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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.33 Lisboa mar. 2012

 

Será possível estudar a I República sem se afirmar contra ou a favor?

 

Daniel Alves

Professor auxiliar de História na fcsh – unl e investigador no Instituto de História Contemporânea. Doutorado em História Económica e Social Contemporânea, desenvolve investigação sobre a pequena burguesia entre 1870 e 1914, sobre história urbana e na aplicação da informática à história.

 

Luciano Amaral (coord.)

Outubro: A Revolução Republicana em Portugal (1910-1926)

Lisboa, Edições 70, 2011, 375 páginas

 

SINAIS E SIMBOLOGIAS

Diz o velho ditado que «uma imagem vale mil palavras». Esta pode ser uma forma pouco ortodoxa de iniciar uma recensão crítica, mas também o livro sobre o qual se debruça pouco tem de ortodoxo, a começar precisamente pelo grafismo da capa. Contrariando uma quase unânime utilização das cores garridas da bandeira nacional que, em versão mais ou menos estilizada, foram adotadas quase como norma para a profusão de obras publicadas no âmbito das comemorações do centenário da República, a capa escura de Outubro: A Revolução Republicana em Portugal (1910-1926) oscila entre o cinzentismo do bom povo republicano e um título que vai «morrer» num fundo negro, representando uma metáfora bastante adequada sobre o conteúdo da obra.

Este não será ainda o «livro negro» da República, mas procurou ser, deliberadamente, uma resposta ao tom mais ou menos apologético de alguns dos contributos historiográficos que viram a luz do dia durante as comemorações do «centenário da abolição da monarquia» (p. 13). Apesar de não se ter realizado um trocadilho com um título da obra de Edmund Burke sobre a Revolução Francesa, o livro parece procurar um outro, através da associação da palavra Outubro a algumas conclusões, digamos, generosas, como a que encara o 5 de outubro como «uma revolução bolchevique precoce» (p. 112).

Coordenado por Luciano Amaral, historiador da economia portuguesa no Estado Novo, o livro reúne, a seguir a uma extensa introdução, contributos de diferente fôlego numa estrutura temática/cronológica, começando por uma análise do 5 de outubro, passando pelo direito e justiça na República, pelo estudo das relações entre o Estado e a Igreja, pela participação na I Guerra Mundial, pela experiência sidonista, pela abordagem à economia e finanças, e, por fim, por um inquérito à Nova República Velha e à morte da I República. Como é óbvio, outras poderiam ter sido as temáticas abordadas e outra poderia ter sido a estrutura do livro, mais temática e menos cronológica. Oque deveria ter sido outro, sem dúvida, era o cuidado com a edição e correção final de alguns dos textos pois, por vezes, as gralhas acumulam-se de forma incomodativa.

 

O MANIFESTO DE «OUTUBRO»

A Introdução, com 90 páginas, não é necessariamente contra a República, embora nem sempre este alvo consiga ser evitado, mas foi pensada como uma reação contra a tendência comemorativa que caracterizou o mundo editorial português nos últimos anos. Por ser desta forma, provavelmente, não obviou a uma tendência «especulativa», assumida pelo autor (p. 15).

A análise feita sobre a Monarquia Constitucional parte da premissa que o regime liberal português continha já todos os ingredientes republicanos, com a exceção da presença do rei. Ou seja, a Monarquia não era uma república no «sentido superficial», mas era-o no «sentido substancial» (p. 16). Este argumento remete para uma certa ideia de falta de sentido para uma revolução republicana que chega, no capítulo final do livro, da autoria de Bruno Cardoso Reis, a ser classificada de mero «golpe de Estado» (p. 321). No fundo, se já existia uma república por que razão recorrer à violência para implementar outra?

A violência como parte do «processo político» (p. 49) parece ser um dos argumentos centrais para a explicação dos insucessos da I República, seja na atitude face à Igreja, seja na reação aos movimentos sociais ou ainda ao fraudulento sistema eleitoral republicano que representou um mimetismo do pior que vinha da Monarquia Constitucional, fragilizando o novo regime na sua legitimidade e na institucionalização da política, que não acontecendo de forma moderada no palco natural, no Parlamento, transmitia-se para as ruas, assumindo uma forma radical de «mobilização para-militar» (p. 60). Outro argumento central é o da continuidade versus rutura, com a globalidade da Introdução e uma parte dos capítulos a inclinarem-se para a primeira hipótese, numa tendência para retirar radicalismo aos momentos de rutura da história contemporânea que não é certamente inovação da historiografia nacional1.

Da caracterização sobre a fundação da I República, a análise de Luciano Amaral passa para os fatores que marcam a divisão do período em dois momentos, 1910-1914 e 1918-1926: a participação na I Guerra Mundial e o Governo de Sidónio Pais. Dois acontecimentos fundamentais para se perceber a transformação da experiência republicana e que, em grande medida, determinaram a caminhada para o fim da República (p. 68), argumento sustentado na introdução, mas igualmente nos textos de Pedro Aires Oliveira, sobre a Guerra, de Álvaro Ferreira da Silva e Luciano Amaral, sobre a economia e as finanças, e de Bruno Cardoso Reis, sobre a «Nova República Velha».

Termina com um pequeno ensaio sobre a passagem da Ditadura Militar para o Estado Novo e sobre o significado histórico da República. Quanto ao primeiro aspeto é recusada a inevitabilidade do caminho, iniciado em 1926, que levaria à «ascensão de Salazar». No fundo, tendo em conta a forma como são apresentados os diferentes projetos políticos que pretendiam a «acalmação» da República na sequência da «Noite Sangrenta», em grande medida caracterizados como várias «versões de ditadura», a conclusão óbvia só poderia ser a de que a chegada de Salazar ao poder foi quase obra do acaso e constituiu apenas uma dessas opções disponíveis (pp. 81-87). Atese é provocadora, é uma hipótese que valeria a pena aprofundar e estudar em detalhe, em particular procurando caracterizar melhor os outros projetos alternativos apelidados, também, de «ditaduras». Apesar de alguns argumentos bem articulados, em especial no texto de Bruno Cardoso Reis, falta-lhe ainda um esforço de investigação empírica suficiente que permita colocar a ideia ao nível das teses que vale a pena discutir.

Já no que diz respeito ao significado histórico da experiência republicana, a tarefa do coordenador da obra viu-se facilitada, pois apesar do exagero de se afirmar que da I República «sobraram sobretudo os símbolos da soberania nacional», a hiperbolização gerada pelas comemorações, que, objetivamente, pretenderam reinterpretar a Revolução e a República, sobrevalorizando o seu sentido histórico, abriu o flanco a tentativas contrárias de subvalorização. Apesar de não concordarmos com a classificação de quase insignificância, atribuída por este livro, aos resultados, contributos e sentidos do período histórico que vai de 1910 a 1926 – quanto mais não seja pelo facto de não nos parecer ser esta a perspetiva de análise em que se deve colocar o historiador – também não cremos que a mesma conjuntura da história de Portugal possa ser redefinida como uma «Terceira Fundação» construída agora a partir da Democracia.

 

RUTURA OU CONTINUIDADE? CONTINUIDADE, DIZEM ELES!

Para o argumento sobre a continuidade que a I República terá representado face ao antecedente regime liberal, são várias as explicações encontradas por quase todos os colaboradores na obra. Fernando Martins elege antes de mais o caráter violento do início da República para elaborar, ao melhor estilo da história virtual, infelizmente, que se os republicanos tivessem agido de forma diferente, subentende-se, de forma mais pacífica, então todo o século xx português teria sido diferente, se calhar até nem teria existido Estado Novo. E dizemos infelizmente porque o texto parece terminar de forma abrupta, quando o melhor, uma perspetiva de história comparada, estava a ser esboçado. E essa perspetiva talvez pudesse levar, a opinião é nossa, à conclusão de que mais do que ser responsável pela queda do autoritarismo, talvez o republicanismo e a República tenham atrasado esse mesmo processo. No fundo, constituíram uma experiência quase em contraciclo com o caminho que então estava a ser trilhado por alguns países europeus na mesma época.

António de Araújo e Luís Bigotte Chorão chegam à conclusão de que as medidas dos republicanos face à justiça e ao direito poderiam ter sido uma verdadeira «revolução» não fosse o facto da «instabilidade governativa» ter tornado inviável a sua aplicação. É uma quase revolução que termina invariavelmente em continuidade, ao perpetuar o «erro oitocentista» de «parlamentarização do sistema de governo» (pp. 127-128). Quer no que diz respeito às reformas da justiça, quer quanto à Constituição ou ao sistema de governo, os autores interpretam o esforço legislativo dos republicanos essencialmente regulado pela tentativa de construírem uma imagem de oposição face aos exemplos «negativos» do regime anterior. O tipo de abordagem realizado é interessante, essencialmente, por pegar num tema ainda pouco explorado na historiografia nacional, construindo uma imagem pouco usual sobre o legado da República, as suas realizações e contradições e, em última análise, as debilidades da construção do Estado republicano.

Avisão de continuidade atravessa igualmente o contributo de Bruno Cardoso Reis e Sérgio Ribeiro Pinto sobre a República e a Religião. Mais do que discutir a questão da separação, tendência na qual o texto poderia ter resvalado, procuraram colocar a questão religiosa em perspetiva histórica, chamando a atenção para sinais de conflitos institucionais entre o Estado e a Igreja ainda antes da implantação da República e referindo modelos alternativos de separação, reforçando uma vez mais a ideia de continuidade. Mesmo a lei de abril de 1911 não teria sido, aparentemente, uma novidade radical, apesar de o mesmo não ser afirmado sobre a atitude «unilateral» da sua imposição (p. 149). Sem conseguirem fugir totalmente à polémica ideológica que, tendencialmente, mina o debate historiográfico sobre esta matéria, os autores negam a existência de uma «guerra religiosa» na República, recorrendo à história comparada para sustentar a sua afirmação.

A Grande Guerra continua a ser encarada como o ponto de viragem na República. Apesar da violência, apesar da instabilidade governativa, apesar da atitude face à Igreja, este continua a ser reconhecido como o fator que terá minado em definitivo a experiência republicana. É um argumento assumido no capítulo relativo à economia e finanças, mas não podia deixar de o ser no texto sobre a participação de Portugal no conflito mundial da autoria de Pedro Aires Oliveira. Procurando acompanhar as recentes tendências historiográficas que analisam o caminhar para a guerra a partir das dinâmicas internas dos vários países, é descrito e analisado o empenho do «partido dominante» (p. 308) (prp/pd) em convencer a «aliada» Inglaterra da mais-valia da participação portuguesa no palco de guerra europeu. O processo é então apresentado como uma estratégia de sobrevivência ou tentativa de predomínio político pois procurar-se-ia, através de uma suposta «mobilização cívica» dos portugueses, que nunca chegou a acontecer, a sua adesão ao novo regime. Apesar da questão relativa ao governo de Pimenta de Castro merecer uma abordagem mais detalhada, é apresentada uma conclusão onde se tocam todas as principais consequências para Portugal da participação na guerra. Vale a pena destacar a ideia de uma ligação, mais direta do que até aqui tem sido afirmado pela historiografia, entre as desilusões militares do conflito e o movimento do 28 de maio de 1926.

O contributo sobre Sidónio Pais e o «sidonismo», a cargo de Filipe Ribeiro de Menezes, destaca-se dos restantes pela maior veia especulativa e por ser aquele que mais se apoia em fontes. A afirmação parece contraditória, pois era de esperar que o recurso às fontes permitisse ultrapassar aquela característica. Começando por não reconhecer singularidade à experiência sidonista, pretende colocar em causa as ideias de uma certa historiografia que via em Sidónio o protótipo de Salazar. No fundo, o sidonismo terá nascido e morrido com a Grande Guerra, argumento que parece bem sustentado. Contudo, ao não discutir a historiografia que faz a ligação entre sidonismo e ditadura salazarista, o autor parece entrar em alguma contradição pois, apesar de no início se ficar com a ideia de que não concorda com essa associação, no final do capítulo parece passar a ideia oposta. É certo que nunca é feita uma ligação direta ao Estado Novo e a Salazar, mas não deixa de ser afirmado que o sidonismo estava inserido «num traço contínuo que parte do bonapartismo e desemboca nos autoritarismos dos anos Vinte e Trinta e, como consequência, no Fascismo» (p. 255).

A Grande Guerra serve também de argumento central a Álvaro Ferreira da Silva e Luciano Amaral, logo no parágrafo de abertura do capítulo (p. 257), quando afirmam a importância decisiva do evento na evolução das finanças e da economia da República, na sua queda e, consequentemente, na ascensão de Salazar. Contudo, ao rejeitarem uma visão simplista da problemática e ao optarem pela análise dos anos que antecedem a Revolução e pela comparação com o quadro internacional, conseguiram apresentar uma visão integrada sobre a temática. Na análise aos antecedentes fica clara a importância das transformações operadas na economia e na sociedade portuguesas durante o século xix, resultado, apesar dos ritmos lentos, da Revolução Liberal. Nesta perspetiva, as mudanças introduzidas pela República são apresentadas como menos profundas e estruturantes, não representando os anos de 1910 a 1926 uma rutura equivalente ao período 1820-1836. Aliás, os autores fazem depender da guerra não só os aspetos negativos das finanças e economia da República, como também os poucos aspetos inovadores, uma vez mais retirando qualquer perspetiva de rutura introduzida pela prática republicana e operada pela alteração de regime. Os «elementos de continuidade» (pp. 289-290) são a palavra de ordem da análise feita.

Por fim, mais do que estudar o período 1919-1926, Bruno Cardoso Reis parece ter como objetivo perceber os fatores de sucesso de Salazar, o que não é propriamente a mesma coisa. Entronca na Nova República Velha o «ponto de partida» para a repressão social e política da Ditadura Militar e do Estado Novo (p. 304). Faz ainda uma associação entre Afonso Costa e Salazar, querendo ambos o mesmo, aparentemente, apesar da diferença «autoritária» na forma de o obterem. Diferença essa, aliás, não totalmente explicitada, prevalecendo, para o leitor menos atento, a afirmação inicial de semelhanças entre os dois estadistas (pp. 307-308). Já mais interessante é a análise comparativa sobre o conceito de «partido dominante», normalmente usado para descrever os sistemas partidários da segunda metade do século xx e que faz todo o sentido quando aplicado ao prp/pd (pp. 308-309). Perante o que classifica de «guerra de todos contra todos» (p. 332) (uma piscadela de olho a Thomas Hobbes e ao seu Leviathan), apontada como a derradeira desagregação do Estado republicano, a queda na ditadura é apresentada quase como uma inevitabilidade, fosse aquela ou outra. Mas será que tinha de ser mesmo assim?

Fátima Bonifácio usa exatamente a mesma expressão para meados do século xix2e o que resultou nessa altura não foi uma ditadura, mas sim, após 1851, a consolidação do regime liberal em Portugal. Por que razão setenta e cinco anos depois era inevitável uma ditadura? Apesar de tudo, esta questão vai continuar por responder enquanto o enfoque nos estudos sobre a República for o ponto de chegada e não a análise detalhada do processo em si, que obviamente não pode ser feita apenas com este livro e menos ainda num único capítulo. Apesar disso, talvez a resposta possa ser apontada conjugando os vários contributos com a ideia central destacada na obra. A continuidade face à Monarquia Constitucional, ou melhor, a incapacidade em operar as ruturas que tanto tinham propagandeado durante a fase final do regime monárquico, a introdução da violência como um fator determinante na vida política e na dinâmica social, e a gestão oportunista da guerra com todas as consequências sociais, económicas e militares que daí surgiram, terão colocado os republicanos no dilema e até na ironia de, nos anos finais da República, aparentemente, olharem para várias formas de «ditadura» como uma das soluções possíveis para os problemas do País. O caminho não estava traçado à partida, no 5 de outubro, e este facto, por si só, dá relevância à República, confere-lhe singularidade, justificando que se continue a fazer um profundo debate e se estimulem mais investigações sobre este período. Não no sentido de destacar lados negativos ou positivos, nem com o intuito de ver na prática republicana, entre 1910 e 1926, valores para o tempo presente, que levam forçosamente a olhar para a República com as lentes da atualidade (um exercício sempre mistificador), mas sim para melhor a descrever e compreender e com isso aceitar o seu legado e tirar dele lições para o futuro, independentemente de sermos contra ou a favor.

 

NOTAS

1Veja-se a este propósito, sobre dois momentos fundadores da modernidade dita «ocidental», Greene, Jack P. – «The American Revolution». In The American Historical Review. Vol. 105, N.º 1, fevereiro de 2000, pp. 93-102,         [ Links ] e Schama, Simon – Cidadãos: Uma Crónica da Revolução Francesa. Lisboa: Civilização Editora, 2011.         [ Links ]

2Bonifácio, Maria de Fátima – «“Aguerra de todos contra todos” (ensaio sobre a instabilidade política antes da Regeneração)». In Análise Social. Vol. 27, N.º 115, 1992, pp. 91-134        [ Links ]