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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.33 Lisboa mar. 2012

 

O que a crise esconde

 

António Vitorino

Jurista. Antigo ministro da Defesa Nacional e antigo comissário europeu para a Justiça e os Assuntos Internos. Foi deputado ao Parlamento Europeu e à Assembleia da República pelo Partido Socialista.

 

RESUMO

Desde a eclosão da parte grega da crise em 2009 até ao Conselho Europeu de dezembro de 2011, a crise europeia conheceu três andamentos distintos. O primeiro refere-se à «Grécia caso isolado», o segundo refere-se ao eventual espectro do contágio à Irlanda e depois a Portugal, e o terceiro à gestão da crise a curto prazo em simultâneo com a necessidade de serem adotadas soluções de fundo para o futuro.

Palavras-chave: Crise das dívidas soberanas, zona euro, tratados europeus, Alemanha

 

What is hidden by the crisis

ABSTRACT

Since 2009, with the eruption of the Greek part of the crisis, and until the European Council in December 2011, the European crisis has known three different moments. The first concerns the “Greece as an isolated case”, the second is related with the possible contagion to Ireland and Portugal, and the third one refers to the short term crisis management and the concomitant need to adopt structural solutions for the future.

Keywords: Sovereign debt crisis, Euro zone, European Treaties, Germany

 

OS TRÊS ANDAMENTOS DA CRISE

Em termos da economia-mundo pode-se dizer que 2011 foi o ano em que a Europa deixou de ser parte da solução e passou a ser parte do problema. Pelo menos no que diz respeito àquela parte da Europa que integra a denominada zona euro.

Com efeito, desde a eclosão da parte grega da crise (nos começos de 2009) até ao Conselho Europeu de dezembro de 2011, a crise europeia conheceu três andamentos distintos.

O primeiro andamento foi o da «Grécia caso isolado». Convenhamos que, à época, não faltavam razões para sustentar a especificidade da situação grega, desde logo pela circunstância de ter sido o próprio Governo grego (então chefiado pelo recém-eleito primeiro-ministro Papandreou) a reconhecer o falseamento das estatísticas oficiais sobre a dimensão do respetivo défice público (e suas implicações na dívida pública), no quadro da aplicação do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Foi o tempo em que, face às pressões dos mercados financeiros em relação aos juros para financiamento daquele país, ninguém queria ser assimilado aos gregos. Uma reação que durante bastante tempo colocou em dúvida se haveria alguma manifestação de solidariedade dos restantes países da zona euro face à situação muito difícil vivida pelos helénicos. A dúvida foi mantida durante um tempo provavelmente excessivo, em larga medida devido às reticências da Alemanha em assumir um programa de emergência de socorro à Grécia.

Este primeiro andamento termina com uma decisão ad hoc de apoio financeiro (bilateral) assumida nos termos e condições definidos pela Alemanha. Mau grado todas as dúvidas e hesitações, a Alemanha acabava por se situar num quadro de resposta europeu, ainda que complementado por uma relevante intervenção do Fundo Monetário Internacional tanto do ponto de vista financeiro como no tocante à orientação a imprimir ao programa de ajustamento definido como contrapartida àquele apoio.

No segundo andamento, primeiro a Irlanda e depois Portugal, embora por razões distintas, passam a experimentar acrescidas dificuldades de financiamento junto dos mercados internacionais. O espectro do contágio continuado surge como o cenário mais provável, equacionando-se pois, por isso, a possível dimensão sistémica da crise das dívidas soberanas de alguns (vários) países europeus. O acrónimo pigs faz então a sua fulgurante aparição, umas vezes com um «I» apenas (de Irlanda), outras vezes com dois (acrescentando a Itália), para além da Grécia, de Portugal e da Espanha. Apresentada ainda como uma crise de países sobre-endividados, recusa-se a natureza sistémica do problema embora sejam adotadas medidas como a Facilidade Europeia de Estabilização Financeira (fesf) que, manifestamente, envolvem o potencial de constituir um contrapeso à pressão dos mercados internacionais em relação à zona euro e à moeda comum europeia no seu conjunto.

Este segundo andamento caracteriza-se pela negação formal de uma crise sistémica e dos efeitos de contaminação sobre o conjunto da zona euro e pela adoção de um acervo de decisões, de mobilização de meios financeiros e de imposição de condições aos países beneficiários que, na prática, evidenciam a negação da negação da crise sistémica. A engenharia financeira encontrada, sob o impulso da Alemanha, ia ao encontro das próprias dificuldades políticas internas do principal país contribuinte para os fundos de resgate e visava manter a ficção de que se continuava a respeitar a sacrossanta cláusula «no bailout» de que o Tribunal Constitucional de Karlsruhe se fazia absoluto defensor (para já não falar da constante vigilância sobre o tema do Banco Central alemão…). O Banco Central Europeu (bce), nesta fase, passa a desempenhar um papel fundamental na definição das linhas de resposta à crise, sem o qual a ficção não poderia continuar a ser alimentada.

E assim chegamos ao terceiro (e atual) andamento. Um andamento onde convergem (embora nem sempre de forma harmoniosa) a gestão do curto prazo da evolução da crise com a necessidade de serem adotadas soluções de fundo para o futuro (tanto preventivas como sancionatórias). A natureza sistémica do problema não pode ser mais dissimulada ou escondida, as lacunas e insuficiências dos mecanismos de gestão da União Económica e Monetária (uem) são identificadas em maior ou menor dimensão e propende-se a definir um quadro legislativo futuro que lhes faça face. Mas, ao mesmo tempo, há que conter a continuada (e amplificada) pressão dos mercados sobre os países em risco, mobilizando mecanismos europeus (a fesf que se transforma num fundo de vocação permanente, o Mecanismo Europeu de Estabilidade – mes) e impondo condições mais duras aos países que beneficiam da ajuda financeira europeia. A austeridade é definida como a via de purificação dos «pecadores», o sistema torna-se mais impositivo, a malha é apertada e reforçam-se as ameaças aos que futuramente tenham a tentação de prevaricar.

Este é, pois, o andamento onde a recessão faz a sua entrada na cena europeia, atingindo fortemente os países alvo de programas de resgate mas afetando também, mediatamente, os demais, Alemanha incluída. Alógica da condução política desta terceira fase culmina com o tratado intergovernamental denominado Tratado sobre a Estabilidade, Coordenação e Governação da União Económica e Monetária (também referenciado como «Fiscal Compact» ou Tratado de Disciplina Orçamental) que, sendo de duvidosa necessidade jurídica, constitui, contudo, a condição política necessária para que a Alemanha mantenha a sua ancoragem no euro e numa solução europeia para a crise das dívidas soberanas.

O quarto andamento, de que apenas se intuem os acordes iniciais, dirá se tal condição necessária também será suficiente!

 

OS ATORES

Como se infere do que já se deixou escrito, nesta crise só há verdadeiramente um protagonista de primeira grandeza: a Alemanha. Ou, se se preferir uma visão mais personalizada, a chanceler alemã Angela Merkel.

A circunstância de a Alemanha ser a mais robusta economia europeia e consequentemente o principal país contribuinte para as operações de resgate dos países sobre-endividados seria, por si só, suficiente para explicar esta conclusão. Mas, na verdade, o protagonismo alemão avulta bem mais para além da mera análise contabilística. Com efeito, a crise da zona euro interpela, de modo muito direto, os próprios fundamentos do sistema político alemão, tanto no que respeita aos pressupostos da criação da moeda única europeia assumidos pelo então Governo de Bona na negociação do Tratado de Maastricht, como pelo peso específico da «questão europeia» na República Federal Alemã pós-unificação.

Independentemente do que se pense da forma como a Alemanha tem conduzido a resposta europeia à crise da zona euro, da avaliação que se faça das suas hesitações e até dos seus erros, como adiante se referirá, duas conclusões, contudo, se impõem.

A primeira é a de que nenhum outro país da União Europeia fez, nestes últimos anos, um percurso evolutivo tão relevante e significativo sobre as suas conceções de fundo acerca da uem como a Alemanha. E com um apoio político e parlamentar largamente maioritário, a ponto de terem saído frustradas (e eleitoralmente punidas) as tentativas populistas de uma importante fração do Partido Liberal, membro da própria coligação no poder em Berlim.

A segunda é a de que a Alemanha, uma vez ultrapassada a indecisão inicial face ao caso da Grécia, tem permanecido seriamente apostada na procura de uma solução europeia. E por muito descuidada que tenha sido a coreografia do processo de decisão (muito em particular na alimentação da ficção de um tandem franco-alemão e na marginalização, muitas vezes ostensiva, de outros estados-membros e das próprias instituições europeias), a orientação de fundo da atuação de Berlim tem sido constante quanto ao compromisso de salvaguardar o euro como moeda comum europeia. Nada permite duvidar da sinceridade alemã quanto à afirmação de que o fim do euro representaria o fim do processo de integração europeia. Ese é verdade que a salvaguarda da integração europeia e da moeda comum constituem pedras basilares do próprio interesse nacional alemão, não é menos verdade que em nenhum outro país como na Alemanha estas questões têm sido tão aprofundadamente debatidas e têm estado presentes no centro do próprio debate político democrático nacional.

Por isso, não é surpreendente que algumas das vozes mais críticas quanto ao rumo seguido e até algumas das alternativas mais consistentes às opções da chanceler Merkel tenham surgido... do próprio debate interno alemão!

Esta indiscutível proeminência alemã na gestão da crise da zona euro permite antecipar que a dinâmica assim gerada não deixará de ter efeitos profundos e duradouros no quadro do funcionamento da União Europeia (ue) muito para além do específico domínio da uem. São cada vez mais as vozes dos que entendem que nada voltará ao que foi antes da crise das dívidas soberanas e, por essa razão, nenhuma omissão será consentida no debate quanto ao curso futuro do processo de integração europeia.

Desde logo porquanto o desenrolar da crise tem sublinhado a vida difícil das instituições europeias face ao avolumar deste protagonismo alemão ou, se quisermos ser generosos, franco-alemão... Em parte tal explica-se por razões imputáveis à responsabilidade dessas próprias instituições. Mas, em boa medida, a recalibragem de protagonismos da dimensão comunitária e da dimensão intergovernamental estava inscrita no quadro legal de referência da própria uem desde a negociação do início dos anos 1990.

Com efeito, a uem, criada em Maastricht, esteve sempre integrada no denominado «pilar comunitário», mas as especificidades do seu funcionamento sempre demonstraram que a gestão da moeda comum estava «a cavalo» entre a dinâmica comunitária clássica e uma forte vertente intergovernamental. A abolição da estrutura de pilares, levada a cabo pelo Tratado de Lisboa, reforçou a componente parlamentar/comunitária (em especial no âmbito do processo legislativo e no âmbito do processo orçamental) e ancorou o denominado Eurogrupo nos próprios tratados, ainda que em termos cautelosos e áticos, em virtude de se tratar de uma instância política que integra apenas os países que adotaram o euro como moeda comum. Perante a enorme dimensão financeira da crise das dívidas soberanas e atentos os limites do próprio orçamento comunitário, uma resposta europeia de resgate dos países sobre-endividados só poderia encontrar respaldo bastante na mobilização (direta ou indireta) de verbas provenientes dos orçamentos nacionais dos estados-membros, compreendendo-se portanto o incontornável peso da instância intergovernamental no processo de decisão. Processo esse que rapidamente escapou ao controlo dos (até então) todo-poderosos ministros das Finanças reunidos no ecofin e passou a ser diretamente assumido pelos chefes de Estado e de governo em sede ora de Conselho Europeu, ora de cimeira dos que participam na zona euro.

Esta dinâmica intergovernamental culminou com o denominado «Fiscal Compact», um tratado celebrado entre estados fora do marco da ue, em virtude da oposição do Reino Unido. Mas, mesmo neste cenário (aliás, não totalmente inédito, bastando recordar o caso dos Acordos de Schengen que só viriam a ser integrados no acervo comunitário em 1999, pelo Tratado de Amesterdão) prevaleceu a opção alemã de conferir um amplo complexo de poderes às instituições da União, desde logo à Comissão mas igualmente ao Tribunal de Justiça da União e ao presidente da Cimeira dos Chefes de Estado e de Governo da Zona Euro, o qual pode bem coincidir com o presidente do Conselho Europeu como preconizado por uma iniciativa conjunta franco-alemã.

A peculiaridade desta solução assenta sobretudo no facto de se tratar de um tratado intergovernamental, logo, exterior à ordem jurídica comunitária, adotada ao serviço e em complemento de uma política comum da União (a moeda única), onde alguns dos estados subscritores ou usufruem de um opt-out (Dinamarca) ou ainda não preencheram os requisitos para adotarem a moeda comum (casos da Polónia e da Suécia), não o subscrevendo dois, um que tem um opt-out (o Reino Unido) e outro que está vinculado ao objetivo comum da moeda única mas ainda não se qualificou para tal. O mosaico institucional decorrente desta inovação institucional assemelha-se a um verdadeiro caleidoscópio!

 

ERROS E CONTRADIÇÕES

A crise da dívida soberana de alguns países da zona euro evidencia que, quando não há coincidência na análise da causa dos problemas, se torna muito mais complexo e difícil definir a linha de rumo para a sua superação. Durante os primeiros dois andamentos da crise prevaleceu a ideia de que pôr em destaque as causas estruturais da crise correspondia a diluir as responsabilidades dos países em risco e consequentemente constituía uma cedência indevida ao denominado moral hazard. Por isso, a narrativa da crise (ou melhor, da resposta à crise) foi reduzida a um discurso moralista, onde os faltosos teriam que sofrer as consequências dos seus erros e expiar as suas culpas. Neste contexto, as explicações dadas pelos responsáveis políticos europeus dos países contribuintes para os fundos de resgate, junto das suas opiniões públicas, tenderam a ocultar a dimensão sistémica da crise, a negar o potencial disruptor do denominado «efeito de contágio» e não raras vezes recorreram a fórmulas retóricas assentes na estigmatização dos países beneficiários (países onde se trabalha pouco, onde se fazem investimentos irresponsáveis, onde se vive à custa de outros, esses sim honestos e diligentes…), desta forma fazendo renascer fantasmas do passado, discriminações regionais, étnicas e até religiosas que se acreditava estarem arredadas da esfera pública europeia.

Contudo, ao prefigurarem o apoio dispensado aos países em eminência de cessação de pagamentos (Grécia, Irlanda e Portugal) e as medidas de conforto aos que dessa situação se aproximavam perigosamente (casos da Espanha e da Itália) como um ato de solidariedade quase forçada e mesmo em alguns casos de um altruísmo imerecido pelos beneficiários, os países contribuintes tornaram mais difícil a aceitação das decisões tomadas em sucessivas cimeiras europeias por parte das suas próprias opiniões públicas e dos respetivos parlamentos nacionais. Neste contexto bem se pode dizer que a retórica da crise ocultou mais do que uma solidariedade altruística ou de produção de efeitos distributivos no quadro europeu, as ações de resgate levadas a cabo também se alicerçaram na salvaguarda do interesse nacional dos próprios contribuintes, na proteção dos seus sistemas financeiros e bancários e na construção de barreiras ao efeito de contágio cujo alcance resultaria potenciado pelas insuficiências genéticas da arquitetura global da moeda única europeia.

Não espanta, pois, que a terapêutica adotada tenha sido sobretudo centrada quer na implementação de programas de ajustamento e austeridade nos países em risco e no reforço das regras jurídicas de disciplina orçamental, quer na ótica de prevenção de futuras crises, quer na ótica de um mais estrito quadro de aplicação de sanções aos prevaricadores.

Os efeitos da ação empreendida subestimam, consequentemente, os seus impactos na economia real e, por isso, mostram-se insuficientes para restabelecer a confiança dos mercados financeiros nos países em situação crítica e, no limite, no conjunto da zona euro. Fica-se, assim, com a sensação de que os decisores políticos, ao longo de 18 cimeiras europeias no espaço de pouco mais de um ano, andaram sempre a correr atrás dos movimentos dos mercados, de cada vez adotando novas medidas consideradas como insuficientes e tardias, num braço-de-ferro onde a iniciativa pertencia aos interesses económicos.

E se é verdade que a questão central (dir-se-ia dominante) da agenda europeia é a da crise da dívida soberana, não é menos verdade que a lógica da resposta adotada sublinhou o problema de fundo da economia europeia no seu conjunto, a saber, o do anémico crescimento económico em face do processo de globalização, ou, se se preferir, o da afirmação dos interesses europeus no contexto do «descentramento da globalização» que corresponde à emergência, em posição determinante, dos denominados brics (Brasil, Rússia, China, África do Sul, Indonésia, México, Arábia Saudita e uns quantos mais participantes no G20). Dito de outro modo: se a resposta à crise das dívidas soberanas agravou a recessão, quer nos países sob assistência financeira quer nos demais, culminando com a estagnação alemã no quarto trimestre de 2011, não se pode, contudo, resumir os problemas económicos europeus face à globalização apenas aos condicionalismos de funcionamento da zona euro. Por isso, a quebra do crescimento económico, o aumento do desemprego (atingindo a maioria dos países europeus, com a assinalável exceção da Alemanha…) e a reserva dos demais países do G20 em reforçarem a sua comparticipação financeira (via fmi) para apoiarem a resolução da crise das dívidas soberanas fazem da Europa parte do problema e chamam a atenção para a natureza incompleta das soluções encontradas no âmbito da ue.

Em bom rigor, o sentido global da resposta europeia à crise das dívidas soberanas foi agravado quer por alguns erros de orientação, quer pelos próprios sinais contraditórios que foram sendo dados ao longo do tempo da sua gestão.

Hoje ninguém pode negar que a decisão alemã de impor a participação dos detentores de dívida soberana grega num acordo, dito «voluntário», de redução e reconversão da dívida por eles detida, com um desconto previsto inicialmente de cerca de 21 por cento e que acabou por superar os 50 por cento, constituiu um erro estratégico de condução da resposta à crise, atento o seu impacto no alargamento do efeito de contágio aos juros da dívida de países como a Espanha e a Itália. Ou seja, para responder ao problema da insustentabilidade da dívida soberana de um país que representa cerca de dois por cento da economia da zona euro provocou-se uma «onda de choque» que acabou por pôr sob pressão mais de um terço do conjunto da economia europeia...

Mas este erro estratégico teve a virtude de pôr em evidência um paradoxo democrático relevante que dele emerge. A exigência alemã pode explicar-se pela necessidade política sentida pela chanceler Merkel de coenvolver a responsabilidade dos credores pela situação criada pelo sobre-endividamento da Grécia. Essa necessidade política aferia-se não apenas em função das reações da opinião pública alemã mas sobretudo em função do instável equilíbrio interno da coligação no poder em Berlim, muito em particular a atitude reticente aos resgates quer por parte do Partido Liberal (fdp), quer mesmo do Partido Social-Cristão bávaro (csu). Logo, os ditames democráticos internos, incontornáveis atenta a responsabilidade orçamental coenvolvida na operação de resgate da Grécia, acabaram por determinar um comportamento que teve num primeiro momento um efeito de agravamento da própria crise grega, embora não se possa deixar de reconhecer que essa operação (denominada psi – Private Setor Involvement) relevasse também em termos de garantia da sustentabilidade, a prazo, da própria dívida grega.

Sem embargo, como é evidente, esta contingência teve um efeito de alastramento que não foi contido pela repetida afirmação de que o caso grego era um caso único e irrepetível. Na realidade, se era legítimo colocar a questão da solvência do Estado grego perante a dimensão da respetiva dívida (à época na ordem dos 180 por cento do respetivo pib), não é possível deixar de equacionar as implicações na solvabilidade de outros estados sobre-endividados dos mecanismos adotados para gerir a crise das dívidas soberanas, quando questões de liquidez e de acesso aos mercados, aliadas a políticas de austeridade com inelutável efeito recessivo, acabam por colocar em causa a sustentabilidade a prazo do pagamento dessa mesma dívida.

Aos erros de estratégia acresceram também os sinais contraditórios. Com efeito, desde o início da crise os responsáveis europeus sempre afirmaram que estava fora de causa a saída de um Estado-membro da zona euro. Na realidade, o tema havia sido equacionado mas para ser afastado, quanto mais não fosse com fundamento no facto (inegável) de que os tratados não preveem a possibilidade de tal saída (apenas existindo uma disposição – introduzida pelo Tratado de Lisboa – que prevê a saída da União no seu todo).

Ora, na sequência da crise política grega desencadeada pela intenção do então primeiro-ministro Papandreou de convocar um referendo sobre a estratégia de austeridade acordada com a Troika da Comissão, do Fundo Monetário Internacional e do Banco Central Europeu, vários responsáveis europeus ao mais alto nível vieram abrir a porta a uma possível saída da Grécia da moeda comum europeia. Isto é, responderam à iniciativa grega com um argumento contraditório com tudo o que haviam afirmado até então e consequentemente abriram a porta para que os investidores começassem a equacionar o possível impacto nas suas carteiras de ativos de um tal cenário, já não apenas restrito à Grécia mas mais latamente contemplando outros casos problemáticos, dos mais óbvios e evidentes (Irlanda e Portugal) aos mediatamente contemplados (Itália e Espanha). Para quem enfrentava uma crise de confiança este faux pas acabou por agravar não só a própria crise grega mas também a situação da zona euro no seu conjunto.

Não surpreende, por isso, que a partir deste momento tenham ganho visibilidade os (velhos) defensores da teoria da «purificação» do euro, ou seja, aqueles que, tendo ficado em 1999 surpreendidos com a qualificação dos então designados países do «Club Med» (Itália, Espanha e Portugal), passaram a assumir publicamente que a salvação da moeda comum europeia impunha a redução do seu núcleo constitutivo aos países que ofereçam garantias de assumir a responsabilidade orçamental de forma rigorosa (um euro do Norte da Europa). Claro que para os defensores desta tese o caso limite mais difícil seria o de qualificar a França neste quadro...

Neste contexto, mesmo no próprio Governo alemão, nem todas as vozes se pronunciaram no mesmo sentido. Ese é verdade que reiteradamente a chanceler Merkel nunca se afastou da tese mais ortodoxa da manutenção da zona euro na sua composição atual, não deixa de ser evidente que outros responsáveis do mesmo governo, incluindo, aliás, o próprio ministro das Finanças, várias vezes emitiram opiniões que apontavam para a probabilidade de uma saída da Grécia da moeda comum europeia. Em larga medida estas opiniões constituem instrumentos de pressão sobre as autoridades gregas, de modo a que estas cumprissem os compromissos assumidos nos Memoranda de entendimento celebrados com a Troika. Mas, como está bem de ver, este tipo de declarações em nada ajudaram a credibilizar a estratégia europeia de conjunto de resposta à crise da dívida soberana, com especiais consequências nos países mais vulneráveis, a começar pelo nosso próprio país.

 

A SAÍDA DA CRISE

Como já se deixou claro, neste começo do quarto andamento da crise podemos olhar para trás e reconhecer o relevante caminho percorrido embora muitas vezes de forma errática e insuficiente. Pode-se, contudo, dizer que iniciamos esta nova fase com um quadro de referência aplicável ao médio prazo suficientemente estabilizado, designadamente através da aprovação por 25 dos 27 estados-membros do designado Tratado sobre a Estabilidade, Coordenação e Governação da União Económica e Monetária.

Independentemente das questões políticas e institucionais que este tratado intergovernamental coloca na sua articulação com as políticas comuns europeias, designadamente com o funcionamento do mercado interno, a verdade é que se se pode dizer que o quadro de referência do médio prazo se encontra assim clarificado, o que carece ainda de uma especificação mais detalhada diz respeito ao período intercalar, ou seja, à lógica imediata da gestão da crise até à plena aplicação desde tratado futuro. Oque significa que a crise das dívidas soberanas ainda conhecerá sobressaltos e reveses antes mesmo de podermos viver plenamente num quadro conforme com as (boas) intenções alemãs agora consagradas em letra de forma num ato jurídico que garante a cuidada gestão das finanças públicas e o rigor e a responsabilidade na condução das políticas públicas na perspetiva da consolidação da moeda única europeia.

Ora, neste plano imediato, o que se afigura absolutamente necessário é uma estratégia de crescimento económico à escala europeia. Não apenas para responder à forma como os investidores olham hoje para a zona euro e para a sustentabilidade das dívidas soberanas dos estados que a integram, mas também, numa dimensão mais ampla, para credibilizar a posição da Europa no mundo globalizado em que vivemos. O mesmo é dizer, se a crise das dívidas soberanas parece esconder o problema de fundo da economia europeia, o do seu crescimento num quadro de globalização concorrencial, sem responder ao problema de fundo também não haverá capacidade para ultrapassar a própria crise da zona euro.

E, como já se deixou dito, a solução não passa pela rutura da zona euro, a qual, a verificar-se, acabaria por projetar a ue numa crise mais grave, tanto política quanto económica, pelos efeitos devastadores que comportaria no funcionamento do mercado interno que é o verdadeiro coração da integração económica europeia.

Mas, de igual modo, também não passa por um retorno às teorias protecionistas, mesmo que, desta feita, essas conceções já não se sustentem numa leitura de protecionismo nacional mas antes se disfarcem sob a forma de um «protecionismo continental», um «protecionismo pan-europeu» que não deixaria de provocar reações retaliatórias noutros quadrantes geográficos que são hoje o motor do crescimento económico mundial. O canto da sereia do protecionismo rapidamente se traduziria, assim, num jogo de soma negativa de que a Europa seria mais vítima do que beneficiária.

Logo, há que regressar aos valores fundamentais da integração económica europeia. A abertura ao mundo, a consolidação do maior mercado interno do mundo, assente numa estratégia de crescimento económico e de criação de emprego que permita preservar a economia social de mercado e o contrato social humanista que constitui o timbre da identidade europeia.

Um plano concertado de crescimento que privilegie o investimento (tanto público quanto privado) em infraestruturas fundamentais para o desenvolvimento, designadamente no setor energético que tem um peso marcante no conjunto da indústria europeia, que promova as estratégias de investigação e desenvolvimento, de inovação e de melhoria dos sistemas de educação e de formação profissional, de inegável influência na competitividade das empresas europeias em sentido mais amplo e que potenciem a adoção de reformas estruturais tendo em vista a adaptação das estruturas produtivas europeias e os sistemas de proteção social e os respetivos mercados laborais às novas condições de concorrência no mercado global e no contexto das novas características de internacionalização dos processos produtivos.

Mas, as reformas de fundo e uma estratégia de crescimento não dispensam a ue de completar as medidas de intervenção imediata no específico caso da gestão das dívidas soberanas. Oque significa manter a linha de intervenção do Banco Central Europeu no mercado da dívida e na garantia de liquidez do sistema bancário europeu, no respeito pela sua independência e credibilidade, reforçar a capacidade de resposta e sobretudo a função dissuasora dos fundos de resgate (designadamente pela conjugação das garantias ainda disponíveis no âmbito da Facilidade de Estabilização Financeira com as disponibilidades alocadas ao nível do Mecanismo Europeu de Estabilidade) e, last but not least, encontrando no plano técnico uma solução conforme com os tratados que garanta a mutualização parcial do stock acumulado da dívida soberana de todos os estados-membros, numa perspetiva que garanta as expectativas dos credores e, ao mesmo tempo, credibilize a estratégia de redução da dívida assumida nos termos e para os efeitos do tratado intergovernamental assinado a 1 de março em Bruxelas. Esta estratégia de gestão da crise permitirá, a prazo, reequacionar as disponibilidades do orçamento comunitário e a possibilidade de emissão de dívida europeia autónoma (os denominados eurobonds) centrada no crescimento económico em função de objetivos políticos assumidos coletivamente no âmbito da ue.