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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.32 Lisboa dez. 2011

 

Em busca de uma visão total da estratégia

 

António Paulo Duarte

Doutor em História Institucional e Política. É assessor do Instituto da Defesa Nacional e professor auxiliar convidado do Departamento de Estudos Políticos da FCSH – UNL. É investigador do Instituto de História Contemporânea.

 

António Horta Fernandes

Acolher ou Vencer? A Guerra e a Estratégia na Actualidade

Lisboa, Esfera do Caos, 2011, 216 páginas

 

 

O que é a estratégia? A ampla utilização do termo não dotou a estratégia de um sentido e de um significado claro. A estratégia continua, hoje, a ser uma disciplina com um conteúdo problemático e com diferentes conceptualizações, sem baias que a configurem de forma clara, variando o seu significado de país para país e de doutrina para doutrina. Esta fluidez conceptual tem impulsionado, de igual forma, a reflexão sobre a estratégia, publicando-se com alguma regularidade tratados em que se discute o seu conceito e o seu conteúdo, sem que contudo algum autor consiga, em definitivo, propor uma fórmula que satisfaça os outros debatentes1. Em Portugal, a edição recente de textos de Pezarat Correia2, Martins Barrento3 e António Silva Ribeiro4 sobre a disciplina e os seus fundamentos demonstra o fulgor do debate.

António Horta Fernandes não é um neófito nestas lides. O seu interesse pelo conceito e pelo conteúdo da estratégia é antigo. Publicou há mais de uma década o Homo strategicus5 em que dissecava os fundamentos da estratégia, obra, injustamente, pouco lida. A publicação de Acolher ou Vencer representa um aprofundamento do Homo strategicus, burilando mais fundamentadamente algumas das ideias já expostas na primeira obra e abrindo portas a novas perspectivas.

 

A GENEALOGIA DA LEITURA DA ESTRATÉGIA

As bases com as quais fundamenta António Horta Fernandes a edificação da sua visão da estratégia são diferentes das que subjazem à maioria dos tratadistas da disciplina. Estes movem-se pelos reinos dos tratadistas de estratégia clássicos e da história, no essencial militar e política, na senda do que foi e é a tradicional escola (ou escolas) do pensamento estratégico (e, em determinados casos, aportando elementos da ciência económica). O nosso autor, não descurando a história ou alguns tratados de estratégia, nomeadamente o de Abel Cabral Couto6, de que se considera discípulo, alicerça o seu pensamento na filosofia (e na teologia, que de certo modo é uma forma de filosofia específica) e na literatura, disciplinas tão injustamente esquecidas no estudo da deste campo do saber. É certo que Abel Cabral Couto já se movia um pouco no vastíssimo oceano da filosofia, não obstante, António Horta Fernandes está verdadeiramente imerso nesse pélago, do qual assoma, para dar um rumo muito próprio, mas não menos relevante, à estratégia.

Muito mais interessante, contudo, é o enorme potencial de compreensão e de conhecimento da estratégia que António Horta Fernandes extrai da literatura. O romance é, na sua essência, desde os seus mais arcanos primórdios, uma busca das linhas visíveis ou invisíveis com que se entretece a realidade, todavia o potencial de compreensão deste para o estudo da estratégia tem sido desprezado. A necessidade de edificar uma ciência denominada estratégia explica, em parte, a desconsideração por uma forma de leitura da realidade que todos julgam advir, no essencial, da imaginação. Não obstante, não visa o romance, e a literatura em geral, oferecer ao leitor uma visão dura da realidade, mesmo daquela que se origina na imaginação? Não é a imaginação parte da realidade?

António Horta Fernandes não convoca qualquer romancista. Para lá dos clássicos, muitos dos romancistas convocados têm, de uma forma ou outra, lidado com a violência armada e com a guerra, campo de onde brota a estratégia: é o caso de Arturo Peréz-Reverte, antigo repórter de guerra espanhol, de Gert Ledig, veterano alemão da II Guerra Mundial, de Joseph Conrad, um profundo conhecedor do abismo humano, ou de Marcel Proust, que não tendo jamais tido qualquer experiência bélica ou marcial propriamente dita, experimentou a Grande Guerra como cidadão francês.

A amplidão das experiências, quer filosóficas (e teológicas), quer romanescas, convocadas incrusta-se nos mais fundos desígnios da estratégia, o de integrar, enquanto espaço conceptual, enquanto theoria, e o de intervir, como praxis, como acção, sobre a totalidade do real, procurando abarcar toda a existência, considerando a envolvência assediante de todo o fenómeno com que esta disciplina lida: a hostilidade intergrupal em todas as suas formas, a violência, fruto da coacção e a resistência que a esta se opõe, o fulcro da violência armada e da guerra.

A obra de António Horta Fernandes lavra sobre espaços pouco ou jamais amanhados pelo pensamento estratégico. É uma obra de ruptura, num bom sentido que esta palavra tem no campo do saber. A sua estranheza resulta de a sua genealogia desabrochar de áreas distintas das fontes conceptuais de onde se extrai o clássico pensamento estratégico. Naturalmente, a tonalidade do pensamento do autor é profundamente original. Mas se um pensamento cimentado em fontes originais para a estratégia a enriquece e enriquece a compreensão que se pode ter da realidade da disputa entre as entidades sociopolíticas, excita e estimula igualmente a polémica.

 

GUERRA E ESTRATÉGIA

O autor começa por salientar a irredutabilidade da guerra, figura do mal, e, por isso, impossível de ordenar e de ponderar, arisca a toda e qualquer forma de razão. A estratégia emerge assim como «instrumento neguentrópico» do «des-sentido» e da caótica da guerra. A estratégia é, assim, uma figuração ética, prudencialização e razão morigeradora, reguladora do «des-sentido» da guerra, visando a paz e por isso intermediária entre a guerra e a paz. Nesta linha, observa com inteira razão que cabe à estratégia considerar todas as modalidades de coação almejando a absorção de todas as suas formas, reabsorvendo-as e sugando assim a hostilidade, a animadversão, mitigando os seus efeitos ou armando a paz, um paradoxo caro ao autor. A ponderação da estratégia funciona assim como um mitigador que silencia a conflitualidade hostil e delimita a guerra, o mal, dado a guerra ser por excelência a figura do inominável. A estratégia desponta como uma ética do conflito, perspectivando-se como abertura ao outro, como potencial de paz, como, em última linha, latência messiânica.

A estratégia como ponderador, fruto da razão, tornando a disciplina uma ética do conflito é um dos pontos-chave da concepção total de António Horta Fernandes. A estratégia arma a paz contra a guerra, mas, curiosamente, fá-lo com os instrumentos da guerra, jogando com a guerra e com a violência, ironia que parece escapar ao autor. A estratégia é de facto um ponderador, dado que, como afirma J. C. Wylie, ela não é uma disciplina intelectual7, um saber, uma forma de pensar, aplicada, mas um pensamento-acção, que, sendo moderna e filha da razão iluminista, não deixa de carregar, e bem, arcanas experiências e raciocínios conceptuais antigos e arcaicos.

A expressão «estratégia» só se difunde na Europa nos fins do século XVIII, sendo, no essencial, a arte do Estado-Maior, o planeamento da manobra militar e da batalha. Clausewitz dá-lhe um sentido mais lato, ao configurar-lhe a função de um estudo conceptual, quase filosófico, da guerra e dos métodos com que se deve agir num conflito bélico. A estratégia brotou da guerra, um primeiro paradoxo, visto de uma figura do mal ressaltar um suposto bem: suposto, dado que a ponderação que o autor vê na estratégia não ser verificável, de forma linear pelo menos, na história contemporânea: os séculos XIX e XX vêem o agravamento considerável da violência bélica, que não se reduz só aos pesados custos humanos das guerras, derivado do desenvolvimento tecnológico, fermento da Revolução Industrial, mas também, e mais acutilante para questionar a tese do autor, à acção política e às estratégias planeadas pelos diversos contendores em jogo.

 

ESTRATÉGIA: ACÇÃO E RAZÃO

O século XIX é marcado por uma perspectiva estratégica baseada no mito da batalha decisiva e da vitória, em que a mobilização humana e material em dimensões cada vez mais ingentes é a chave fundamental do sucesso, com o total desprezo, ou quase, pelo sangue que deveria ser derramado. É claro que jamais passou pela cabeça dos estrategos que o resultado de tal planeamento estratégico redundasse numa carnificina como foi a I Guerra Mundial, mas se não conseguiram atingir a wellsiana imaginação da «Guerra dos Mundos» (War of the Worlds), as consequências do que aconteceu de 1914 em diante tinham sido, em boa medida, aceites por todos aprioristicamente: a guerra do futuro seria um embate entre nações e só a assunção de que a vitória exigia uma acção brutal e decisiva asseguraria o sucesso bélico no final.

Pode-se, em prol do autor, conjecturar sobre se a rápida e brutal batalha decisiva não representaria uma expressão última da ponderação estratégica enquanto ética do conflito. Pode-se discorrer numa discussão fútil sobre se não teria sido pior, não houvesse uma disciplina denominada estratégia que moderasse, através do uso da razão, os ímpetos agónicos e bélicos dos contendores. E porque não trazer em proveito de António Horta Fernandes as estratégias nucleares como demonstração evidente da capacidade de contenção da disciplina?

António Horta Fernandes tem consciência de que a violência bélica se avolumou ao longo dos séculos XIX e XX e argumenta então com duas dinâmicas distintas: a do papel da política, ou seja, da lógica soberana e de toda a violência que ela convoca e que se repercute na Guerra Total, expressão última da soberania; a da fragilidade da disciplina estratégica, ainda, basicamente uma táctica, excessivamente contaminada pela racionalidade técnica. A estratégia não estaria à altura das suas potencialidades e infectada pela lógica soberana, visceralmente violenta, não fora capaz de lhe pôr um travão, de paliar a guerra, fracassando inapelavelmente.

A estratégia é de facto uma ponderação, dado ser uma disciplina intelectual, uma forma de dissecar, analisar e de agir sobre a realidade, o que lhe dá, como a toda a racionalidade ponderativa, ou seja, medidora, uma dinâmica morigeradora, circunspecta, da realidade. Em consequência, ela pode ser neguentrópica da violência agónica e da guerra, o que lhe pode dar uma tonalidade ética e transformar a estratégia numa ética do conflito.

Não obstante, a substância do concreto demonstra como há algo que questiona a estratégia e a subverte. A estratégia andou a correr atrás da realidade da guerra e da violência bélica desde o seu parto, e nunca chegou a tempo; a criatividade da guerra foi sempre muito mais poderosa que a racionalidade da estratégia. E se a guerra é uma figura do mal, então o diabo inteligentemente deu aos homens uma disciplina, um saber, que só atrasadamente e com custos bem dolorosos a soube momentaneamente resolver.

Na realidade, e fora da ironia, a guerra é muito mais abarcante e abrangente do que a estratégia, daí o domínio que, sobre esta, aquela pode ter: a capacidade da guerra para perturbar e perverter a acção da disciplina é colossal. A guerra é uma grande máquina de pesados dentes trituradores e a capacidade do mecânico em a travar deriva da sua inteligência em fundir-lhe uma das peças-chave, tarefa hercúlea para o pensamento. A guerra é um barco no meio de uma tempestade, e a estratégia o piloto que tenta domar o seu rumo no meio da engolfante tormenta. A guerra envolve toda a sociedade, vibra por todos os que em ela estão emaranhados, suga-os para o seu abismo, para o seu torvelinho enredemoinhante, no meio da mais profunda angústia, do mais pungente medo, com o horizonte enegrecido pela morte, jogando com a vida e com o futuro. Num certo sentido, é o assoberbamento produzido pela guerra que induz à clausewitziana ascensão aos extremos. Os estrategos são uma pequena componente da sociedade, uma pequena parte da guerra, e estão envolvidos, por ela, na angústia de responder às múltiplas solicitudes que esta produz dadas as revolventes inquietudes que a contenda engendra.

A estratégia só pode responder à absorvente pressão do torvelinho agónico se agir: a paralisia é a negação da estratégia (pensar é, obviamente, agir, mas a estratégia não pode só meditar, tem de aplicar o pensamento, se quer reagir à envolvência abismal da guerra). A estratégia é acção, movimento, dinamismo: só agindo pode barrar o trajecto enredemoinhante da guerra. É por isso que a estratégia é uma praxis, na sua origem, e na sua prática (algo que o nosso autor, efectivamente, releva). A acção implica, obviamente, medição, ponderação, em suma, pensamento, mas estes são submetidos ao imperativo da acção. A theoria é empurrada, é impulsionada, pela pressão da praxis. Em consequência a estratégia, dada a imperiosidade da dinâmica conflitual, do torvelinho agónico, adquiriu uma feição muito mais técnica, muito mais instrumental. A preocupação dos estrategos, desde sempre, não foi a elaboração de uma arquitectura teórica pura e dura, mas a geração de um modo de acção que assegurasse, em caso de conflito, vantagens para o seu lado, e, em último caso, a derrota do seu inimigo. A arquitectura teórica corresponde, em boa medida, à fundamentação da acção, e serve para legitimar, de forma mais sustentada, a opção «operacional» e nem sempre é viável que se possa testar o produto antes de este ser implementado: testa-se em acção directa e puramente dura a opção.

Isto não nega a perspectiva de António Horta Fernandes. A estratégia é, na verdade, razão e ponderação, medida e julgamento, mas é isso submetido ao primado da acção. A pressão para a acção responde às assoberbantes angústias e inquietações da sociedade revolvida pelo conflito, e replica a estas procurando dentro do possível assegurar para todos a vida e a liberdade: a finalidade última da acção estratégica é assegurar a liberdade, o que corresponde à sua acção: agir é garantir que dispomos da liberdade para projectar o futuro que desejamos – modo e fim são assim os mesmos e resumem-se à possibilidade de dispor de liberdade de acção.

A paralisia estratégica engendrada pela destruição mútua assegurada e a manobra de assédio de longa duração edificada pelos contendores da Guerra Fria explica, em parte, se não no todo, a capacidade de desenvolver medidas de confiança mútua e de apaziguamento da tensão durante este longo conflito. A maior ponderação detectável durante a Guerra Fria é, talvez, o fermento da paralisia estratégica produzida pelas armas nucleares: dilatou o tempo criando mecanismos de esfriamento da tensão agónica.

A obra de António Horta Fernandes, na qual Acolher ou Vencer é só um fragmento, representa, no pensamento estratégico português, e no pensamento estratégico ocidental, uma linha de maior e mais profunda originalidade, interpelando as diversas concorrentes teóricas que o arquitectam. É um texto desafiante quer para o pensamento preguiçoso que se recusa a sair para fora da redoma do suposto saber institucional, quer para aqueles, e muitos o são, que buscam ampliar o saber relativo à estratégia e compreender de forma mais profunda as engrenagens do duelo agónico.

 

NOTAS

1 Vejam-se, entre outros, GRAY, Colin – Modern Strategy. Oxford: Oxford University Press, 1999;         [ Links ] FREEDMAN, Lawrence – «The transformation of strategic affairs». In Adelphi Paper 379, Londres, 2006;         [ Links ] HEUSER, Beatrice – The Transformation of Strategy. Cambridge: Cambridge University Press, 2010;         [ Links ] COUTAU-BEGÁRIE, Hervé – Traité de Stratégie, Paris: Economica, 1999.         [ Links ]

2 Cf. CORREIA, Pezarat – Manual de Geopolítica e Geoestratégia, 2 volumes. Coimbra: Almedina, 2010.         [ Links ]

3 Cf. BARRENTO, Martins – Da Estratégia. Lisboa: Tribuna da História, 2010.         [ Links ]

4 Cf. RIBEIRO, António Silva – Teoria Geral da Estratégia. Coimbra: Almedina, 2010.         [ Links ]

5 Cf. FERNANDES, António Horta – O Homo strategicus ou a Ilusão de Uma Razão Estratégica?. Lisboa: IDN/Cosmos, 1998.         [ Links ]

6 Cf. COUTO, Abel Cabral – Elementos da Estratégia, 2 volumes. Lisboa: IAEM, s. d.         [ Links ]

7 WYLIE, Joseph C. – Military Strategy: A General Theory of Power Control. Westport: Greenwood Publishers, 1967, p. 13.         [ Links ]

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