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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.33 Lisboa mar. 2012

 

«Visões» e «visionários»

 

René Pélissier

Historiador. Autor de Les campagnes coloniales du Portugal, 1844-1941 (2004) e, com Douglas L. Wheeler, História de Angola (Tinta-da-China, 2009).

 

Em francês – e na sua tradução portuguesa – as palavras «visões» e «visionários» foram em tempos vocábulos com sentidos múltiplos, por vezes ambíguos, mas que não colonizavam perigosamente as nossas línguas. Depois vieram os americanos e, por percolação, os anglófonos em geral. O fenómeno tornou-se contagioso entre os especialistas da comunicação, sempre em busca de novos ditirambos cada vez mais lisonjeadores para os seus clientes. Atualmente é difícil ler, seja em que língua for, qualquer publicidade, discurso de um presidente-diretor-geral ou de um homem político de terceira ou quarta categoria, de um criador de moda ou de perfumes, ou mesmo o relatório de um simples banqueiro no meio da crise mundial, onde não seja invocada uma «visão» transcendente que habita estes «visionários», de quem se quer ganhar favores e sobretudo orçamentos. Todos procuram um grama de notoriedade pública.

Iremos fugir deste psitacismo internacional e, se encontrarmos «visões» de vários tipos, será sem procurarmos, a todo o preço, nos livros evocados adiante, «visionários». Na nossa humilde opinião, seria de aconselhar aos «comunicantes» do início do século xxi a leitura atenta da enorme tese de doutoramento de Estado (mais de 2800 densas páginas) do historiador Jean-Marc Delaunay. Se lhe sobreviverem, verão o que é, e o que deveria ser no futuro, a visão de um investigador obstinado em abraçar exaustivamente o seu objeto sem se preocupar com qualquer glória mediática. A sua glória não é monetária e é finita, mas é provável que dentro de trinta ou mais anos nos rendamos à evidência: o monólito continuará inigualado. O autor consagrou talvez vinte anos da vida a descortinar, como nunca antes fora feito, as relações franco-espanholas do fim do século xix até à I Guerra Mundial. Isto reconcilia-nos com o trabalho obscuro e mesmo ingrato dos historiadores, numa época em que os mais hábeis de entre eles se fazem eleger para a Academia Francesa à custa da compilação de trabalhos anteriores e exteriores, temperados ao gosto do momento: repetição e mesmo aliciamento bem (ou mal) escrito. No seio da universidade francesa é encorajada, agora, a minitese, sucedânea do Ph.D, redigida à pressa, rapidamente esquecida mesmo se publicada. Uma coisa é certa: Méfiance cordiale não será esquecido no círculo estreito dos especialistas das relações internacionais em Espanha. Mais de 2800 páginas sobre, grosso modo, quinze anos não particularmente cruciais na história diplomática bilateral da Espanha e da França não se justificam se não admitirmos a visão global de Delaunay. Drenou os arquivos para o período 1898-1913. Eo que é que lhe interessa? Tudo! Políticas internas, questões militares, coloniais, estratégicas, económicas, migratórias, culturais, etc.

Perante a imensidão de riquezas, escolhemos o volume ii1, onde se dissecam os interesses ultramarinos de Paris e de Madrid, nas metrópoles e nos territórios onde estão em contacto. Por vezes os interesses são conflituais, ainda que maioritariamente abafados. Há centenas de páginas sobre os seus cidadãos na Ásia (após a perda das Filipinas) e no Magrebe Central e Oriental (sobretudo na Argélia). A maior parte do volume, contudo, é dedicada a Marrocos, com as rivalidades locais no contexto da crise franco-alemã de 1911, antes de se chegar ao acordo de 1912 entre Paris e Madrid, e depois com o início das ocupações dolorosas de Marrocos, sem esquecer o pomo de discórdia de Tânger, antes de se conseguir uma aproximação desconfiada. O capítulo ix, de 55 páginas, é, na nossa opinião, o mais original, pois esclarece as disputas franco-espanholas no Sara e na África Equatorial, tema raramente estudado antes de Delaunay.

O autor terá passado muitos anos a ler toda a correspondência diplomática nas duas capitais e fora delas e, devido a esta filtragem, não pôde conceder a mesma atenção às populações do Rio Muni colocadas perante colonizadores indecisos e que se sentem espoliados (Espanha), saciados (França) ou ávidos e à espreita (Alemanha). Seja como for, trata-se de um trabalho titânico de que não existe equivalente minucioso no domínio franco-português, mesmo se alargarmos o período coberto a todo o século xix colonial (até 1914 e mais além). Procuram-se então candidatos sérios, tentados pelo assunto e sem preconceitos nacionalistas. Mas quem é que os irá subvencionar no longo prazo (provavelmente entre dez a quinze anos)?

Fiquemos na África Central tornada hispanófona com uma outra visão, assente na vontade de enriquecer, disfarçada por um fino verniz de luta contra um «tirano» africano. É um vasto programa, na verdade, que nos conduz pelo mundo subterrâneo de antigos militares dos serviços especiais da Grã-Bretanha, da África do Sul e até de Israel, financiados por personagens e redes duvidosas com grande habilidade para se interessarem pelos antigos impérios português ou espanhol. Se tiverem petróleo, claro está. Muito petróleo! Não nos preocupemos demasiado então em saber se os dadores são «visionários» ou não. Oque conta é o que põem em cima da mesa. O livro de Simon Mann é um bom produto desta forma de comunicar com o grande público, ao esperar vender a sua história. Ea sua história tem complôs, educação nas melhores escolas britânicas, carreira militar prestigiada, família de oficiais oriundos de uma grande dinastia de fabricantes de cerveja, cujo filho inexplicavelmente se vira para a criação de uma empresa de fornecimento de mercenários de alta gama, e traição, detenção e depois encarceramento durante cinco anos numa prisão muito dura em Harare (Zimbabué) e numa outra em Malabo (na Guiné Equatorial), curiosamente descrita como suportável!

Cry Havoc2 é um livro vítima dos maus hábitos ganhos nestas sociedades de «cães de guerra». A essência das suas atividades resume-se a correr atrás de um cliente que necessita de equipas de especialistas em combate rápido, capazes de lutar contra os rivais prestes a tomar o poder, em Angola, na Serra Leoa, etc., ou, mais raramente, de depor, ex-nihilo, um governo. Por isso, para este género de autores, as preocupações cronológicas dos historiadores são risíveis. O leitor começa o texto em 2003 com a preparação de um golpe de Estado entre os fangs da Guiné Equatorial em plena euforia petrolífera. Depois salta-se para 1993, quando o autor se bate com os sul-africanos contra a unita no Soyo, a pedido das grandes companhias petrolíferas e do mpla, o inimigo jurado dos sul-africanos entre 1975 e 1988. Voltamos a partir para 2004 e para o fiasco da operação contra Malabo. Outro defeito é a abundância de siglas e de abreviaturas de dezenas de nomes de protagonistas, que torna a leitura desta apologia um penoso exercício na corda bamba.

Mesmo assim são abordados: 1.º – os mecanismos da preparação de um golpe de mão internacional contra uma ditadura; 2.º – a ignorância extrema dos meios financiadores destes aventureiros, que se fiam nos preconceitos racistas das suas castas (public schools, serviços secretos, petrolíferas, etc.); 3.º – as operações contra o Soyo em 1993 (umas trinta páginas) e a aquisição de armamento soviético entre os escombros do império russo; 4.º – as relações com a ou as flec de Cabinda, que lograram obter 600 mil dólares de Simon Mann em troca da libertação dos reféns capturados durante uma tentativa de extração mineira no enclave (1997); 5.º – os confortos da prisão de Black Beach, bem menos sórdida do que a frequentada durante quase quatro anos no Zimbabué. Mann ficará entre os esbirros do Presidente O biang de fevereiro de 2008 até ao fim de 2009, sendo finalmente perdoado e libertado pelo «tirano» que pretendia derrubar. Talvez este general seja também ele um «visionário», como o tio que mandou fuzilar em 1979. Se Simon Mann não ficou mais ajuizado com a idade e a velhice, podemos indicar-lhe outros dois ou três nomes de tiranos africanos. Alguns têm mesmo petróleo, ou esperam tê-lo em breve.

Um autor com uma visão global do que deveria ser uma grande bibliografia africana é o incontornável Max Liniger-Goumaz3. Já vai no décimo sexto volume de referências, recolhidas um pouco por todo o lado na maioria das línguas europeias. A este ritmo, em breve atingirá 80 mil entradas; não é uma ideia fixa, tornou-se uma missão obsessiva. Mas quem se aproveitará disso na Guiné Equatorial, onde a maioria dos livros do geógrafo suíço estão no índex dos livros proibidos? Porque é que escreve o adjetivo à portuguesa? Mais um golpe de força da cplp (Comunidade de Países de Língua Portuguesa) junto das tipografias de Genebra?

Já que estamos nas margens do lago Léman, continuemos com um livro de título cativante: La Suisse coloniale4. O seu autor dispendeu uma energia notável a provar que os compatriotas eram tão racistas em relação aos africanos quanto os contemporâneos dotados de territórios ultramarinos. Paradoxalmente não existiam praticamente negros na Suíça e o número de nacionais da Confederação em África (sobretudo no Congo depois belga e na África Austral, com alguns punhados de empregados ou de missionários noutros sítios) era insuficiente para orientar num sentido negativo a opinião nacional, no regresso. O paradoxo é apenas aparente, pois não é necessário ter contactos com este ou aquele membro da espécie humana para o desprezar: basta respirar o ar dos tempos, e as montanhas suíças nunca o impediram de se propagar. Ou seja, sem colónias podemos tornar-nos, apesar de tudo, num colonizador inocente e satisfeito com a sua superioridade.

Patrick Minder dá-nos, assim, uma tese que derruba portas abertas, mas fá-lo com método e encarniçamento. Após explicar quais são os agentes que transmitem na Suíça as imagens do africano, ataca a sua representação enviesada (por exemplo: os zoos humanos) e sobretudo a difusão do discurso colonial (os média, a publicidade, os postais, as histórias engraçadas, o desenho humorístico, etc.). De uma forma sistemática analisa detalhadamente o conteúdo da mensagem (a paisagem africana, a vida dos indígenas, a sua «inferioridade», a sua «bestialidade», a sua «animalidade», a sua «estupidez», etc.).

Notamos que a iconografia utilizada (e provavelmente a mais representativa) é maioritariamente alemânica, e romanda em segundo lugar. Pouco existe do lado dos italianófonos. Definitivamente, a impressão com que se fica é que o suíço vulgar da época se sentia confortado na sua superioridade do homem branco, sem nunca ter sequer visto na vida uns vinte negros. A imigração africana (sobretudo para a zona francófona) terá modificado em profundidade esta visão? Curiosamente, o autor não atribuiu grande importância aos livros dos «exploradores» ou simples viajantes suíços na formação dos estereótipos que denuncia. É provável que o seu papel não fosse tão decisivo quanto o da imprensa local, mas mesmo sem colónias os suíços ocuparam um lugar notável na «descoberta» da África pelos europeus, se os compararmos com outras nacionalidades autocentradas, que posteriormente brandem o estandarte meio desfiado da amizade entre os povos.

Quem melhor do que uma jornalista-vedeta da televisão, não africanista profissional, para influenciar a visão que os alemães têm de África? Não haverá muita gente, de tal maneira o audiovisual invadiu a nossa perceção do Outro. Marietta Slomka efetuou uma reportagem em 2010 e sobre os cinco países visitados contentar-nos-emos em relatar o que diz de Angola (pp. 141-184) e de Moçambique (pp. 185-235). Não conhecemos aquilo que mostrou aos telespectadores, mas o que escreveu em livro5 é muito pessimista sobre a sociedade luandense. Contrasta a pobreza dos camponeses deslocados com a ostentação dos novos ricos, na cidade «mais cara do mundo». Aconselhamos os responsáveis do turismo e da propaganda angolana a ler o livro, a fim de saberem o que não se deve fazer se pretendemos passar uma imagem positiva. Visita o musseque de Samba, mas a polícia política proíbe-a de filmar. Nenhum (?) jornalista local deseja comunicar com a sua equipa! Que faz ela? Encontra-se com representantes de organizações não governamentais e de opositores políticos. Daqui resulta uma crítica virulenta ao Presidente e aos que o rodeiam (pp. 150-152), apoiados por homens de negócios e governos estrangeiros visto que asseguram a estabilidade dos investimentos. Não é ela que se vai acantonar na bolha dos expatriados, surdos e cegos enquanto estão no país. Não corre riscos, está de passagem. Por isso utiliza todas as armas ao seu alcance, como boa moralizadora chocada. Três polícias exigem-lhe dois mil dólares por deitar beatas para o chão de um parque de estacionamento. O intérprete português negoceia e em meia hora obtém uma redução para 60 euros, em dinheiro e sem recibo. Slomka, falsa ingénua, aproveita para se espantar que um Estado petrolífero tão rico não possa pagar decentemente aos seus funcionários, e vê-se assim constrangida a fechar os olhos à «pequena» corrupção, pois a grande está no poder. Num país como a Alemanha, que se esforça por viver na retidão, o efeito desta viagem ao próprio coração da sua antítese não pode ser senão devastador para Angola.

Slomka é menos – um pouco menos – ácida em relação a Moçambique, onde se sacrifica ao turismo e mesmo à ecologia, mas não é indiferente à pobreza que a rodeia. Não gosta demasiado de Maputo, que dilapidou o seu património urbano, e parte, não sem arremessar uma última flecha aos corrompidos do aeroporto que extorquem os estrangeiros. Os dois grandes palop não têm uma boa imagem junto da jornalista e, depois, junto de alguns milhões de espectadores. Que podem fazer os álbuns fotográficos financiados pelas autoridades para inverter esta imagem? Mudar de máscaras, de diplomatas ou de fotógrafos? De mentalidade e de comportamento, claro está. Mas será isto suficiente quando não temos a certeza que os substitutos serão virtuosos, uma vez ao comando? Há com que desiludir os leitores de La Suisse coloniale.

Sem querer absolver ninguém, é necessário trazer aqui alguns elementos históricos que não são desculpas mas explicações. A colonização fundou-se, em quase todo o lado, sobre a exploração do colonizado, fosse uma colonização europeia ou uma colonização africana (casos da Etiópia e da Libéria nos seus períodos expansionistas, e a devastação do tráfico negreiro em proveito de estados pré-coloniais ou de bandos de muçulmanos perseguidores de animistas). Como a espanhola, a colonização portuguesa na África Negra foi feita, além disso, por estados pobres e durante muito tempo os seus vetores foram europeus em busca de fortuna em países insalubres e não preparados para os acolher. Era necessário usar a astúcia, tirar partido dos indígenas e violar uma legislação inoperante, para se sobreviver. As duas administrações coloniais ibéricas fecharam mais ou menos os olhos às fraquezas morais dos funcionários e dos simples civis, pelo menos até que os escândalos não se tornassem ingeríveis. Podemos citar numerosas queixas oriundas de observadores estrangeiros ou locais. Os serviços das alfândegas, das administrações internas, do exército, das finanças, etc., estavam mais ou menos gangrenados pela corrupção. Mesmo no fim dos períodos salazarista e franquista subsistia localmente uma cultura da corrupção, pequena ou grande, tacitamente aceite ou molemente combatida.

Perpetuou-se então a ideia de que aquele que detém o poder – mesmo minúsculo – deve obter dele alguns benefícios. A maior parte dos colonos portugueses partiram entre 1974 e 1976, e os espanhóis bem antes, mas os maus hábitos encrustraram-se na psicologia dos sucessores instantâneos (os pequenos funcionários negro-africanos ou mestiços). Os movimentos ou partidos emancipadores, inicialmente «virtuosos» quando estavam no exílio ou combatiam clandestinamente o colonialismo, chegados ao poder, confrontados com uma desorganização das estruturas portuguesas e com uma profunda queda da vida económica, nunca mantiveram por muito tempo – exceto em Moçambique; Cabo Verde é um caso à parte – as suas intenções moralizadoras, socialistas e igualitárias, que faziam pasmar os conselheiros e dadores de fundos no tempo das utopias marxistas e estudantis.

Vários fatores erodiram progressivamente as vontades dos melhores: 1.º – o peso e os constrangimentos do tribalismo e a «desconfiança» em relação aos ex-assimilados e mestiços; 2.º – a necessidade de recompensar os apparatchicks, as suas famílias alargadas e os seus «compadres» com a oferta de cargos nos raros setores onde se podia ainda receber um salário, ainda que curto: as hierarquias da administração e das empresas nacionalizadas, senão moribundas; 3.º – a impossibilidade de remunerar bem os agentes da função pública ou paraestatal, exigindo deles, em troca, a probidade mais perfeita; 4.º – o desencadear da guerra civil em Angola e em Moçambique, que destruiu as infraestruturas coloniais – não eram negligenciáveis – e, pior que tudo, esmagou milhões de habitantes rurais numa loucura destrutiva infinitamente mais assassina do que a guerra colonial (1961-1974/1975). Esta lista de fatores negativos não está encerrada. É mesmo muito simplista, e não justifica de forma alguma o desencadear da hidra corruptora numa sociedade a duas velocidades, pelo menos tão inigualitária como no passado. O quarto fator permite, todavia, deitar uma vista de olhos sobre alguns trabalhos que não se dirigem aos telespectadores, mas a audiências mais exigentes.

A politóloga Maria Cristina Ercolessi é muito clara na análise6 das causas do que qualifica, para Angola, de «profundo desequilíbrio social e défice de democracia persistente». Em cinco capítulos muito ricos, resume bem e de uma maneira frontal, sem perífrases, o essencial do colonialismo português em Angola e, mais desenvolvido, a luta anticolonial, a guerra civil e internacional, a economia política após a morte de Savimbi, a liberalização dos constrangimentos marxistas, o reforço do mpla, a crise humanitária e social, a reconstrução e o desenvolvimento, o nascimento de um capitalismo descontrolado e explorador e, em definitivo, a irresponsabilidade da nomenklatura em Luanda, que abandonou os camponeses pelas aparências estatísticas de um crescimento provisório alicerçado no petróleo e nos diamantes. Ercolessi não se deixa enganar pelos discursos anticorrupção e, mesmo que admita um certo esforço de recuperação após trinta e seis anos de ruínas e de incoerências egoístas, o espetáculo que este país – chamado emergente – oferece não a satisfaz. As oposições políticas, nota, são impotentes para contrariar a máquina do mpla que comprou quase todas as «cabeças pensantes». Resta ver qual o peso do Exército assim que a questão da sucessão do Presidente se colocar a sério. Manter-se no poder mais de trinta e dois anos num país como Angola demonstra, pelo menos, uma habilidade fora de comum. Controla solidamente a caixa, o que lhe permite neutralizar quase todos os rivais mais ameaçadores. Mais do que «Esfinge», pensamos que lhe devíamos chamar «O Maquiavel Supremo» da África Centro-Austral. Não nos espantaríamos se, dentro de dez anos, os historiadores futuros reconhecessem nele uma figura mais importante do que o Dr. Agostinho Neto. Escrevê-lo não é um sacrilégio.

L’Angola indipendente tem poucas páginas mas apresenta uma bibliografia completamente espantosa num país como a Itália, onde as bibliotecas africanistas não são reputadas pela riqueza em obras estrangeiras sobre Angola. Temos mesmo as nossas dúvidas sobre a possibilidade de encontrar na cidade de Nápoles a totalidade das entradas numeradas nesta síntese. O livro é, pois, um bom resumo do que é necessário conhecer sobre uma potência regional que ainda não atingiu o máximo do potencial, mas que saiu do sarcófago dogmático, ou pelo menos da morgue, senão do hospital. Portanto, coragem.

Também é necessária coragem quando se é provavelmente originário da África Ocidental, francófono e talvez muçulmano, quando se trabalha em França e se decide, à distância de menos de trinta anos, consagrar uma tese de doutoramento à guerra civil angolana de 1991 a 20027, ou seja, a uma atualidade ainda morna. Será a atração do exotismo ou existirão laços entre o candidato a doutorado e Angola? Não sabemos, mas esta distância com o objeto permite-lhe escapar ao sectarismo étnico ou político, que é uma das fraquezas da maior parte dos livros publicados por africanos, especialmente lusófonos, quando defendem ou massacram determinado aspeto do país de onde são oriundos. Nada disso com Amadou Koné. O credo do autor é uma espécie de neutralidade moralizadora, por vezes com algumas apreciações pouco amenas das atividades do mpla e da unita durante o período considerado. Este último apresenta um inconveniente: não é possível entrar nos segredos dos arquivos, evidentemente inabordáveis por enquanto. O essencial da documentação utilizada por Koné provém da onu e sobre tudo da imprensa internacional, tanto a informativa como a académica. Também existem poucas ou nenhumas entrevistas a personalidades marcantes. A comunicação social angolana pró-governamental está praticamente ausente, e o mesmo se passa com a da unita. Este partido, com representações na Europa, nomeadamente em Portugal, em França e na Alemanha, que publicavam comunicados, é visto através do prisma dos analistas mais ou menos engagés num campo ou noutro. O autor fez um esforço por consultar duas centenas de obras e de artigos, mas se tivesse na mão a nossa bibliografia internacional crítica (René Pélissier, Angola-Guinées-Mozambique-Sahara-Timor, etc. Orgeval: Éditions Pélissier, 2006), veria a utilidade em ler uma outra centena de obras poliglotas recentes que faltam nos seus ficheiros. Enão nos referimos aqui a artigos ou informações que não dizem respeito ao período escolhido.

Por outro lado, perguntamo-nos se alguém – um lusófono de nascimento – terá lido atentamente, ou seja, de caneta na mão, o texto antes de ser impresso. Por exemplo, as entradas citadas em notas (há 1332) não foram todas inseridas na bibliografia, e nem todos os mapas aparecem na página indicada (cf. o de Cabinda). Estamos longe das exigências requeridas outrora aos candidatos a um doutoramento de Estado (cf. os três volumes atrás citados de Jean-Marc Delaunay) em História. Não sabemos, de resto, se este livro releva da ciência política ou da erudição histórica pura e dura.

Feitas estas salvaguardas, para um debutante em angolanismo universitário Koné realizou um trabalho meritório, em que soube misturar o diplomático, o político e o militar, e seguir uma progressão estritamente cronológica. É o primeiro autor a introduzir ordem nesta sucessão de confrontos trágicos que Angola atravessou durante a terceira – ou quarta – guerra que – fora de Luanda, dos outros portos e do Sudo-este – a pôs de joelhos. Sem se entregar a um deboche de sensacionalismo jornalístico (cf. a secura factual com a qual assinala a morte de Savimbi), oferece então o esqueleto acontecimental indispensável a quem quiser desenvolver os fatores socioeconómicos que as pessoas que na atualidade detêm o poder deveriam levar em conta. Saber se realmente o desejam releva de um vasto debate de onde a polémica não pode estar ausente. Passemos então a outro tema igualmente militar.

A literatura memorial publicada pelos antigos combatentes de todos os países acaba por irritar pela abundância e, muitas vezes, pelo triunfalismo. É suportável e explicável quando se refere a conflitos que puseram em jogo a existência política de todo um país, ou a vida de vários milhões dos seus habitantes. Neste sentido compreendemos e aceitamos as vagas de impressos que as I e II Guerras Mundiais suscitaram junto dos seus beligerantes. Deveremos ser igualmente indulgentes em relação ao que é a exaltação editorial das proezas – fala-se menos dos fracassos – no terreno de unidades de profissionais ou de voluntários como os mercenários, os paraquedistas, os marines, ou os comandos, que se erigiram em élites da violência? Cada um escolherá, mas o historiador e o bibliógrafo alimentam sempre a esperança de encontrar nas suas páginas dados que serão sempre escondidos pelos arquivos oficiais.

Pathfinder Company8 é uma recolha de memórias de uma unidade de paraquedistas sul-africanos criada em abril de 1980 pelo coronel Jan Breytenbach, a um passo de se tornar no Mouzinho de Albuquerque de uma geração de afrikaners que combateram em Angola de 1975 a 1988: o ícone do seu ultranacionalismo e das suas competências militares. Na verdade, é no rescaldo da vitória em Cassinga, em 1978, que o coronel mais condecorado – e com o maior atrevimento do Exército sul-africano – se torna num oficial «visionário», ao dar-se conta de alguns dos defeitos desta operação aerotransportada contra o exército dos nacionalistas namibianos (a swapo), escondido em Angola. Foi encarregado da criação de uma brigada de paraquedistas e precisava por isso de uma companhia especializada na seleção de lugares de largada e de evacuação. Para fazê-lo, recrutaria, com contrato, profissionais saídos de guerras anteriores (especialmente na Rodésia).

Por razões diferentes, esta grande operação aerotransportada contra concentrações inimigas não se repetiu em Angola e os Pathfinders, durante a breve existência, tiveram sobretudo atividades puramente terrestres. Em 1980 atacaram o campo da swapo e das fapla em Cuamato. Minaram a estrada para o Cunene. Participaram igualmente na Operação Protea (agosto de 1981) contra as tropas angolanas em Xangongo (ex-Roçadas) e em N’Giva, de gloriosa memória entre os militares portugueses. Em janeiro de 1982 a unidade é dissolvida e incorporada no Batalhão 32 (formada por mercenários angolanos), que se tornará a ponta de lança de quase todas as batalhas combatidas pelos sul-africanos em Angola durante ainda seis anos. Negras, as perdas destes estrangeiros permitiam evitar as de brancos. Não se era racista no exército de Pretória.

Ocioe/ctoe pode ser considerado, certamente não como o modelo dos sul-africanos, mas como a resposta dos portugueses à necessidade de unidades formadas para a guerra ultramarina não convencional. Criado em 1960, o Centro de Instrução de Operações Especiais, em Lamego, foi a matriz das tropas de choque do exército terrestre durante a guerra colonial. Hélder da Silva Serrão9 faz o seu histórico ao longo de meio século, até às missões externas confiadas ao Portugal pós-revolucionário. A utilidade do livro deste alferes pode dividir-se em três vertentes. Serve, para começar, para conhecer as modalidades de recrutamento, de formação e de utilização destes soldados que iam na vanguarda do exército terrestre. O exército convencional era mais estático que operacional para a maioria dos recrutas, que se submetiam a 24, 26 ou 28 meses de serviço ultramarino em condições materiais e psicológicas muito duras. O livro contém igualmente – e será talvez aí que começará a interessar ao historiador – uma descrição da penetração no coração duro do aparelho militar das «novas ideias» que conduziriam ao 25 de abril de 1974. Não dispomos de elementos que permitam matizar o que é afirmado pelo autor e pelos atores. Em terceiro lugar, o livro contém várias dezenas de testemunhos de antigos operacionais do Centro, onde encontramos por vezes relatórios ou relatos de operações ultramarinas (por exemplo: 1.º – um reconhecimento na região da Pedra Verde, em julho de 1961, nos Dembos; 2.º – os caçadores especiais na Baixa do Cassange em fevereiro de 1961, etc.).

É evidente que num livro quase oficial não se deve procurar o que denigra a imagem dos antigos combatentes. E como todos, ou quase, se consideram superiores aos vulgares soldados de infantaria que não frequentaram o cioe, os maus espíritos gostariam de saber como é que com tais élites a guerra não foi vencida mais rapidamente. Seria necessário ser-se adepto da geopolítica para lhes responder. Contentar-nos-emos, portanto, em ler um sul-africano que admirava os soldados portugueses na Guiné.

Al J. Venter10 é um desses jornalistas anglófonos que cobriram um número importante de conflitos africanos desde 1960. No último dos seus já cerca de vinte volumes, coligiu memórias pessoais e de outros fornecidas por vários dos seus confrades. Uma espécie de livro de homenagem, de certa maneira. É dos raros profissionais que viajou intensivamente nos três palop na época colonial. Vamos cingir-nos, para a Guiné, a citar o que já publicara nos Estados Unidos no seu Report on Portugal’s War in Guiné-Bissau [Pasadena (ca): Munger Africana Library, Caltech], e que retoma aqui, mais ou menos revisto. Exalta os feitos de João Bacar Jalo, capitão fula dos comandos africanos, morto pela própria granada em abril de 1971. Venter não julgou necessário explicar aos leitores que a lealdade inegável aos portugueses deste oficial se apoiava na luta política de um muçulmano contra os cabo-verdianos e os animistas ou cristãos locais do paigc. Este é o mais interessante dos três capítulos (pp. 258-311) que consagra à Guiné, onde o encontramos com o relato da patrulha que efetuava na selva com Bacar Jalo antes da sua morte, a leste de Tite (no Sudeste do país).

As pessoas do cioe rangeriam os dentes se lessem o que Ron Reid-Daly, o primeiro oficial rodesiano destacado para junto das tropas portuguesas, pensava das suas atividades em campanha em Moçambique. O criador dos célebres Selous Scouts rodesianos faz apenas apreciações ultranegativas aos seus métodos de luta contra a guerrilha da frelimo. Destaca o desjeito operacional das unidades, o massacre do gado, a destruição das aldeias, a brutalidade excessiva contra os camponeses abatidos à mínima tentativa de fuga, para não integrar os famosos aldeamentos estratégicos, que julga fundados em conceções «clumsy and inept» (p. 203). É aqui que medimos a distância entre o que nos dizem os especialistas estrangeiros para nos lisonjear e o que realmente pensam das nossas hipóteses de vitória na guerra.

Notemos que, por mais brilhantes que pretendessem ser no mato, os Selous Scouts também não conseguiram deter a catástrofe inevitável na Rodésia.

No fim de contas, «visionários» criativos ou rotineiros sem «visões», tanto uns como outros estavam no mesmo barco. Este livro estabelece um balanço nostálgico e pessimista para o futuro da África. Despeito, cansaço ou lucidez?

Tradução: Marta Amaral

 

NOTAS

1Delaunay, Jean-Marc – Méfiance cordiale. Les relations franco-espagnoles, de la fin du xixe siècle à la Première Guerre mondiale. Volume 2. Les Relations coloniales. Paris: L’Harmattan, 2010.         [ Links ]

2Mann, Simon – Cry Havoc. «When I Set Out to Overthrow an African Tyrant, I Knew I Would Either Make Billions or End Up Getting Shot…». Londres: John Blake Publishing Limited, 2011 (inclui fotografias a preto e branco e a cores).         [ Links ]

3Liniger-Goumaz, Max – Guinea Equatorial. Bibliografia General. XVI. Referencias 59693-76704. Genebra: Les Éditions du Temps, 2011.         [ Links ]

4Minder, Patrick – La Suisse coloniale. Les représentations de l’Afrique et des Africains en Suisse au temps des colonies (1880-1939). Berna: Peter Lang, 2011 (inclui centenas de ilustrações a preto e branco).         [ Links ]

5Slomka, Marietta – Mein afrikanisches Tagebuch. Reise durch einen Kontinent im Aufbruch. Munique: C. Bertelsmann Verlag, 2011 (inclui fotos a cores).         [ Links ]

6Ercolessi, Maria Cristina – L’Angola indipendente. Roma: Carocci Editore, 2011.         [ Links ]

7Koné, Amadou – La Guerre civile angolaise de 1991 à 2002. Saint-Denis: Editions Edilivre Aparis, 2011.         [ Links ]

8Gillmore, Graham – Pathfinder Company. 44 Parachute Brigade. The Philistines. Joanesburgo: 30º South Publishers, 2010 (inclui numerosas fotos a preto e branco e a cores).         [ Links ]

9Serrão, Hélder da Silva – CIOE/CTOE. Operações Especiais. 50 Anos. Viseu: Edições Esgotadas, 2011 (inclui fotos a preto e branco e a cores).         [ Links ]

10Venter, Al J., and friends – War Stories. Up Close and Personal in Third World Conflicts. Pretória: Protea Book House, 2011 (inclui 16 páginas de fotografias a cores, e inúmeras fotos a preto e branco).         [ Links ]