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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.33 Lisboa mar. 2012

 

Questionando a «missão civilizadora»

 

Jeremy Ball

É professor de História de África no Dickinson College (Pennsylvania, Estados Unidos) e autor do livro “The Colossal Lie”: The Business of Forced Labor on an Ango­lan Sugar Plantation, 1913-76 (no prelo) e do artigo «The “Three Crosses” of mission work: fifty years of the American Board of Commissioners for Foreign Missions (abcfm) in Angola, 1880-1930», publicado no Journal of Religion in Africa (2010).

 

Miguel Bandeira Jerónimo

Livros Brancos, Almas Negras – A«Missão Civilizadora» do Colonialismo Português c. 1870-1930

Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2009, 304 páginas

 

Em Livros Brancos, Almas Negras – A «Missão Civilizadora» do Colonialismo Português c. 1870-1930, Miguel Bandeira Jerónimo analisa a génese e as contradições da autoproclamada «missão civilizadora» de Portugal nas suas colónias africanas, começando no período que antecedeu a «corrida a África», no final do século xix, e terminando por volta de 1930. Atese do autor, de que essa retórica civilizadora escondia motivações económicas para extrair riqueza aos súbditos africanos, não é nova; a principal contribuição de Bandeira Jerónimo para a historiografia deriva da sua análise sociológica aprofundada da ideologia colonial, à luz da política laboral e da educação missionária. Oautor é especialmente original ao explicar a importância da rede de missionários e educadores que, no conjunto, apoiavam o projeto colonial mais amplo, embora criticassem o colonialismo português por não cumprir o seu mandato civilizador. Trata-se de uma história intelectual das ideias e, nesse sentido, complementa bem o trabalho de uma geração mais jovem de historiadores portugueses, tais como João Pedro Marques (Sá da Bandeira e o Fim da Escravidão, Portugal e a Escravatura dos Africanos e Os Sons do Silêncio) e Cláudia Castelo (Passagens para África: O Povoamento de Angola e Moçambique com Naturais da Metrópole, 1920-1974).

O livro divide-se em duas partes distintas: «O grémio da civilização: o “trabalho indígena” e o colonialismo português» e «Colonialismo sem fronteiras». Na primeira parte, Bandeira Jerónimo mostra como a retórica humanitária de levar a «civilização» até povos colonizados ocupou conferências internacionais e como os responsáveis políticos portugueses inscreveram preocupações relativas à difusão da educação e do cristianismo na sua «missão civilizadora» fundamentalmente como meio de justificar e ocultar os imperativos económicos por detrás do domínio colonial. O autor salienta a controvérsia e o boicote internacional ao cacau produzido por trabalho escravo em São Tomé para defender que a exploração económica dos súbditos africanos se sobrepôs a quaisquer objetivos humanitários. Estas conclusões seguem na esteira de outros historiadores do colonialismo português (ver, por exemplo, James Duffy, A Question of Slavery. Labour Policies in Portuguese Africa and the British Protest, 1850-1920), embora Jerónimo se sirva de algumas fontes interessantes como os programas e resoluções do Congresso Colonial Nacional (p. 145).

Na segunda parte do livro, «Colonialismo sem fronteiras», Bandeira Jerónimo recorre a uma variedade de fontes em inglês e português. Em meu entender creio que é no capítulo iv, «Bíblias, bandeiras e lealdades transnacionais: educando os impérios», que o autor faz a sua contribuição mais original. Nesse capítulo, explica como um quadro internacional de missionários, cientistas sociais, reformadores e diplomatas apoiaram um social gospel para pôr em prática ensinamentos cristãos a fim de melhorar os problemas sociais (p. 199). Se é verdade que os defensores do social gospel apoiavam, em geral, o colonialismo, os seus ideais desafiavam muitas vezes a prática colonial e davam origem a tensões. Por exemplo, no capítulo v, «Novos métodos, velhas conclusões: o Relatório Ross», Bandeira Jerónimo explica o impacto do social gospel na Sociedade das Nações e, particularmente, na Organização Internacional do Trabalho, que enviou o sociólogo americano Edward Ross a Angola e Moçambique com a missão de investigar acusações de trabalho forçado (Edward Ross, Report on Employment of Native Labor in Portuguese Africa, 1925). O relatório de Ross contribuiu para a redação da convenção sobre o trabalho forçado de 1930, que o Governo português se recusou a apoiar (p. 249). No capítulo final, Bandeira Jerónimo avalia a forma como os responsáveis políticos portugueses usaram a propaganda colonial para se oporem aos críticos (sobretudo estrangeiros) do trabalho forçado e da falta de desenvolvimento social nas colónias portuguesas. Os oficiais portugueses tomaram a crítica internacional da política colonial como um ataque à independência e integridade do país, daí que «o problema colonial», sobre o qual tanto se escreveu no período entre as guerras mundiais, se referisse à necessidade de mais propaganda efetiva com o intuito de mudar a mentalidade da comunidade internacional (p. 265). Melhorar as condições em África – pondo fim ao trabalho forçado e construindo escolas – não era uma prioridade, como o alto oficial colonial português, Henrique Galvão, documentaria no seu relatório de 1947 perante uma sessão à porta fechada da Assembleia Nacional. O Relatório Galvão seria apenas publicado em 1961, depois de o próprio autor ter saído de Portugal como refugiado político.

É também no capítulo iv que Jerónimo defende que os setores humanitários e missionários supranacionais, multirraciais e pluridenominacionais colidiam com a lógica da soberania colonial (pp. 179-180). Este é um argumento importante, dada a tendência da historiografia para encarar as fronteiras coloniais como se existissem numa bolha, divorciadas de movimentos e ideias mais amplos e transnacionais. Este excecionalismo é particularmente saliente em vários estudos sobre o colonialismo português, onde este é descrito como inerentemente diferente das políticas coloniais britânica e francesa (sobre este ponto, cf. Gervase Clarence-Smith, The Third Portuguese Empire 1825-1975). Bandeira Jerónimo descreve como, por exemplo, a Comissão Africana de Educação, presidida pelo educador americano Thomas Jesse Jones, se refere a experiências missionárias protestantes em colónias sob domínio britânico, belga e português (p. 184). No seu relatório de 1922, Jones concluiu que as autoridades portuguesas em Angola tinham falhado na sua missão de educar os africanos, embora reconhecesse aos missionários o mérito de terem proporcionado a pouca educação de qualidade que era ministrada às populações.

Partindo sobretudo de fontes secundárias, Bandeira Jerónimo analisa ainda as raízes do social gospel nos Estados Unidos de finais do século xix e o seu fértil cruzamento com movimentos humanitários europeus e organizações multinacionais como a Sociedade das Nações e a Organização Internacional do Trabalho. No capítulo iv, «Novos métodos, velhas conclusões: o Relatório Ross», o autor liga o social gospel a debates na Sociedade das Nações e à decisão de mandar Ross investigar as condições de trabalho em Angola e Moçambique. Mais uma vez, é nesta parte, explorando a interligação entre os movimentos sociais e os desafios humanitários aos piores abusos do poder colonial, que a análise de Bandeira Jerónimo contribui para perceber como o pensamento do social gospel se infiltrou na recém-formada Sociedade das Nações.

Um senão do livro é a falta de material de arquivo significativo referente a espaços coloniais individualmente considerados. Bandeira Jerónimo avalia a «missão civilizadora» de Portugal quase inteiramente do ponto de vista de fontes ocidentais (Europa e Estados Unidos) – reformadores humanitários ou propagandistas coloniais –, oferecendo pouca voz aos próprios africanos e uma escassa noção do que estava a acontecer no terreno em África.

O livro inclui ainda um longo prefácio de 30 páginas escrito pelo orientador da tese de Bandeira Jerónimo, Diogo Ramada Curto. Este prefácio, «Políticas coloniais e novas formas de escravatura», é uma introdução útil à historiografia do trabalho nas colónias portuguesas e inclui extensas notas de rodapé, embora me pareça que o texto de Bandeira Jerónimo valha por si só. Em suma, estamos perante um estudo valioso que será lido com proveito por todos os interessados nas ideias favoráveis e contrárias ao moderno colonialismo europeu. Espero sinceramente que venha a haver uma edição inglesa para que o possa dar a ler aos meus alunos de História Africana.