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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.33 Lisboa mar. 2012

 

No centenário da República: uma releitura da separação

 

Paula Borges Santos

Mestre em História Contemporânea pela fcsh – unl, onde desenvolve atualmente o seu doutoramento. Investigadora do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa e do Instituto de História Contemporânea, integrou vários projetos de investigação de diversas unidades científicas nacionais. Publicou Igreja Católica, Estado e Sociedade (1968-1975): O Caso Rádio Renascença (ics, 2005) e A Questão Religiosa no Parlamento (1935-1974) (Assembleia da República, 2011).

 

Luís Salgado de Matos

A Separação do Estado e da Igreja

Alfragide, Publicações Dom Quixote, 2011, 719 páginas

Até à publicação do livro de Luís Salgado de Matos, A Separação do Estado e da Igreja, existiam diversos trabalhos de investigação editados (na grande maioria produzidos em sede académica) que se ocupavam das relações entre o poder político e a Igreja Católica, durante a conturbada I República portuguesa, ou que privilegiavam o estudo da dinâmica do catolicismo português, explorando as suas ligações à política e à sociedade. Todavia, trata-se de investigações dedicadas a problemáticas circunscritas ou que não abarcam a totalidade do período republicano. Refiram-se as mais significativas: o estudo do conteúdo da Lei de Separação de 1911 e da sua aplicação administrativa,por João Seabra1; e a investigação de Maria Lúcia de Brito Moura2 sobre atitudes e comportamentos das populações submetidas ao processo laicizador, determinado pelas autoridades civis e suportado pela legislação produzida entre 1910 e 1917.

Nessa constelação de trabalhos científicos, o livro de Salgado de Matos distingue-se por fornecer, com um caráter sistémico e institucionalista, uma visão de conjunto sobre as estratégias e comportamentos que, entre 1910 e 1926, no território nacional metropolitano, foram adotados quer pelo Estado, quer pela Igreja Católica, no conflito que decorreu da afirmação na organização social do novo modelo jurídico-constitucional de separação. Sem deixar de ponderar o estado da arte sobre o tema que o ocupa, o autor sustenta a sua investigação num exercício empírico exaustivo, suportado por novas fontes históricas, mas também pela releitura de documentação já conhecida, sobre a qual lança novas interrogações que lhe permitem ampliar a respiração do estudo.

A tese agregadora da multiplicidade de ocorrências, atitudes e táticas que Salgado de Matos regista e observa nos atores históricos, institucionais e individuais, é, como o próprio explicita logo na Introdução, a de que «a separação não foi querida nem pela Igreja Católica, nem pelo Estado», porém, «uma vez iniciada, ultrapassou-os, obrigou-os a aplicarem estratégias de luta, dividiu-os a ambos, e reformulou-se em termos que, à partida, nem um nem outro tinham imaginado» (p. 33). Para dar leitura ao trabalho, o autor apresenta uma retrospetiva, onde caracteriza o catolicismo português no final da Monarquia Constitucional, e trabalha uma sequência cronológica do problema da separação identificando três fases do processo: uma primeira, que vai do 5 de outubro de 1910, dia do golpe militar, ao I Governo Constitucional, a 3 de setembro de 1911; uma segunda fase, que envolve o final do ano de 1911 e se prolonga até ao fim da I Guerra Mundial; e uma última que se desenrola entre 1918 e o 28 de maio de 1926. A terminar, Salgado de Matos apresenta doze pontos conclusivos. Dois destinam-se a fazer uma apreciação crítica das principais teses que regeram, dentro e fora do meio académico, até à atualidade, a apreciação do que foi a institucionalização do fenómeno da separação. Os restantes dez sumariam as principais interpretações que o autor teceu ao longo do livro.

DE CONFLITO EM CONFLITO…

Para o intervalo temporal que decorre entre outubro de 1910 e setembro de 1911, Salgado de Matos identifica as medidas de separação tomadas pelo Governo Provisório, antes da publicação do decreto-lei de 20 de abril de 1911, considerando que tal «legislação afetava a Igreja mas não o culto, [e] tinha por objeto a organização social e não a instituição Igreja» (p. 77). Revela a existência de contactos e consultas entre o ministro da Justiça, Afonso Costa, e os bispos portugueses, com vista a ser estabelecido um acordo quanto ao estatuto público da Igreja Católica portuguesa; enquanto o governante se recusava a negociar com a Santa Sé, o patriarca Mendes Belo deixava claro que nada proporia sem autorização papal e sem que fosse respeitada a liberdade completa da instituição eclesial (pp. 82-83). No posicionamento do episcopado português e da Santa Sé face à proclamação da República e às primeiras medidas de separação, o autor sugere ter havido uma falta de sintonia entre as posições de Lisboa e de Roma (p. 76). Todavia, esse desfasamento superar-se-ia, a breve trecho, através da Pastoral Coletiva publicada pela hierarquia eclesiástica em fevereiro de 1911, na qual interveio a Santa Sé, quer dando-lhe a redação final, quer decidindo a data da sua divulgação (pp. 101-104). O episódio da Pastoral Coletiva é bastante valorizado por Salgado de Matos, que defende que o mesmo determinou Afonso Costa a pôr fim à «negociação regalista com a Igreja Católica» e a decidir-se pela aplicação de uma separação conflitual (p. 136). No Governo Provisório, não obstante a adesão unânime dos seus membros ao princípio da separação, a elaboração da lei produziu conflitos. Contra os defensores de uma separação negociada e ignorando as «advertências que lhe foram feitas», o ministro da Justiça impôs aos seus pares «as medidas mais controversas da lei [de 20 de abril de 1911]» (pp. 58-59, 144-145). Tal «volte-face tático» permitiu a Costa aumentar o seu poder pessoal e popularidade nos meios republicanos mais laicistas, desenvolvendo o tema propagandístico de se tratar de uma medida de defesa republicana perante uma Igreja disposta a desprezar a ordem pública e apoiante da restauração do monarquismo (pp. 145-149, 195-199).

A lei de abril de 1911, que consumou uma separação «à portuguesa», e a sua aplicação provocaram clivagens entre laicistas, separatistas e regalistas (pp. 189-190), que fragilizaram as bases de apoio republicanas dos sucessivos governos constitucionais. Para o período de setembro de 1911 a 1918, Salgado de Matos põe em evidência as oscilações daqueles executivos entre: a manutenção de um clima de combate à instituição eclesial, a que correspondia a identificação da crítica à «intangível» com a recusa da separação ou a publicidade de que se cumpria integralmente a lei de Separação – atuação que agradava, sobretudo, a uma minoria, organizada na Associação do Registo Civil e nos círculos do Livre-Pensamento, a que se juntavam alguns afonsistas, mas que vai perdendo êxito; e o desenvolvimento de uma «política de atração» dos católicos à República, a qual, até certo ponto, se materializava nos anúncios de revisão daquele diploma legislativo – que recolhia a adesão dos republicanos moderados, próximos de António José de Almeida, críticos dos excessos da lei. As incursões monárquicas de 1911 e 1912 (como também as de 1919) acentuariam o anticatolicismo de algumas hostes republicanas, não obstante não existir qualquer fomento por parte das autoridades eclesiásticas daquelas ações. Uma acalmia nas relações do Estado com a Igreja ocorreria, ainda que por um curto período, com a entrada de Portugal no conflito bélico mundial em 1916 (p. 253). Apolítica da Santa Sé para com Portugal é ainda objeto de análise do autor, que avalia: o corte das relações diplomáticas vaticanas com Portugal por Pio X; os esforços papais de fortalecimento do poder episcopal; e a estratégia de Bento XV de abertura do catolicismo à República, mediante a criação do Centro Católico Português (ccp) e o restabelecimento das relações diplomáticas com Portugal durante o sidonismo.

… ATÉ À CONCÓRDIA

Salgado de Matos considera decisivo o reconhecimento recíproco do Estado e da Igreja Católica operado durante o governo de Sidónio Pais (p. 478). Através desse acordo, uma «concordata informal» como lhe chama (p. 475), o Executivo pacificava relações com o episcopado, via reconhecida a sua soberania nas colónias africanas, e alcançava um apoio simbólico, dado que a Santa Sé aceitava a separação na versão Lei Moura Pinto e punha termo à sua equidistância face à «questão do regime» (p. 533).

Para a Santa Sé tratava-se de garantir a possibilidade de evangelizar em África, mas também de evitar o isolamento internacional do Vaticano, já que Portugal estava entre os vencedores da I Guerra Mundial e o reconhecimento da República portuguesa favorecia a estratégia papal de reaproximação à França (p. 688). Os efeitos que tal situação viria a ter sobre a vida portuguesa, entre 1919 e 1926, aduzem razões para o destaque que lhe confere o autor. Desde logo, por ter potenciado as divisões de católicos e de monárquicos, que, apesar de existirem até 1918, tornar-se-iam mais profundas e pertinentes, para alívio dos governos que as percecionavam como comportando aumento de fragilidade desses adversários.

O acordo de Bento XV com o Governo e a encíclica de dezembro de 1919, reforçando a opção pelo ralliement, suscitariam uma reação negativa entre os bispos portugueses, renitentes àquele espírito e divididos entre apoiar ou não a «política monárquica» (pp. 523-528, 551-552). Ao patriarca Mendes Belo imputa o autor uma simpatia monarquista e uma dificuldade em rever-se na alteração das relações da Igreja com o Estado, o que viria a isolá-lo dos restantes bispos nos anos 1920 (pp. 490-491, 573-574, 696). Outro conflito seria suscitado com D. Manuel II, que não deixara de agir sobre a imprensa e na organização eleitoral monárquica e entraria em conflito com os pontífices Bento XV e Pio XI; em causa estavam os poderes do rei padroeiro após o reconhecimento da República pela Santa Sé. As críticas do monarca não foram públicas, mas o falhanço da sua ação política junto do Papa tornou-se do conhecimento geral por ocasião da peregrinação nacional a Roma, em 1925. Depois de 1918, apenas Mendes Belo «continuou a apoiar o rei exilado e a reconhecer[-lhe] de modo implícito o estatuto de protector» (pp. 637-643, 690-691).

Também a estratégia papal de transformar o ccp num partido de poder, com a orientação de que deveria realizar uma política de defesa dos interesses da Igreja, acarretou problemas. A tática do ccp foi combatida por manuelistas e legitimistas, partidários da «política monárquica» (pp. 484-486). Espartilhado pela apertada direção episcopal e papal a que estava submetido, o ccp não encontrou forma de conciliar a defesa dos interesses da Igreja com o problema da liberdade dos católicos, não mobilizou o clero nem parte substantiva do eleitorado católico para a sua causa, além de não reduzir a desconfiança dos republicanos «democráticos», em particular os laicistas, sobre a Igreja (p. 646).

ALGUNS COMENTÁRIOS

É notável, a vários títulos, a investigação realizada por Salgado de Matos, ainda que a leitura da obra beneficiasse de um esforço de síntese, pelo qual o autor parece deliberadamente não ter optado. São diversos os novos contributos para o estado da questão dados por este estudo, por exemplo: o comportamento dos «democráticos» face ao problema da separação; o relacionamento entre os bispos portugueses e a Santa Sé; algumas reações internacionais à política religiosa dos governos republicanos; a reação das capelanias e congregações religiosas estrangeiras, recusando ser abrangidas pela Lei de Separação e reclamando os seus bens confiscados; o posicionamento do rei exilado, D. Manuel II, face à situação criada pela República à Igreja Católica.

Alguns aspetos merecem, no entanto, comentário. Para um leitor generalista, trata-se de um trabalho excessivamente pormenorizado, no qual uma narrativa cronológica muito distendida pode gerar perturbação. Para um público académico, o estudo não permite o controlo empírico desejável, dado que muitíssimas passagens não possuem indicação das fontes utilizadas para a sua construção. Outra dificuldade regista-se a propósito do que no livro é defendido sobre a Maçonaria, o patriarca Mendes Belo e D. Manuel II, uma vez que a sua prova supõe-se difícil, como o próprio autor chega a reconhecer para um dos casos (p. 689). Ainda sobre as fontes, registe-se o uso exaustivo do jornal A Capital, podendo inquirir-se sobre o porquê dessa escolha de Salgado de Matos, dado que a imprensa republicana foi variadíssima e existiam outras sensibilidades políticas além da daquele vespertino. A primazia dada pelo autor ao estudo dos «democráticos» é outra opção que ganharia em ser justificada. Salgado de Matos não aprofunda nem dedica o mesmo espaço à análise de outros setores republicanos, apesar de registar a sua importância.

Da reavaliação da problemática da separação feita por Salgado de Matos, há uma personalidade histórica beneficiada: Afonso Costa. Num esforço crítico de outras teses, Salgado de Matos constrói a sua: Costa «nada fez para destruir a Igreja» (p. 345); o que procurava era uma Igreja Católica submetida ao controlo do Estado. Face à nova relação que o poder político tenta estabelecer com a Igreja, esta reage e exerce a sua violência (p. 675). O autor estabelece, assim, que não houve perseguição do Estado sobre a Igreja Católica, antes uma relação de combate mútuo. Ora, comentar criticamente a ideia de perseguição e defender que tal não existiu em Portugal na I República, como faz o autor, não deveria ter por principal critério outras experiências de maior violência dos estados sobre as igrejas, contemporâneas do período trabalhado (México ou Rússia) (p. 346) ou posteriores a 1945 (pensará Salgado de Matos na «Igreja do Silêncio»?) (pp. 673-676).

Os fenómenos de perseguição não podem ser reduzidos a um propósito de aniquilação ou de violência explícita. De facto, algumas disposições da Lei de Separação e a praxis da sua aplicação instituíram sobre a estrutura eclesiástica um controlo bastante mais apertado do que o do regalismo monárquico, sobretudo nos governos afonsistas. Apolítica religiosa de Costa, cuja legitimidade foi questionada por diversos setores da sociedade, que não lhe emprestaram a sua solidariedade, colidiu com espaços de autonomia e de tolerância de que beneficiavam as confissões religiosas antes de 1910, e não concorreu para que o Estado assumisse uma posição de neutralidade face à religião e face à Igreja Católica em particular.

NOTAS

1Seabra, João – O Estado e a Igreja em Portugal no Início do Século XX – A Lei de Separação de 1911. Cascais: Princípia, 2009.

2Moura, Maria Lúcia de Brito – A «Guerra Religiosa» na I República. 1.ª edição. Lisboa: Editorial Notícias, 2004.