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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.33 Lisboa mar. 2012

 

A revolução do Solidariedade e o fim da União Soviética

 

Jan Skórzyński

Graduado pelo Instituto de História da Universidade de Varsóvia. Entre 2000 e 2006 foi vice-editor do jornal Rzeczpospolita. Defendeu a dissertação de doutoramento «O Caminho das Autoridades e do Solidariedade para os Acordos da Mesa-Redonda: A Génese da Transformação Política na Polónia, 1985-1989» no Instituto de Estudos Políticos da Academia Polaca de Ciências. É o autor de vários livros sobre a história recente da Polónia, incluindo Cronologia do Solidariedade 1980-1989, Compromisso e Revolução: Poder Político e Oposição 1985-1989, e Revolução da Mesa-Redonda. Publicou recentemente uma biografia de Lech Walesa. Atualmente, é editor-chefe do jornal Liberdade e Solidariedade: Estudos sobre a História da Oposição ao Comunismo e a Ditadura.

 

RESUMO

A democratização da Polónia comunista começou com o aparecimento do Solidariedade em 1980. A década seguinte testemunhou uma luta pacífica do Solidariedade pelo direito de representação. O desejo de Gorbachev para pôr fim à Guerra Fria foi crucial, mas a sua atitude para com os países da Europa de Leste definia-se pela não ingerência. Um dos fatores decisivos foi a política de «autolimitação» do Solidariedade. O objetivo não era derrubar o sistema mas liberalizá-lo. O modelo polaco de democratização gradual serve como modelo para outros países no Bloco Soviético.

Palavras-chave: Polónia, urss, Movimento Solidariedade, Guerra Fria

 

The Solidarity Revolution and the crisis of Soviet system

ABSTRACT

The movement for democracy in communist Poland became widespread with the appearance of Solidarity in 1980. The next decade in Poland witnessed Solidarity’s peaceful fight for the right to representation. The Mikhail Gorbachev‘s will to end the Cold War was crucial, but his attitude to Eastern European countries can be described as the non-interference rule. One of the decisive factors was the “self-limiting” policy of the Solidarity. The aim was not to overthrow the system, but to liberalize it. The Polish model of a gradual evolutionary democratization serves as a model for other countries in the Soviet Bloc.

Keywords: Poland, ussr, Solidarity Movement, Cold War

 

«O Comunismo encaixa na Polónia como uma sela encaixa numa vaca», disse uma vez José Estaline. Esta opinião do ditador do Kremlin foi muitas vezes confirmada pelos polacos – em 1956, 1968, 1970 e 1976 – em protestos contra o regime totalitário imposto pelo Exército Vermelho. O movimento pela democracia generalizou-se com o aparecimento do Solidariedade em 1980, que era muito mais do que um sindicato: representava a sociedade civil. Em dezembro de 1981, o general Jaruzelski tentou restabelecer a ordem comunista. No entanto, apenas alcançou uma parte do seu objetivo: o movimento de libertação foi proibido, mas sobreviveu. Na década seguinte, a Polónia testemunhou a luta pacífica do Solidariedade pelo direito à representação e, por outro lado, a defesa, pelas armas, dos comunistas do monopólio de poder.

Os dois lados opostos não tinham o mesmo peso, mas nenhum poderia alcançar uma vitória total. Neste contexto é importante referir que as autoridades não conseguiam lidar com uma crise económica estrutural. Assim, na segunda metade da década de 1980, o regime começou a considerar a possibilidade de chegar a um compromisso com a oposição.

O fator determinante para a mudança na política do regime comunista polaco foi a situação em Moscovo. Em 1985, Mikhail Gorbachev tornou-se o líder do Partido Comunista na União Soviética, mas, antes de tomar posse, Gorbachev não era conhecido como um reformador. Em 1984, Gorbachev desconfiava dos seus camaradas polacos, afirmando no Politburo: «devemos também verificar as verdadeiras intenções de Jaruzelski […] se de alguma forma ele não quer um sistema pluralista de governo na Polónia».1

Mas em abril de 1985, durante um encontro de líderes comunistas em Varsóvia,Gorbachev declarou que cada partido no poder era inteiramente responsável pelo que estava a acontecer nos seus próprios países, deixando claro que os partidos comunistas eram independentes. Foi um primeiro sinal do abandono da chamada «doutrina de Brejnev», segundo a qual a União Soviética tinha o direito à intervenção militar nos países comunistas. A partir daí, as capitais do Bloco Soviético tinham liberdade de ação na questão das reformas internas.

 

A FILOSOFIA DO COMPROMISSO E O FIM DA DOUTRINA DE BREjNEV

A oposição democrática na Polónia não tinha consciência da dimensão das mudanças que aconteciam nas políticas soviéticas. O programa do Solidariedade era moderado e tendo como referência o princípio da autolimitação, em que o movimento se baseou desde o início, não procurava tomar o poder ou derrubar o sistema. O ponto de partida era a convicção de que as reformas necessárias seriam bem-sucedidas apenas com a cooperação entre a oposição e a ala reformista do regime. A fórmula para o compromisso seria o reconhecimento do sistema existente e das regras do Partido Comunista (pzpr) em troca da aprovação de sindicatos independentes e liberdade de associação. De acordo com este princípio, os dois lados tiveram de limitar-se: as autoridades satisfizeram as aspirações sociais de liberdade, enquanto que a sociedade teve de perceber que não conseguiria ter tudo aquilo a que tinha direito.

Com o objetivo de evitar uma intervenção soviética que poderia ter consequências terríveis, os líderes da oposição consideraram que o Solidariedade não deveria violar «interesses soviéticos básicos». Nestes incluíam-se o poder do Partido Comunista e a adesão da Polónia ao Pacto de Varsóvia. Uma questão em aberto eram os limites dos direitos civis: eram reivindicados direitos humanos básicos, incluindo liberdade de expressão, liberdade de religião, liberdade de associação, o direito à greve e, claro, o direito a sindicatos independentes. O Solidariedade rejeitava o caminho da revolução violenta e estava constantemente a pressionar o Governo para iniciar conversações e chegar a um acordo que respeitasse as exigências dos dois lados. Um argumento importante para o compromisso com os comunistas foi a queda económica do país. Para os líderes do movimento democrático era impossível realizar uma reforma económica sem o mínimo de confiança para o Governo, e isso exigia a restauração da liberdade sindical e outras formas de pluralismo. Por seu lado, já em meados dos anos 1980, o movimento propunha o apoio a reformas pró-mercado – uma ideia que ficou sem resposta. Até ao verão de 1988, o Governo tentava estabilizar sozinho a situação social e política.

O Big Brother soviético não incentivava os comunistas polacos a chegarem a um compromisso com o movimento do Solidariedade. No entanto, também não levantava obstáculos nesse sentido. Jacques Levesque, no seu livro sobre a libertação da Europa Central e de Leste do domínio soviético, descreve o plano de Gorbachev em relação aos estados-satélites de Moscovo como uma política do laisser-faire. De acordo com o investigador canadiano, a política da Perestroika não incluía a Europa de Leste porque não tinha um efetivo programa de transformação para estes países2. Gorbachev não desenvolveu qualquer esforço para promover mudanças, com o objetivo de democratizar o sistema fora da urss, embora simpatizasse com reformadores como Mieczyslaw Rakowski, que se tornou primeiro-ministro polaco em 1988. No entanto, o aspeto mais importante foi o facto de Gorbachev não contrariar esta vontade de mudança.

Obviamente, para os comunistas que governavam em Varsóvia, a posição de Moscovo era muito importante. É difícil avaliar se eles teriam arriscado negociações com a oposição democrática sem a aceitação tácita do Big Brother. É claro, porém, que as concessões à oposição não teriam sido possíveis se o ponto de vista de Moscovo ainda estivesse marcado pelas ideias de Brejnev. Apolítica de Gorbachev centrou-se na reforma do sistema soviético e no desenvolvimento de uma relação construtiva com o Ocidente. Isto permitiu uma liberalização cautelosa em Varsóvia. No entanto, foi apenas em dezembro de 1988, no seu discurso na Assembleia Geral da onu, que Gorbachev rompeu finalmente com as políticas de poder exercidas pela urss desde o tempo de Estaline. Neste discurso, Gorbachev afirmou que nas relações internacionais, como nas relações entre países comunistas, a força ou até a ameaça da força não poderiam ser utilizadas. E com isto anulou a doutrina de Brejnev.

Estas declarações verbais foram pela primeira vez testadas na prática política na Polónia, onde existia o mais forte movimento democrático e a maior erosão do sistema comunista. Foi um teste difícil para a política de Gorbachev: o consentimento para a legalização do movimento Solidariedade e o início das negociações da Mesa-Redonda. Era o início de um conjunto completamente diferente de reformas, que enfraqueceram os dogmas do socialismo real e que poderiam levar à divisão ou mesmo à perda de poder dos comunistas. O exemplo da Polónia podia também encorajar outros países do Bloco a envolverem-se em experiências semelhantes. Poderia Moscovo assistir passivamente a estes acontecimentos?

 

O ESPECTRO DA DEMOCRACIA

A liderança soviética avaliou a situação na Polónia sem entusiasmo mas também sem pânico. Nos documentos soviéticos relativos a este tema não existem feitiços ideológicos ou acusações contra as forças da contrarrevolução; em vez disso é evidente o reconhecimento sóbrio da realidade que, na Polónia da altura, significava uma profunda crise económica e política. O Partido Comunista Polaco não sabia como ultrapassar estes problemas sozinho, o que levou os observadores soviéticos a aceitarem a introdução de uma oposição moderada na estrutura do Estado. Em janeiro de 1989, Gorbachev pediu um conjunto de opiniões de especialistas sobre possíveis desenvolvimentos nos países da Europa Central e Oriental. Em fevereiro, a liderança do partido recebeu análises de três instituições. Os documentos mostravam uma atitude surpreendentemente pragmática entre os reformadores soviéticos sobre a perspetiva da democratização do sistema nos países da chamada «democracia popular», e até mesmo sobre a liberalização do controlo de Moscovo3.

Peritos do Departamento de Relações Internacionais do Partido Comunista da União Soviética (pcus), num documento que avaliava vários cenários, sublinhavam como o melhor possível (ou melhor, menos negativo) aquele que reconhecia uma abordagem planeada, controlada pelos partidos do Governo, direcionando a sociedade rumo à democracia e a uma nova forma de socialismo. O documento reconhece a possibilidade de «transformação da oposição construtiva em uma das forças presentes na corrida pelo poder», mas a possibilidade de uma intervenção armada foi rejeitada. Mesmo no caso de um forte agravamento da situação em um dos países, os analistas de Moscovo escreveram que

«nós não podemos recorrer a esse tipo de medidas como fizemos em 1956 ou em 1968, por questões de princípio e por causa das evidentes consequências desagradáveis para nós. Medidas forçadas seriam justificadas apenas numa situação – uma intervenção óbvia e direta de forças armadas estrangeiras nos assuntos internos do país socialista»4.

Assim, foi proposto o total afastamento da doutrina de Brejnev, e a adoção não só do princípio da independência de cada um dos partidos, mas também a aprovação de mudanças na direção do pluralismo.

O ministro dos Negócios Estrangeiros soviético demonstrou um pragmatismo similar. O ministério encorajou os líderes a iniciarem contactos com os grupos da oposição. Os diplomatas soviéticos não tinham ilusões sobre o estado político dos seus aliados. Sérias dificuldades tinham surgido nos países socialistas «com a crise do modelo administrativo e obrigatório do socialismo». Todos se confrontavam com «uma necessidade objetiva para implementar a mudança fundamental», tanto política como económica. Os camaradas polacos e húngaros foram forçados a fazer concessões para entrar no caminho do pluralismo político e sindical.

A incorporação da oposição nas instituições do Estado envolveu riscos significativos: «tendo alcançado o acesso aos órgãos parlamentares e do governo, a oposição poderia retirar do poder – parcial ou totalmente – os comunistas e os partidos dos trabalhadores». Especialistas do Ministério dos Negócios Estrangeiros sublinharam que a tarefa mais importante seria manter todos os países do Bloco «no caminho do desenvolvimento socialista». No entanto, o próprio conceito de socialismo e a sua aplicação prática passaram por uma grande evolução. Em 1989, esta fórmula não continha, como aconteceu em 1981, aspetos ameaçadores. Tratou-se de um testemunho de impotência à medida que um conjunto de medidas antes usadas para manter o país «no caminho socialista» foi drasticamente reduzido.

«Deve ser assumido», afirma o documento do Ministério dos Negócios Estrangeiros, «que o uso da força nas nossas relações com países socialistas, principalmente a força militar, está completamente excluída mesmo nas situações mais extremas»5. Os diplomatas soviéticos consideravam como principal objetivo a proteção da nova autoridade da União Soviética no contexto internacional, como resultado da ofensiva de paz de Gorbachev. As ações militares em defesa do comunismo nos países vizinhos destruiriam de imediato essa imagem.

Peritos do Instituto da Economia Socialista da Academia de Ciências Soviética foram mais longe nas suas previsões. O esforço para manter o status quo na Polónia e noutros países não tinha sentido, afirmando que «tentativas para contrariar tendências de crescimento significariam lutar contra moinhos de vento e contra o curso objetivo da História […] Uma intervenção militar direta da União Soviética iria significar claramente o fim da Perestroika. E isso não vai evitar a desintegração de sistemas socioeconómicos e sociopolíticos nesses países, ou protestos em massa que poderiam levar em último caso a confrontos armados».

Na avaliação dos académicos soviéticos, a situação nos países comunistas da Europa foi evoluindo para a posição da Finlândia: um país democrático e soberano nos seus assuntos internos e políticos, mas cuja política externa é subordinada às relações com a Rússia. Permitir a Varsóvia, Budapeste e Praga uma substancial autonomia interna e a transformação dos seus sistemas políticos não significava a quebra das ligações com a União Soviética e não provocaria o abandono do Pacto de Varsóvia. Haveria, no entanto, a questão da sua proximidade do Ocidente: da esfera exclusiva de Moscovo, estes países passariam para a esfera em que a influência da União Soviética estaria acompanhada pela influência da cee. Iria permitir-lhes desempenhar um papel de intermediário ou até de liderança na integração do Oriente e do Ocidente.

«Este processo não só não ameaça os interesses da União Soviética, mas, pelo contrário, irá ampliar e multiplicar os benefícios que nós neste momento retiramos da cooperação com a Finlândia e com a Áustria, dando-nos acesso aos mercados do Ocidente e às conquistas da ciência, engenharia e tecnologia do Ocidente.»

Até a perspetiva da perda de poder dos partidos comunistas em alguns países não originou qualquer tipo de preocupação entre os investigadores soviéticos. Eles consideravam que os comunistas deviam conseguir a legitimação para governar a partir do consentimento voluntário das suas nações. «Teriam de pagar pela perda de confiança como em qualquer outro partido de uma sociedade democrática» escreveram, num tom provavelmente nunca antes ouvido no Kremlin. Desta forma, os conselheiros de Gorbachev não temiam que o fantasma da democracia pairasse sobre a Europa Oriental. O documento indicava que o resultado mais favorável dos desenvolvimentos na Polónia previa um compromisso vago entre o partido e o Solidariedade. Esse aspeto levaria à construção gradual de uma economia de mercado e à privatização das empresas do Estado. Previam também «uma mudança no sentido do pluralismo político-partidário real» – eleições livres, a redistribuição de assentos no Parlamento, trazendo representantes da atual oposição no Governo, e a liberdade de imprensa. Uma situação que aumentaria o apoio da população e o reconhecimento do Ocidente, que por sua vez facilitaria na questão da dívida externa e na obtenção de novos empréstimos para melhorar a situação económica.

Os observadores de Moscovo sabiam que, na Polónia, o domínio comunista estava a chegar ao fim – «No rescaldo da crise ideológica e no atrito entre os partidos deverá ocorrer um progressivo enfraquecimento do Partido Comunista», escreveram. Este processo, no entanto, iria desenvolver-se lentamente, de forma pacífica, o que evitaria uma explosão. «O que eles mais receavam era um conflito aberto entre o Governo e o movimento cívico. Consideravam como o pior cenário a imposição da lei marcial e uma situação próxima a uma guerra civil. A Polónia poderia assim transformar-se no “Afeganistão da Europa Central”»6. Este foi o argumento final para a tolerância face à evolução democrática nos países-satélites. A União Soviética não tentava escapar da armadilha do Afeganistão apenas para criar a ameaça do confronto armado na Europa Oriental. Todos os estudos rejeitavam uma interferência direta – política ou militar – soviética na região. A exclusão da possibilidade do uso da força na defesa do status quo, no entanto, também era resultado de um cálculo político. O Kremlin estava disposto a aceitar a derrota dos seus vassalos comunistas em Varsóvia e em outras capitais porque acreditava que iria manter a sua influência, ainda que a fórmula de relacionamento se alterasse no sentido de uma muito maior autonomia. Os líderes soviéticos contavam com a perseverança do Pacto de Varsóvia e a evolução de alguns dos seus membros – principalmente a Polónia – na direção de uma «finlandização».

Do ponto de vista da geopolítica soviética, o aceitar deste cenário para os países do lado oriental da Cortina de Ferro foi uma mudança revolucionária. Jaruzelski era certamente consciente dessa mudança, embora, provavelmente, não estivesse familiarizado com os memorandos descritos anteriormente. Rakowski compreendeu o facto de, com a chegada de Gorbachev, ter sido atenuado o controlo do Kremlin. «Pela primeira vez estamos completamente livres para fornecer a nossa casa», declarou o primeiro-ministro no início de 19897. As conversações com o Solidariedade na Mesa-Redonda foram realizadas pelo Governo na crença de que Moscovo lhes tinha dado liberdade para chegarem a um acordo com a oposição.

Muitos historiadores da Guerra Fria – Tony Judt, Archie Brown e John Lewis Gaddis, entre outros – viam na Perestroika levada a cabo por Mikhail Gorbachev o mais importante impulso para as mudanças que tiveram lugar na Europa Oriental8. Na conclusão do seu livro sobre a história da União Soviética durante a Guerra Fria, Vladislav Zubok escreveu que quando, no final de 1988, Gorbachev rejeitou a justificação ideológica da política externa de Estaline e renunciou ao uso da força e das barreiras isolacionistas para suportar o império socialista, este caiu no espaço de um ano9. No entanto, também sublinhou a falta de um «envolvimento soviético positivo» no processo de democratização na Europa Central e Oriental10. Moscovo não tentou coordenar as suas atividades com os reformadores na Polónia e Hungria, mas problemas financeiros graves forçaram a União Soviética a reduzir a sua presença militar nos estados-satélites. Em janeiro de 1989, Gorbachev anunciou uma redução unilateral das Forças Armadas na Europa Central e Oriental, não estando, no entanto, pronto para a retirada completa do Exército Vermelho ou para desistir da esfera de influência soviética na Europa estabelecida por Estaline. Tudo isto aconteceu apenas por causa das exigências no sentido da plena independência das nações do Bloco Oriental depois do colapso do regime comunista nesses países.

Gorbachev foi muitas vezes surpreendido pelo desenvolvimento dos acontecimentos que estavam fora do seu controlo. A sua atitude para com os países da Europa Oriental foi determinada pela regra de não interferência que aplicou às forças reformadoras e às forças conservadoras. Este foi, portanto, um papel passivo em vez de ativo, ainda que ele próprio simpatizasse com os reformadores, e especialmente com Jaruzelski.

Para que as reformas tentadas tomassem a forma de democratização e não apenas uma liberalização limitada do sistema, foram decisivas as atitudes das nações sob o regime comunista, bem como as ações da oposição democrática. Sem o reconhecimento do Solidariedade, não havia possibilidade de abertura de novas linhas de crédito com o Ocidente, ou de renegociação de uma gigantesca dívida externa. Quando as tentativas no sentido de reformas económicas liberais falharam, os comunistas não tiveram outra escolha para além de um compromisso com a oposição.

 

ACORDO DA MESA REDONDA OU O MAL MENOR

A causa imediata para a mudança na direção de um compromisso por parte das autoridades da Polónia foi a maior onda de greves desde a imposição da lei marcial. Depois de conversas preparatórias nos bastidores, em fevereiro de 1989 começaram as negociações da Mesa-Redonda. Os dois lados procuravam a garantia de segurança política. Para as autoridades, essa garantia foi a participação da oposição nas eleições que deveriam legitimar a governação do Partido Comunista, e apoiar as reformas económicas. Para o movimento democrático a garantia mais importante era recuperar o direito à representação, ou seja, a legalização do Solidariedade.

O general Jaruzelski foi forçado por causa do desastre económico a assumir este passo arriscado. Face a uma explosão social eminente, um acordo com um adversário ideológico era para as autoridades um mal menor. Para o outro lado, um compromisso com os comunistas fazia parte da estratégia da oposição desde 1980, como um preço necessário para a democratização do sistema. Apolítica de Lech Walesa e dos seus conselheiros baseava-se no princípio da «revolução autolimitada» e a luta pela representação na forma de um sindicato independente foi realizada sem violência. O objetivo não era derrubar o sistema, mas liberalizá-lo. Este era um fator crucial: os representantes do regime concordaram com as negociações porque não estavam ameaçados com a extinção.

Nos sete anos que se seguiram à lei marcial, os membros do Solidariedade não desistiram das suas exigências democráticas, criando uma sociedade civil com centenas de jornais independentes, casas secretas de impressão e publicação, sindicatos secretos, e uma vida científica e artística independente. Ao criarem esta sociedade «paralela» não permitiram que o general Jaruzelski estabilizasse o poder. O movimento pacífico de resistência polaco, no qual participaram dezenas de milhares de pessoas, foi o maior desafio para o sistema comunista. Com uma organização independente e um programa de mudanças democráticas, o Solidariedade criou uma alternativa credível. Por essa razão, foi combatido pelo regime monopolista – e foi também por isso que eventualmente conseguiu tornar-se um parceiro do contrato político.

O Acordo da Mesa-Redonda, assinado no dia 5 de abril de 1989, previa a participação da oposição nas eleições parcialmente livres ao Parlamento (as primeiras em quarenta anos com a participação de uma força política independente). A oposição podia concorrer a 35 por cento dos assentos do Sejm (câmara baixa) e a todos os assentos do Senado. O partido e os seus satélites foram garantindo uma maioria técnica no Parlamento. Era suposto que o general Jaruzelski se tornasse presidente, enquanto garantia da preservação do poder pelo Partido Comunista. Em troca, o Solidariedade seria novamente legalizado, ganhando uma maior liberdade de ação do que em 1980. Com o acordo da Mesa-Redonda, o Governo admitiu a oposição no sistema sublinhando que os dois partidos concordaram em reformar o país em conjunto. No entanto, na curta mas bem organizada campanha, a oposição fez do voto um plebiscito: a favor ou contra o comunismo.

As eleições de 4 de junho de 1989 deram uma clara resposta. O Solidariedade ganhou quase todos os lugares para os quais concorria. A vitória foi tão grande que mudou o equilíbrio de poder, apesar de o Partido Comunista e dos seus aliados manterem ainda uma maioria no Parlamento. Lech Walesa recusou juntar-se a um governo liderado pelos comunistas. Em meados de agosto, criou uma coligação com dois pequenos partidos no Parlamento (até aí aliados dos comunistas) e declarou que o Solidariedade estava pronto para formar um governo. Jaruzelski, o presidente eleito, agora encostado contra a parede, aceitou o novo primeiro-ministro – Tadeusz Mazowiecki, um membro da oposição. Foi o fim da ditadura e do comunismo na Polónia. Como é que Moscovo respondeu a esta cadeia de acontecimentos inesperados?

A cadeira soviética na Mesa-Redonda estava vazia mas os negociadores dos dois lados tinham consciência das limitações decorrentes do domínio soviético11. Assim, assuntos da política externa, a participação polaca no Pacto de Varsóvia e a presença militar soviética no país estavam, por acordo tácito, excluídos das discussões. Lech Walesa, numa entrevista sem precedentes a um jornal soviético, na véspera da reunião da Mesa-Redonda, declarou que o Solidariedade queria ser independente das autoridades e não procurava o poder. Não se sabe se a liderança soviética acreditou nesta afirmação, mas as suas reações ao acordo foram positivas. O jornal Izvestia escreveu que o acordo polaco demonstrou que o socialismo pode ser reformulado e receber um novo sistema baseado numa «democracia socialista parlamentar»12.

Do ponto de vista de Moscovo, o compromisso entre o partido e o Solidariedade não era a pior forma de sair de uma situação complicada. O modelo polaco de democratização, acima de tudo, trouxe mudanças numa forma evolutiva gradual que era controlada pelo partido, na medida em que podia servir como modelo para outros países do Bloco. O próprio Jaruzelski destacou que aquele modelo mostrava que se pode manter um diálogo com a oposição sem o risco de se desencadear uma campanha de descomunização e de «terror branco»13.

A opinião da União Soviética manteve-se inalterada mesmo depois da derrota eleitoral dos comunistas. O conselheiro de Gorbachev para os Negócios Estrangeiros, questionado a 3 de julho sobre a reação da União Soviética face à possibilidade de um governo liderado pelo Solidariedade, declarou que Moscovo iria manter relações com qualquer governo escolhido pela Polónia. A6 de julho, durante um discurso no Conselho da Europa, o próprio Gorbachev sublinhou que a ordem constitucional pode mudar num determinado país mas que essa é uma questão de autodecisão de uma sociedade, referindo que «Qualquer interferência nos assuntos internos, qualquer tentativa de restrição da soberania das nações… é inaceitável». Gorbachev confirmou esta posição no dia seguinte num encontro de líderes do Pacto de Varsóvia em Bucareste, excluindo o recurso à violência nas relações «fraternais» com os países socialistas.

O anúncio de Walesa, de que o Solidariedade estava pronto para formar um governo, causou alguma ansiedade a Moscovo. O vice-ministro soviético dos Negócios Estrangeiros deixou um alerta contra a quebra da política de compromisso. No entanto, os russos foram tranquilizados com a promessa de Walesa de que haveria espaço para os reformadores do partido num novo governo e pela sua declaração de que o Solidariedade não ia esquecer a participação polaca no Pacto de Varsóvia. No período difícil de formação de um novo governo, Moscovo manifestou a sua neutralidade. A 16 de agosto, o Ministério Soviético dos Negócios Estrangeiros anunciava que «A União Soviética não pretende interferir nos assuntos internos da Polónia», acrescentando que «Os polacos devem resolver os seus próprios problemas». Gorbachev recusou inclusivamente aceitar Rakowski, que se tornou no chefe do partido no poder depois de Jaruzelski se tornar presidente, em Moscovo, de forma a evitar dar a impressão de que ele queria interferir nos assuntos polacos. No dia 22 de agosto, Gorbachev chamou Rakowski que assistiu impotente ao fim da liderança de quarenta e cinco anos do seu partido, e disse-lhe que era impossível uma nova variante da lei marcial. Os camaradas polacos foram aconselhados a manter a linha de compromisso14.

Jack Matlock, na altura embaixador dos Estados Unidos em Moscovo, afirmava que os russos preocupavam-se com a estabilidade na Polónia e que o que mais queriam era evitar um surto de sentimento antissoviético. «Se o Solidariedade conseguir assegurar isto, Gorbachev pode não gostar, mas terá de se ajustar à nova ordem», telegrafou para Washington, em meados de agosto. Escreveu que «apesar da formação de um governo pelo Solidariedade poder ser um comprimido amargo para os russos, eles vão ter de o engolir mesmo se sufocarem ao fazê-lo»15.

O embaixador norte-americano tinha razão. Nomeado a 24 de agosto, o primeiro-ministro Mazowiecki recebeu os parabéns formais da capital russa e um convite para visitar Moscovo. Pela sua parte, assegurou que o novo governo manteria o compromisso do país para estabilizar as relações polaco-soviéticas com base nos princípios de soberania e de cooperação. No Kremlin as suas declarações foram, ao que parece, aceites de boa-fé. De acordo com Jacques Levesque, Gorbachev acreditava que a estabilização polaca, obtida com a permissão da chegada do Solidariedade, primeiro ao Parlamento, depois ao Governo, foi um sucesso e permitiu aos comunistas olharem com otimismo para o futuro. O líder do pcus não percebeu que isto era o princípio do fim do império soviético16.

 

NOTAS

1General Pavlov: I was a KGB resident in Poland. Varsóvia, 1994, p. 385.         [ Links ]

2Levesque, Jacques – 1989. La fin d’un empire. L’URSS et la liberation de l‘Europe de l’Est. Paris: Presses Fondation Sciences Politiques, 1995, p. 74.         [ Links ]

3«Documents». In Dudek, Antoni, e Friszke, Andrzej (org.) – Poland 1986-1989: The End of the System. Varsóvia, 2002. Comunicações da conferência internacional realizada em Miedzeszyn, 21-23 de fevereiro de 1999.         [ Links ]

4«Notes on strategy for relations with the European socialist countries». In Dudek, Antoni, e Friszke, Andrzej (org.) – Poland 1986-1989: The End of the System, pp. 215-226.         [ Links ] Oautor analisa os três documentos no livro Revolução da Mesa-Redonda, Cracóvia, 2009.

5«Political processes taking place in European socialist countries. Suggestions of practical steps». In Dudek, Antoni, e Friszke, Andrzej (org.) – Poland 1986-1989: The End of the System, pp. 227-233.         [ Links ]

6«Changes in Eastern Europe and their influence on the USSR». In Dudek, Antoni e Friszke, Andrzej (org.) – Poland 1986-1989: The End of the System, pp. 233–251.         [ Links ]

7Orszulik, A.– Czas przelomu. Notatki z rozmów z wladzami PRL w latach 1981-1989 (Notes from the talks wit the authorities of Popular Republic of Poland). Varsóvia, 2006, pp. 449-462.         [ Links ]

8Cf. Brown, Archie – The Rise and Fall of Communism. Londres: The Bodley Head, 2009;         [ Links ] Judt, Tony – Postwar. A History of Europe since 1945. Londres: Penquin Press, 2005;         [ Links ] Gaddis, John Lewis – The Cold War: A New History. Londres: Penguin Press, 2005.         [ Links ]

9Zubok, Vladislav – Failed Empire: The Soviet Union in the Cold War from Stalin to Gorbachev. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2007, p. 331.         [ Links ]

10Ibidem, p. 312.

11Levesque, Jacques– 1989. La fin d’un empire. L’URSS et la liberation de l‘Europe de l’Est, p. 147.         [ Links ]

12Citado em Ibidem, p. 149.

13Ibidem, p. 151.

14Rakowski, Mieczyslaw – Political Journals 1987-1990. Varsóvia, 2005, pp. 497-498.         [ Links ]

15Domber, Gregory F. (org.) – Towards the Victory of Solidarity. Correspondence of the U.S. Embassy in Warsaw with the Department of State. January-September 1989. Varsóvia: Instytut Studiów Politycznych, 2006, pp. 352-356.         [ Links ]

16Levesque, Jacques– 1989. La fin d’un empire. L’URSS et la liberation de l‘Europe de l’Est, p. 163.         [ Links ]