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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.32 Lisboa dez. 2011

 

A isóbare dos Açores

 

Carlos Riley

Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Doutorado em História Contemporânea pela Universidade dos Açores. Professor auxiliar do Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade dos Açores.

 

José Medeiros Ferreira

Os Açores na Política Internacional

Lisboa, Tinta-da-China, 2011, 181 páginas

 

 

O REGRESSO A ÍTACA

Numa apresentação sumária, a obra em epígrafe é o resultado da actividade desenvolvida por José Medeiros Ferreira, ao longo da última década, no âmbito do Mestrado de Relações Internacionais promovido pelo Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade dos Açores. Nesse sentido, como esclarece o autor no início, «o presente livro […] é o simétrico de uma das minhas últimas obras – Cinco Regimes na Política Internacional (Presença, 2006) – [onde] sintetizei muita da investigação que produzi na Universidade Nova de Lisboa» (p. 9). Apesar das afinidades patentes entre ambas as obras, Os Açores na Política Internacional merece (e deve) ser considerada como um caso à parte, desde logo porque se situa na intersecção de duas áreas de eleição de José Medeiros Ferreira: a política e as relações internacionais, e os Açores, sua terra natal.

Ora, do ponto de vista mais estrito (e desconhecido) da bibliografia açoriana, o livro aqui recenseado é igualmente parente próximo de outros títulos do mesmo autor – A Autonomia dos Açores na Percepção Espacial da Comunidade Portuguesa (Jornal de Cultura, 1995); Com os Açores no Dobrar do Século (Edições Salamandra, 1999) – e, num certo sentido, pode ser considerado como a redacção mais actualizada do palimpsesto açoriano que José Medeiros Ferreira vem escrevendo desde a década de 1980 a esta parte. Muito embora o seu trajecto – tanto político como universitário – no campo da história contemporânea e das relações internacionais nunca tenha sido construído em torno de um eixo açoriano, não deixa de ser significativo registar que as ilhas se apresentam como um «norte magnético» da sua bússola intelectual, em direcção ao qual regularmente se inclina para proveito de todos nós.

Passando à análise do seu mais recente «regresso a Ítaca», poderíamos caracterizar Os Açores na Política Internacional como uma obra que nos convida a olhar o arquipélago – no transcurso dos últimos cento e vinte anos, entre 1890 e a actualidade – enquanto «plataforma logística para as mais modernas inovações científicas e tecnológicas» (p. 15), daí advindo o valor estratégico e a relevância internacional das ilhas açorianas no mundo contemporâneo. Esta importância emerge nos finais do século XIX com a amarração dos cabos submarinos intercontinentais, a instalação de uma rede de postos de observação meteorológicos e a descoberta do mar dos Açores como campo fértil para o estudo da oceanografia (cap. 1, pp. 15-21). Se bem que tivesse cabido a Alberto I do Mónaco um papel decisivo nestas últimas áreas – meteorologia e oceanografia – não é menos verdade que foi coadjuvado nessa tarefa por um interlocutor local, Afonso de Chaves, e o diálogo científico estabelecido entre ambos comprova que, tal como afirma o autor, «a importância estratégica e a inserção internacional dos Açores dependeu tanto da sua situação geográfica como do trabalho humano, político, económico e científico operado no arquipélago» (p. 17).

 

OS AÇORES NOS FINAIS DO LONGO SÉCULO XIX

Muito embora o significado estratégico das ilhas açorianas não tenha sido descoberto no dealbar do século XX, bastando para isso lembrarmo-nos do papel de escala atlântica desempenhado pelo arquipélago no quadro da expansão ultramarina portuguesa e europeia, assistimos nos finais do «longo século XIX» ao início de uma mudança da relação de forças na disputa internacional pelo domínio do Atlântico – marcada pelo aparecimento dos Estados Unidos da América como potência marítima, na esteira da doutrina do poder naval do almirante Alfred T. Mahan – mudança essa que determinará a configuração de uma nova «isóbare político-estratégica sobre o arquipélago [que] tenderá sempre a ser conformada pelo grau de entendimento entre Lisboa, Londres e Washington» (p. 12).

Rectificando um ditame da conventional wisdom, segundo o qual a relevância estratégica dos Açores se manifesta pela existência de uma base aérea norte-americana na ilha Terceira desde os finais da II Guerra Mundial, este livro situa o despertar da pressão internacional sobre o arquipélago no seu verdadeiro enquadramento histórico (as duas décadas que decorrem entre 1898 e 1918), chamando a atenção para o facto de que a importância das ilhas «crescera com a guerra hispano-americana de 1898, com a construção do canal do Panamá e sua abertura em 1913, e com o decurso da Primeira Guerra Mundial, em termos verdadeiramente impressionantes» (p. 25).

Efectivamente, na sequência da vitória em Cuba e daquilo que ficou conhecido por «corolário (Theodore) Roosevelt» (Dezembro de 1904) da doutrina Monroe, os Estados Unidos da América começam a estender o seu olhar sobre as ilhas oceânicas do «Atlântico Central», isto é, para além do cordão de segurança insular que protegia o «complexo Panamá-Caraíbas», e os preparativos para a instalação de uma base naval norte-americana em Ponta Delgada nos finais de 1917 – a qual viria a ser visitada em Julho de 1918 pelo subsecretário da Marinha do governo federal, Franklin Delano Roosevelt – são um claro indício do progressivo interesse dos Estados Unidos pelo arquipélago açoriano. Este é, sem dúvida, um dos trechos que merece maior destaque no livro de José Medeiros Ferreira (cap. 2, pp. 25-46), sendo uma das razões de interesse a forma como nele dialoga a conjuntura internacional com a dinâmica política autonómica da sociedade local, protagonizada pela figura de José Bruno Carreiro. Outra, não menos importante, é que estes eventos foram o balão de ensaio das futuras «facilidades» concedidas aos norte-americanos nos Açores, já que as conversações políticas conducentes ao estabelecimento da base naval de Ponta Delgada decorreram no quadro de um «triângulo diplomático entre Lisboa, Londres e Washington, que servirá de inspiração às futuras negociações para o uso de facilidades nos Açores pelos Aliados anglo-saxónicos durante a Segunda Guerra Mundial» (p. 53).

 

A HETEROGENEIDADE DO ARQUIPÉLAGO E OS INTERESSES INTERNACIONAIS

Após o final da I Guerra Mundial e na sequência da derrota do Presidente Wilson nas eleições de 1920, os Estados Unidos mergulharam num «esplêndido isolamento» (p. 40) que irá prolongar-se por duas décadas. Em virtude deste recuo da pressão norte-americana no Atlântico Central, assistimos a um reajustamento da isóbare política internacional sobre o arquipélago dos Açores que, como muito bem recorda o autor, «não é uma superfície geográfica uniforme perante as potências» (p. 52). Conhecedor profundo da história açoriana, José Medeiros Ferreira evita o erro de análise (tantas vezes cometido por outros investigadores) de considerar os Açores como uma unidade regional semelhante à Madeira, chamando a atenção para as características dispersas e multipolares de uma «realidade arquipelágica compósita do ponto de vista político, cultural e administrativo» (p. 49). Em conformidade com esta visão espacialmente descontínua e hierarquizada das parcelas insulares, o autor apresenta-nos (cap. 3, pp. 49-81) um quadro das diferentes zonas de influência internacional em que se encontra dividido o arquipélago, cujo valor estratégico virá a ser enriquecido (nas décadas de 1920-1930) com os grandes avanços tecnológicos ocorridos no campo da telegrafia sem fios e, sobretudo, no domínio da navegação aérea transatlântica.

Neste particular, poderíamos resumir a evolução verificada entre as duas guerras mundiais no seguinte axioma: «A Marinha havia descoberto a importância estratégica dos Açores. A Aviação irá explorar essa importância» (p. 54). Apesar de o livro não se deter sobre a fase pioneira da aviação transatlântica no arquipélago, focando de imediato o seu interesse em torno das facilidades concedidas aos aliados ingleses e norte-americanos (aeroportos nas ilhas Terceira e de Santa Maria) pelo Governo de Salazar no decurso da II Guerra Mundial, cremos ser pertinente assinalar que, do ponto de vista do desenvolvimento da tecnologia aeronáutica, o período compreendido entre os anos de 1919 (primeiro voo transatlântico do comandante Read no hidroavião Curtiss NC-4) e 1939 (voo inaugural do Boieng 314 «Yankee Clipper» da Pan American) merece por si só um estudo monográfico aprofundado, até porque na década de 1930 concorrem em torno das ilhas dos Açores e, muito particularmente, da baía da Horta, diferentes interesses internacionais (Inglaterra, França, Alemanha, Itália e Estados Unidos) no domínio da aviação civil e militar.

A eclosão da II Guerra Mundial veio relançar o interesse norte-americano pelas ilhas açorianas, que o Presidente Franklin Delano Roosevelt – numa das suas famosas fireside chats (27 de Dezembro de 1940) versando a ameaça que representavam os ataques aéreos para a segurança interna dos Estados Unidos – considerava serem uma guarda avançada do «Hemisfério Ocidental» na sua «Estremadura» atlântica. Como aponta o autor, «os Açores vão ser encarados pelas potências marítimas de duas formas radicalmente diferentes: primeiro, como fronteira entre o “perturbador continental” e essas potências marítimas, depois como zona de articulação entre as margens do Atlântico» (p. 58).

Já muito foi dito e escrito sobre o significado estratégico do arquipélago açoriano no conspecto da II Guerra Mundial mas, sem prejuízo de outros contributos trazidos por esta obra a esse tema, importa reter a ideia que José Medeiros Ferreira nos transmite da «incerta divisão das ilhas em termos de influência no exterior no decorrer do conflito: o Faial mais inglês; a ilha Terceira justapondo em termos desiguais a presença militar portuguesa, inglesa e depois norte-americana; Santa Maria cedida mais tarde à aviação norte-americana; São Miguel... com mais de 25 soldados vindos de Lisboa... é o território português que mais se assemelha... em termos de defesa militar e estatuto internacional... a Lisboa» (p. 57).

Feito este retrato multifacetado das zonas de influência das diferentes potências – Portugal incluído – no complexo arquipelágico, poderíamos resumir, nas palavras do autor, que «[a] grande diferença entre a I e a II Guerra nos Açores, para além das mudanças decorrentes da passagem do poder naval para o poder aéreo, foi o facto de os Estados Unidos terem estabelecido uma base permanente na Ilha Terceira» (p. 74). Acrescente-se ainda outra diferença significativa: o início das relações bilaterais – doravante emancipadas da tutela inglesa – entre Washington e Lisboa, assunto que é objecto de análise no capítulo seguinte, intitulado «Onde fica Portugal nas relações luso-americanas?» (pp. 85-106) e do qual destacamos este excerto final

«Os Açores devem continuar a ser um factor de segurança e de articulação do espaço cisatlântico, ajudando a garantir a liberdade de circulação aeronaval entre continentes e o bom relacionamento entre entidades políticas dos dois lados do oceano, contribuindo ainda para o conhecimento científico dos fenómenos oceânicos e atmosféricos do Atlântico Nordeste» (p. 106).

A importância vital do aeroporto de Santa Maria para a navegação aérea transatlântica no pós-guerra, bem como a posição de primeira ordem ocupada pela Base das Lajes no contexto da Guerra Fria, conferiram aos Açores um peso estratégico que serviu de penhor – no quadro das negociações entre a Administração Kennedy e o Governo de Salazar em 1962 – à sobrevivência do poder colonial português em África. Com o advento da Revolução do 25 de Abril e o fim do império ultramarino, quando Portugal passa a ser – parafraseando José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis – um território «onde o mar acaba e a terra começa» –, iremos assistir a uma mudança de paradigma na política externa portuguesa que, sem beliscar os acordos com o Governo norte-americano, terá profundas implicações no arquipélago açoriano, como analisa o autor no capítulo dedicado à «Revolução autonómica (1974-1976) e as relações internacionais» (pp. 109-129).

 

A GEOGRAFIA E OS HOMENS

O impacto do PREC (Processo Revolucionário em Curso) na dinâmica política interna da sociedade açoriana – também estudado por José Medeiros Ferreira numa obra colectiva recente (História dos Açores, Instituto Açoriano de Cultura, 2008, vol. ii, pp. 323-357) – teve como desfecho final a consagração constitucional (1976) da autonomia política e administrativa do arquipélago, cuja nova arquitectura institucional – Assembleia Legislativa, Presidência do Governo e respectivas secretarias – estabelece uma solução de compromisso entre a tradicional multipolaridade do arquipélago e o seu novo paradigma unitário, estruturado em torno do conceito de região autónoma. Enquanto parte integrante do Estado português, a Região Autónoma dos Açores passa a estar representada nas negociações internacionais que tenham repercussões no seu espaço insular e marítimo e, nessa medida, o arquipélago passa doravante a ser sujeito, e não apenas objecto, dos interesses externos que convergem sobre esta área do Atlântico.

Paralelamente às transformações ocorridas no arquipélago, o processo de integração europeia, em que entretanto esteve empenhada a política externa portuguesa, faria deslocar sobre a isóbare dos Açores a influência de uma massa de ar continental que, sem apagar a identidade atlântica das ilhas e a sua relação – por via da emigração, iniciada no século XIX – com o continente americano, lhes viria a atribuir o estatuto de Região Ultraperiférica da União Europeia, consagrado juridicamente no Tratado de Amesterdão (1997), e ao abrigo do qual se revigorou a importância estratégica do arquipélago e se abriram novas vias de desenvolvimento harmonioso para as suas diferentes parcelas insulares, conforme explica o autor no penúltimo capítulo da obra, intitulado «Os Açores na encruzilhada entre a América e a Europa» (pp. 133-144), e do qual destacamos esta recomendação final – «uma das novidades que a nova autonomia deveria cultivar seria a de dotar o arquipélago com meios próprios para o acompanhamento e prospecção da evolução da (sua) importância estratégica […] quer em termos nacionais quer em termos internacionais» (p. 144).

A percepção internacional do valor estratégico dos Açores como plataforma científica e tecnológica em múltiplos domínios – da biodiversidade ao aeroespacial, da oceanografia à climatologia, da vulcanologia às energias renováveis – é o objecto do último capítulo do livro (pp. 147-157), certamente dos mais interessantes, dada a sua actualidade e pendor prospectivo. Alguns desses domínios científicos, nomeadamente aqueles que há um século já tinham notabilizado os Açores como plataforma de eleição – a oceanografia e a meteorologia – conduziram ao desenvolvimento endógeno de centros de investigação e competência nestas áreas – veja-se o Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores – «os quais replicam, propõem e apresentam os seus pontos de vista sobre as questões europeias e internacionais» (p. 153), designadamente em matérias tão importantes como a política marítima europeia.

Um século passado sobre as campanhas de Alberto I do Mónaco, o arquipélago está hoje mais bem preparado para responder aos desafios científicos contidos na profundeza dos seus mares envolventes. Este avanço, fruto do trabalho humano e não dos desígnios geográficos, traduz bem a ideia, cara ao autor, de que «por muito que a geografia impere, é o espírito humano que a compreende e utiliza» (p. 157), princípio que igualmente se aplica a outro avanço ocorrido nestas últimas décadas, a autonomia regional, responsável pela construção de uma unidade política e administrativa que contraria o império da geografia e a tendência natural do arquipélago para a dispersão. Aquilo que para a maioria da opinião pública não passa de um dado adquirido – a coesão e unidade açoriana – representa uma conquista que este livro não se cansa de valorizar, nomeadamente nas suas prescientes linhas introdutórias (pp. 9-12), onde o autor começa por dizer que «A República Portuguesa entrou no século XXI com o bem precioso da unidade político-administrativa do arquipélago dos Açores» (p. 10), para depois nos advertir que esse bem precioso pode não ser «um dado adquirido tendo em conta a evolução mundial» (p. 11).

Efectivamente, a isóbare dos Açores, na qual convergem as influências continentais e marítimas da política internacional e onde se «decidirá a profundidade atlântica e espacial da União Europeia, e a resposta norte-americana a essa presença» (p. 12), não se reduz à imagem habitual do anticiclone no boletim meteorológico do nosso quotidiano. Razão mais do que suficiente para considerar, em jeito de conclusão, que Os Açores na Política Internacional, quer na sua perspectiva histórica, quer na sua dimensão prospectiva, é um livro cuja leitura se recomenda indiscriminadamente a açorianos e continentais. Aos primeiros, para que nele vejam reflectido o mundo, e não o seu campanário. Aos últimos, para que a opinião pública nacional compreenda que as ilhas açorianas – longe de serem um sorvedouro dos cofres do Estado – conferem a Portugal um valor acrescentado e profundidade oceânica dificilmente mensurável em dinheiro, seja qual for a isóbare da moeda padrão.

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