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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.33 Lisboa mar. 2012

 

Israel: entre o judaísmo ultraortodoxo e o sionismo liberal

 

Ana Santos Pinto

Investigadora do ipri – unl, desde 2004, e assistente convidada no Departamento de Estudos Políticos da fcsh – unl, onde é doutoranda em Relações Internacionais. Tem como principais áreas de investigação académica os estudos europeus, geopolítica do Médio Oriente e questões de segurança e defesa internacional.

 

É sexta-feira. Os ponteiros do relógio marcam 16h30. Falta pouco para o início do Shabbat1, a celebração semanal judaica dedicada ao descanso e à oração. Passear, por esta hora, pelas ruas de Jerusalém é quase como andar numa cidade deserta. O tempo não ajuda, é certo. Numa terra onde a água é um dos bens mais escassos, e por isso uma questão central nos conflitos na região, chove como há muito não se via. Regresso de Telavive, onde a agitação permanecia praticamente indiferente ao aproximar do dia de descanso. Mas em Jerusalém é diferente. Muito diferente.

Cruzo-me nas ruas com inúmeras famílias de judeus ultraortodoxos, os haredim, facilmente identificáveis pelos trajes que usam. Homens de fato escuro e chapéu de aba larga, com mechas laterais de cabelo encaracolado sobre os ombros, são uma imagem constante na Cidade Santa. Com eles, a presença de um debate que divide a sociedade israelita: Qual o papel que os setores mais religiosos deverão ter na sociedade? A que direitos e deveres devem estar sujeitos?

Sendo o grupo social com maior crescimento demográfico (em 1948 constituíam 1,5 por cento da população, hoje contabilizam dez por cento e prevê-se que em 2050 ultrapassem os 30 por cento), a sua crescente afirmação interna coloca importantes desafios à comunidade política em Israel.

A questão ocupou lugar central nos média israelitas no final de 2011. Em dezembro começaram a surgir notícias sobre conflitos de género nos transportes públicos, já que os ultraortodoxos consideram que as mulheres devem ocupar os lugares traseiros nos autocarros, reservando a parte dianteira aos homens. A tradição haredi determina, ainda, a separação de género nas escolas e em locais públicos, bem como o condicionamento da participação feminina na esfera pública.

A poucos dias do final de 2011 foi relatado um episódio na cidade de Beit Shemesh, nos arredores de Jerusalém, em que uma menina de oito anos foi insultada, no caminho da escola, por um grupo de judeus ultraortodoxos, por considerarem que ela – também oriunda de uma família religiosa – não estava vestida de acordo com os princípios da modéstia aplicáveis. A criança foi entrevistada por um canal de televisão o que rapidamente gerou uma onda de contesta ção generalizada. Em consequência foi organizada uma manifestação de apoio pelos setores moderados da sociedade, que contou com o apelo à participação do Presidente Shimon Peres. Em defesa dos princípios da liberdade e da igualdade, foram afirmados slogans como «Libertem Israel da coação religiosa» ou «Não deixem Israel tornar-se um Irão».

Em resposta, uma minoria ultraortodoxa organizou uma manifestação, em Jerusalém, vestindo crianças como vítimas do Holocausto, como forma de protesto contra o que consideravam ser uma perseguição aos judeus mais devotos. Slogans como «Estamos a sentir um Holocausto espiritual» ou «Sionistas não são judeus são racistas» provocaram uma revolta nacional, expressa ao mais alto nível político. Os líderes religiosos desta comunidade argumentaram que a utilização de símbolos do Holocausto foi intencional e visava chamar a atenção para a campanha que os média «seculares» estavam a desenvolver contra a comunidade haredi. Apesar do tom mediático ter diminuído de intensidade, a verdade é que a tensão permanece, sendo visível nos transportes e locais públicos, bem como nos debates universitários, onde o tema é alvo de intensa discussão.

Apesar desta franja mais radical constituir, apenas, uma pequena minoria dentro da minoria haredi, não é possível ignorar aquele que é um problema estrutural na sociedade em Israel: a tensão entre a tradição e a modernidade, entre a prática ortodoxa do judaísmo e os princípios liberais de um Estado sionista democrático.

Esta não é, naturalmente, uma questão recente, e remete ao momento da construção do Estado de Israel, no final da década de 1940.

Perante a iminência do fim do mandato britânico e a necessidade de declaração de independência do Estado de Israel, David Ben-Gurion, o líder da comunidade política à data, necessitava do apoio da comunidade ultraortodoxa para sustentar o seu projeto político. Como tal, e em resultado de uma negociação alargada, definiu, entre outros privilégios, que os ultraortodoxos que quisessem prosseguir os estudos ficariam isentos do serviço militar e que o Estado atribuiria uma subvenção àqueles que se dedicassem ao estudo da Torah2. Às exceções atribuídas, que se mantêm – embora gradualmente reduzidas ao longo dos anos –, acresce a atribuição de subsídios de apoio à maternidade (de acordo com o número de filhos por casal, que pode ultrapassar a dezena3) e a redução ou isenção no pagamento de impostos, em parte resultado dos baixos rendimentos auferidos pela maioria das famílias haredim. Como consequência, os municípios onde reside a comunidade haredi também dispõem de menores recursos, pelo que são maiores as carências de infraestruturas e serviços de apoio.

Neste contexto, a componente demográfica é, uma vez mais, fundamental. A comunidade haredi foi uma das mais massacradas durante o Holocausto, ficando dramaticamente reduzida face aos membros de que dispunha no início do século xx. O crescimento que hoje se verifica tem como objetivo, por um lado, repor a dimensão que a comunidade haredi tinha antes da II Guerra Mundial e, por outro, sustentar o crescimento demográfico dos judeus em Israel, tendo em conta que o número de filhos por casal dos designados «seculares» é inferior ao das famílias árabes a viver no país. Porém, esta evolução poderá determinar alterações importantes na sociedade israelita, a manterem-se os atuais privilégios, desde logo porque será reduzido o número de cidadãos disponíveis para prestar serviço nas Forças Armadas, bem como o número de trabalhadores qualificados para sustentar uma economia competitiva e garantir o pagamento de impostos necessário à sustentabilidade do Estado.

No que diz respeito ao serviço militar, os líderes religiosos da comunidade haredi consideram que o papel que desempenham no conhecimento dos textos bíblicos é fundamental para a afirmação de Israel enquanto Estado judeu. Como resposta às críticas dirigidas pela não prestação do serviço militar obrigatório, os rabinos argumentam que «estudar a Torah ajuda a proteger o povo judeu, tal como servir nas Forças Armadas de Israel».

Já no que diz respeito à qualificação, é importante salientar a dimensão educativa. De acordo com estatísticas oficiais, 21 por cento da atual população do ensino básico em Israel pertence à comunidade haredi. Significa isto que seguem um currículo próprio, embora com conteúdos partilhados ao nível primário, mas gradualmente mais orientados para o ensino religioso. As ciências exatas, como a matemática ou a química, são secundarizadas, bem como a aprendizagem de novas tecnologias ou de uma língua estrangeira. Como resultado, verifica-se uma clara inadaptação ao mercado de trabalho, determinado pelas necessidades de uma economia desenvolvida e vocacionada para a investigação e desenvolvimento. Saliente-se que, de acordo com a tradição haredi, os homens devem dedicar-se, de preferência em exclusivo, ao estudo da Torah, cabendo às mulheres o desempenho de atividades profissionais, desde que não colidam com práticas religiosas ou necessidades familiares. Como resultado, o rendimento familiar e consequente pagamento de impostos são reduzidos e é necessário o recurso a apoio do Estado ou de instituições particulares.

Também ao nível do sistema político as consequências são importantes. Em primeiro lugar porque, pela natureza do sistema político israelita e consequente necessidade de formação de governos de coligação pluripartidários, os partidos que representam franjas eleitorais acabam por ser sobrevalorizados. É o que acontece no atual Governo de Israel, liderado por Benjamin Netanyahu, que conta com dois partidos de base eleitoral haredi, o Shas e o Yahadut Hatorah4. O primeiro obteve 8,49 por cento de votos e 11 membros do Parlamento (Knesset), num total de 120, participando no Governo com quatro ministros (Assuntos Internos, Habitação e Construção, Questões Religiosas e um sem pelouro atribuído), bem como um vice-ministro (Finanças). Já o Yahadut Hatorah, conquistou 4,39 por cento do total de votos, o que corresponde a cinco membros do Knesset, e participa no Governo com dois vice-ministros (Educação e Saúde). É de salientar que o atual governo de Israel é composto por 37 membros (30 dos quais ministros), de seis formações partidárias distintas.

A esta equação é, ainda, necessário acrescentar a desfragmentação da esquerda israelita – como demonstra o abandono de Ehud Barak, atual ministro da Defesa, do Partido Trabalhista – e a afirmação dos princípios liberais e de centro-direita através do partido Kadima, criado em 2005 por Ariel Sharon.

Ainda no que concerne à participação política, e para além de movimentos políticos próprios, os membros da comunidade haredi estão também representados nas formações partidárias de maior dimensão, como o Likud (partido em atual maioria no Governo), onde dispõem de capacidade de influência, seja na definição das estratégias políticas seja na escolha dos líderes.

Esta projeção política tem, naturalmente, consequências na prossecução das estratégias do Governo. Destaque-se, por exemplo, o facto de a tutela correspondente à manutenção e construção de colonatos estar sob a responsabilidade de um ministro do Shas (Habitação e Construção), bem como o facto de os membros da comunidade ultraortodoxa serem tradicionalmente mais conservadores em relação a compromissos relativos ao princípio da «terra por paz», aplicado nas negociações entre israelitas e palestinianos.

Estas mudanças sociais e políticas poderão ter também reflexos ao nível da política externa. Acrescente importância da comunidade ultraortodoxa poderá resultar num decréscimo de influência dos sionistas liberais, cuja elite tem garantido uma relação privilegiada com os Estados Unidos da América, principal aliado externo de Israel. Recorde-se que aquando da visita do vice-presidente americano Joe Biden a Jerusalém, em março de 2010, foram dois ministros do Shas, do Interior e Habitação e Construção, que anunciaram a construção de 1600 novas habitações nos colonatos em Jerusalém Oriental, contrariando os apelos da Administração americana e criando um importante momento de tensão entre os dois governos.

Neste contexto, é inegável assinalar que Israel está a viver uma mudança social profunda, que poderá alterar hábitos e dinâmicas sociais e políticas mantidas desde a construção do Estado. No essencial, porque a sociedade israelita assenta num evidente paradoxo: por um lado, é uma comunidade política democrática, moderna e avançada, sustentada em leis progressistas, com uma educação avançada, elevados padrões de consumo e desenvolvimento tecnológico; por outro, uma parte cada vez mais relevante desta mesma comunidade, que se dedica no essencial ao estudo da Torah, mantém-se renitente à modernidade e tenta aplicar um conjunto de normas sociais, assentes numa interpretação restrita dos textos bíblicos, à maioria da população.

À semelhança da enorme diversidade que caracteriza a sociedade israelita, é naturalmente enganador tomar a comunidade haredi como um corpo homogéneo. Se de uma forma geral podemos assumir que está dividida em duas grandes correntes, os hasidim e os mitnagdim, também estes se subdividem em inúmeros grupos e seitas, na maioria organizados em torno de um rabino e com designações de acordo com a cidade de origem (a maioria da Europa de Leste). São, por isso, detetáveis vários pormenores distintivos na roupa, preceitos e hábitos religiosos. Porém, no essencial, os haredim são adversos à modernidade – por considerarem que coloca em causa os princípios tradicionais do judaísmo – e mantêm as mesmas indumentárias e práticas definidas nos séculos xviii e xix. Mas numa sociedade globalizada, manter a fidelidade às tradições é um constante desafio. É, por isso, normal ver membros da comunidade haredi a conduzir ou a falar ao telemóvel, estando contudo o acesso à internet, por exemplo, bastante condicionado.

Mas tão ou mais paradoxal do que esta tensão entre a tradição e a modernidade, é a convivência entre os princípios ultraortodoxos judeus e o sionismo. Desde logo porque o sionismo, entendido enquanto movimento político que defende a autodeterminação do povo judeu e o seu direito a ter um Estado independente, não constitui, para muitos, um elemento central da ortodoxia judaica. Mais do que isso, no limite, o sionismo político é contrariado pelos ultraortodoxos mais radicais, por considerarem que não respeita a vontade de Deus. Isto porque de acordo com os textos religiosos o povo judeu só deve voltar à Terra Santa após o regresso do Messias e, não se tendo tal concretizado, este regresso pode ser entendido como um desrespeito à vontade de Deus. É por isso que foi possível assistir à presença de representantes de judeus ultraortodoxos, do Movimento Neturei Karta (um movimento internacional de judeus ultraortodoxos antissionistas) na Conferência sobre o Holocauto organizada pelo regime iraniano, em dezembro de 2006. Uma vez mais, trata-se de uma pequena minoria dentro da minoria, mas utilizam os palcos mediáticos para afirmação dos seus objetivos políticos.

Porém, será um erro considerar que estas tensões apenas vivem no palco mediático. Tradição e modernidade, o antigo e o contemporâneo, o religioso e o secular vão convivendo lado a lado em Israel, em particular em Jerusalém. A cidade sagrada para as três religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo – é, sem dúvida, uma cidade de tensões e contrastes.

O melhor exemplo é o bairro de Mamilla, recém-construído às portas da Cidade Velha. No século xix era um bairro comercial dividido entre judeus e árabes, hoje é uma zona de luxo, com habitações modernas avaliadas em centenas de milhares de euros e um centro comercial onde é possível encontrar as principais marcas de vestuários e joias ocidentais. No fim da rua, a Porta de Jaffa, a Cidade Velha e a modéstia ditada pelos princípios religiosos.

No que concerne ao Shabbat, vão vencendo os princípios religiosos. Nem os imperativos comerciais e o potencial turístico dos cafés gourmet da Cidade Santa se sobrepõem às regras do descanso e da oração.

É sexta-feira. Os ponteiros do relógio marcam 16h30. Falta pouco para o início do Shabbat. As lojas fecham, os turistas regressam aos hotéis. A cidade descansa. Shabbat Shalom.

17 de fevereiro de 2012

 

NOTAS

1O Shabbat inicia-se ao pôr do Sol de sexta-feira e termina ao pôr do Sol de sábado, pelo que os horários são ajustados semanalmente.

2Designação atribuída aos Cinco Livros de Moisés, que constituem os textos centrais do judaísmo.

3Atualmente a comunidade haredi apresenta uma média de 6,7 filhos por família, três vezes superior à média nacional.

4Resultado das eleições legislativas realizadas em fevereiro de 2009, na sequência da demissão do então primeiro-ministro Ehud Olmert.