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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.32 Lisboa dez. 2011

 

Memórias

 

Bernardo Pires de Lima

Investigador do IPRI – UNL. Doutorando em Relações Internacionais na FCSH – UNL, onde desenvolve uma tese sobre a NATO e o fim da Guerra Fria. Colunista do Diário de Notícias. Comentador de assuntos internacionais na TVI24 e Rádio Renascença. É autor de Blair, a Moral e o Poder (Guerra & Paz, 2008).

 

George W. Bush, Decision Points

St Ives, Virgin Books, 2010, 497 pp.

As memórias de George W. Bush são a narração do exercício do poder em função dos momentos mais importantes por si escolhidos. Este desenho do livro pressupõe uma subjectividade dos capítulos tratados de acordo com um fio condutor: mostrar aos leitores que o antigo Presidente dos Estados Unidos deu sempre tudo pelo país, procurou racionalizar todas as decisões que tomou, ouvindo opiniões, estudando informação, maturando o processo de decisão, mas sempre bafejado pela divina bênção de Cristo. Decision Points não tem propriamente um argumento sólido, mas dá-nos um fio condutor do princípio ao fim: só a fé ilumina o difícil caminho da política. Bush faz questão de repetidamente lembrar os leitores que as suas manhãs começavam invariavelmente pela leitura da Bíblia.

A maior parte dos capítulos não traz novidades ao que a literatura já havia mostrado nos últimos anos. As tensões entre departamentos (Pentágono, Departamento de Estado, etc.) e pessoas – embora Bush não carregue muito nelas –, a complexidade da cadeia humana no processo de decisão americano, as debilidades das intervenções no Afeganistão e Iraque, o falhanço na gestão do Katrina, a idealista (e assumida por Bush) agenda da liberdade, a influência de Dick Cheney na Administração e o recurso recorrente ao conselho de Bush pai. No plano transatlântico, fica claro, por exemplo, que Bush assume como unilaterais as intervenções no Afeganistão e no Iraque e que é a partir desse ângulo que os aliados se colocam e esgrimem argumentos. Não é um dado inteiramente novo, mas tem a virtude de ser assumido pelo próprio decisor político.

Quem quiser encontrar novas pistas para analisar a última década, não é em Decision Points que o fará. Estas memórias são a visão benigna das acções de um Presidente que lidou com o 11 de Setembro, duas guerras simultâneas, o maior desastre natural nos Estados Unidos e o início da maior crise financeira dos últimos oitenta anos. Foram oito anos intensos, como prova o ritmo com que são descritas as grandes decisões. Anos em que Bush tentou fazer o melhor. Mas sempre com o almighty por perto.

 

Donald Rumsfeld, Known and Unknown: A Memoir

Nova York, Sentinel, 2011, 815 pp.

As memórias do mais novo e também mais velho norte-americano a ocupar a chefia do Pentágono estão repletas de uma das piores características que assombram o sucesso: a arrogância. Donald Rumsfeld começa o livro por contar o enredo histórico que o levou a apertar a mão a Saddam Hussein em 1983 e é precisamente o Iraque que mais páginas preenche: dois terços são dedicados ao tempo em que Rumsfeld serviu George W. Bush. O resto conta o seu percurso de sucesso como estudante, militar, gestor, embaixador na NATO, chefe de gabinete e secretário da Defesa de Gerald Ford, conselheiro de Nixon e de Reagan. Tudo com alguma minúcia e interesse. No entanto, no que toca aos anos em que serviu Bush (filho), há dois traços que percorrem a narrativa: por um lado, a tentativa de culpabilizar a falta de coordenação interagências de informação, bem como o próprio modelo de organização da Administração; por outro, a tentativa de, sem recorrer ao arrependimento, justificar alguns dos pontos quentes da invasão do Iraque – o principal dossiê do seu mandato – com erros de terceiros.

Poupando Dick Cheney, Rumsfeld é muito directo na «moleza» de Colin Powell e na falta de organização e experiência política da então conselheira de segurança nacional Condoleezza Rice, alguém a quem Rumsfeld atribui uma influência sem paralelo nas decisões do Presidente Bush. Estas memórias, não tendo um propósito de contribuir para o entendimento das relações internacionais e, em particular, da parceira transatlântica, são um documento sem grande brilho para auxiliar esses ângulos de análise. Servem, acima de tudo, tal como a esmagadora maioria das memórias de membros da Administração Bush publicadas depois da Guerra do Iraque, para revelar o ponto de vista do autor, a sua bem-intencionada acção nos sucessos e a sua ultrapassagem por outros quando os finais não são tão bem-sucedidos. Known and Unknown é um testemunho muito pessoal de um dos mais influentes políticos americanos das últimas quatro décadas sobre o complexo processo de decisão norte-americano: a sua orgânica, a interdependência departamental, o espaço concedido às relações pessoais, o peso da dinâmica histórica. É, sobre este ângulo, um livro com interesse.

 

Tony Blair, A Journey

Londres, Hutchinson, 2010, 717 pp.

Como Derek Chollet e James Goldgeier tão bem demonstraram (American Between the Wars) e Gideon Rachman estendeu até aos nossos dias (Zero-Sum World), o mundo viveu numa euforia liberal e democrática contagiosa posterior à Guerra Fria – marcada por Bill Clinton – e entrou num período pós-traumático com o 11 de Setembro – marcado por George W. Bush. Tony Blair foi talvez o único líder mundial que mais de perto acompanhou esta transição política e psicológica com epicentro em Washington. Só por isso, as memórias do antigo primeiro-ministro britânico têm um especial interesse, uma vez que percorrem períodos sucessivos, contemporâneos, onde Londres passou a desempenhar um papel progressivamente assumido como estratégico e essencial aos seus interesses: perto de Washington, próximo de Bruxelas.

A primeira metade do livro remete-nos para a formação do New Labour, para o contributo dado por um conjunto de jovens turcos marcados mais pela vivência de middle class do que por imperativos filosóficos que os afastaram da ortodoxia do Old Labour. Aliás, não é visível uma grande admiração de Blair por figuras do passado trabalhista. As suas referências estão em David Lloyd George, Roy Jenkins, John Maynard Keynes, William Gladstone e, sem exagerar, a própria Thatcher, mais pelo que lhe deixou feito do que por um qualquer mimetismo.

A segunda metade é profundamente condicionada pelos ataques de 11 de Setembro. Aqui emerge o messias, o crente, o aliado, o garante da civilização ocidental. São descritos os méritos das intervenções no Afeganistão e no Iraque, o alcance da «agenda pela liberdade» partilhada com Bush e é nesta fase do livro que a alteração da sua imagem política é mais visível. Blair passa de um político com forte linhagem no pragmatismo, para um líder internacional com pretensões a deixar um legado. É um livro com deixas contraditórias de acordo, aliás, com o seu autor. O seu denso testemunho, não sendo particularmente uma novidade bibliográfica, tem a importância que lhe dá o facto de ter sido escrito pelo primeiro-ministro trabalhista com mais anos no cargo em toda a história britânica. Não é coisa pouca.

 

Dick Cheney, In My Time: A Personal and Political Memoir

Nova York, Threshold Editions, 2011, 565 pp.

Que dizer de um livro que Condoleezza Rice (que entretanto lançou as suas memórias – No Higher Honor: A Memory of My Years in Washington) considera «um ataque à sua integridade» ou que Colin Powell profundamente contestou assim que foi posto à venda? Dick Cheney teve uma importância na Administração Bush que o cargo de Vice-Presidente não lhe conferia à partida. A sua história política deu-lhe um poder no processo de decisão incomparável na trajectória do cargo, algo que George W. Bush nunca rejeitou. Este facto percorre todo o livro: Cheney era praticamente um co-decisor e isso deu-lhe margem para conflitualidades permanentes no interior da Administração.

Os primeiros capítulos do livro descrevem a sua ascensão profissional e acabam por ser uma forma de humanizar o seu perfil público, descrito na imprensa e opinião pública da última década como um autêntico Darth Vader, entre muitos outros mimos. Na segunda metade do livro, Cheney dedica-se ao desempenho da sua vice-presidência, à formulação da «guerra ao terror», ao desenho do dominó da liberdade para o Médio Oriente, à defesa de certas práticas de interrogatório na guerra global contra o terrorismo, à luta pelo protagonismo de certas linhas de argumentação na complexa cadeia de decisão da Casa Branca. Aqui são evidentes as clivagens com Condi Rice e Colin Powell – que empurrou para a saída – em momentos que vão da gestão do nuclear norte-coreano, à surge no Iraque. Há uma constante policy battle nos corredores da Administração e Cheney, honra lhe seja feita, não foge ao assunto.

No plano das relações internacionais, em particular transatlânticas, In My Time percorre com pinceladas o papel da diplomacia nos momentos-chave descritos. Mas este não é um contributo a reter. Se quisermos perceber qual o ângulo com que é escrita esta e outras memórias recentemente publicadas, devemos baixar a expectativa quanto a isso. Elas servem sobretudo para melhorar a imagem pública dos seus autores e revelar um pouco mais do complexo processo de decisão norte-americano.

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