicações e desafios à linguagem dos direitos humanos que lhe estão acoplados, nomeadamente as colocadas pela maior acuidade das discussões em torno das intervenções humanitárias e do Estatuto de Roma.

 

Notas

*A pedido do autor este texto não adopta as regras do Novo Acordo Ortográfico.