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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.32 Lisboa dez. 2011

 

Ruanda: entre a segurança e a liberdade

 

Teresa Nogueira Pinto

Mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa com a tese «Um Genocídio de Proximidade: Justiça, Poder e Sobrevivência no Ruanda». Em 2006 foi Visiting Researcher da Heritage Foundation, onde estudou as origens do movimento neoconservador americano. Desde 2010 é Junior Consultant para o Magrebe e África Lusófona na GAPORSUL SA.

 

RESUMO

Dezassete anos depois do genocídio, o Ruanda permanece um país dividido e refém da oposição entre hutus e tutsis, colonizados e colonizadores, carrascos e vítimas. Enquanto o Presidente Kagame e o FPR permanecerem no poder a instalação da democracia será adiada. Só um processo de reconciliação entre os ruandeses e a sua história, e uma renovação da forma como se vê e se faz política permitirá uma transição real – e segura – para a democracia.

Palavras-chave: Ruanda, genocídio, Paul Kagame, democracia

 

Rwanda: between security and freedom

ABSTRACT

Seventeen years after the genocide, Rwanda remains a divided country shaped by the opposition between Hutus and Tutsis, colonized and settlers, genocidaires and victims. As President Kagame and the RPF stand firmly in control of the country, democracy is delayed. Only a reconciliation process among Rwandese and their history, and the renewing of the policy making will allow a real transition to democracy.

Keywords: Rwanda, genocide, Paul Kagame, democracy

 

Um genocídio não é um acontecimento isolado. A sua história tende a ligar o passado, o presente e o futuro numa linha de causas e consequências que ultrapassam largamente os limites geográficos e temporais da eliminação física das vítimas. Em 1994, no Ruanda, 800 mil tutsis e hutus moderados foram massacrados por milícias, soldados, quadros administrativos e camponeses, num «genocídio de proximidade» planeado e organizado pela elite no poder. Findo o genocídio, o país das mil colinas estava destruído. Vítimas, carrascos e testemunhas deparavam-se com a necessidade de regressar à normalidade, mas o pesado legado da «solução final» punha em causa a reconciliação nacional e até a sobrevivência do país. É neste contexto que o governo da União Nacional, assente na figura do general Paul Kagame, assume o poder, compromete-se com a democracia e enfrenta os desafios não apenas de fazer justiça e promover a reconciliação mas também de reconstruir o país.

No entanto, mais de dezassete anos depois e apesar de um extraordinário processo de recuperação e crescimento económico, da aplicação de um modelo de justiça que constituiu um passo fundamental para o futuro do Ruanda e dos ruandeses e de um clima de relativa estabilidade e segurança, o governo da Frente Patriótica do Ruanda não conseguiu, ainda, a transição para uma democracia real. Pelo contrário, a política ruandesa continua marcada por processos eleitorais pouco livres e episódios de perseguição da oposição, num contexto em que os direitos políticos e as liberdades civis são recorrentemente limitados. Na verdade, apesar de um discurso oficial que condena o divisionismo sob o slogan «já não há hutus nem tutsis, apenas ruandeses», o genocídio que dividiu o Ruanda em vítimas e carrascos continua a determinar a forma como se faz política no país das mil colinas. O general Paul Kagame permanece no poder e tem adiado sucessivamente a transição para uma democracia real, justificando-se com velhos – ou talvez não tão velhos – fantasmas como as tendências negacionistas e revisionistas manifestadas por alguns ruandeses a partir do exterior, o regresso do Hutu Power, da violência e da instabilidade. Permanece por isso a questão: ter-se-ão os ruandeses reconciliado, não apenas entre si mas com a sua história, ou terão os últimos anos contribuído para um aprofundamento do conflito, mais histórico e político do que propriamente étnico, entre hutus e tutsis?

O objectico do presente artigo é o de, a partir da história do genocídio e do Ruanda pós-1994, tentar avaliar o impacto da «solução final» na política do país e a viabilidade de uma real transição à democracia no Ruanda.

 

ANTECEDENTES DO GENOCÍDIO: «AMIGO» E «INIMIGO» NA POLÍTICA RUANDESA

O genocídio no Ruanda é o resultado de um processo político, social e cultural que acompanha a história do país desde o período colonial. A política colonial belga – uma política de divide and rule – assentou num domínio indirecto, realizado através da apropriação das estruturas de poder preexistentes e do favorecimento da minoria tutsi, à qual é atribuído um papel de mediação no governo do país, com base na sua alegada superioridade racial. Este período vem cristalizar a ideia dos tutsis como povo invasor e opressor, cujo objectivo seria o domínio do país e da maioria hutu1.

No período a seguir à independência, a partir de 1961, o Ruanda – longe de se transformar numa democracia real – vê o poder concentrar-se nas mãos de uma minoria cooptada entre a comunidade hutu, que governa de acordo com uma política em que «amigo» e «inimigo» são definidos de acordo com critérios étnicos (hutus vs tutsis) e regionais (Norte vs Sul). Em 1973, na sequência de um golpe de Estado, Juvénal Habyarimana torna-se Presidente e suprime toda a actividade política, concentrando o poder em si e na sua entourage. Em 1975, o Presidente cria o Movimento Revolucionário Nacional para o Desenvolvimento (MRND), um partido muito semelhante, em matéria programática e doutrinal, ao Movimento Popular da Revolução do Zaire, de Mobutu2. O MRND apresentava traços de partido totalitário: a militância era imposta à grande maioria da população e todos os chefes e quadros administrativos tinham de ser membros do partido, que tinha células em todas as colinas. Em cada célula eram distribuídos trabalhos comunitários (umuganda) e realizavam-se cerimónias de demonstração de lealdade ao partido (as animation). O MRND controlava ainda os média e todas as associações civis. Este período é de continuidade relativamente às épocas anteriores: o Estado mantinha-se forte e autoritário, dirigindo a sociedade, e o poder político assegurava com pulso firme a lealdade e obediência dos cidadãos nas colinas. A partir de 1990, com o início da guerra civil que opunha os exilados tutsis representados pela Frente Patriótica do Ruanda (FPR) e «sediados» no Uganda ao poder em Kigali, e perante o intensificar das pressões internacionais no sentido de uma partilha de poder com a FPR, os extremistas ruandeses vão acelerar o caminho para a «solução final»3.

O que vai mudando, na história ruandesa, é a distribuição do poder político entre os dois grupos, mas nunca os pressupostos subjacentes a essa distribuição de poder. A política, antes e depois de 1959, mantém as mesmas bases de diferenciação entre hutus e tutsis, às quais atribui a mesma relevância. E é esta dicotomia hutus vs tutsis que vai definir, em política, as categorias de «amigo» e «inimigo». Ou seja, a política é feita ao longo das linhas étnicas. Aquilo que se alterara em 1959 são as categorias de «dominador» e «dominado», num cenário em que a minoria tutsi, depois da independência, passa a ser dominada pela maioria hutu, que assume o poder.

Apesar das diferenças físicas entre hutus e tutsis, a distinção mais relevante entre os dois grupos começa por ser ocupacional, adquirindo depois uma dimensão política que é mais tarde justificada e reforçada pelo poder colonial belga, que vem cristalizar essas diferenças também ao nível administrativo e social4. Mas é importante sublinhar que hutus, tutsis e twas formam um mesmo povo: dividem o mesmo território há mais de dois mil anos, onde se misturam pelas várias colinas, e têm partilhado há séculos o mesmo idioma – o kinyaruanda –, as mesmas crenças, religião e uma cultura comum, resultante da mistura de hábitos e tradições, em que se distinguem a música, a dança, a poesia e retórica e a celebração dos mesmos heróis5.

 

A HISTÓRIA DE UM ESTADO FORTE

A história do Ruanda nos períodos pré-colonial e colonial, e as várias interpretações que suscitou, teve um papel fundamental não apenas na justificação do genocídio, mas também no processo de mobilização da população. Um aspecto determinante dessa história é o facto de o Ruanda ser um Estado forte e centralizado, apresentando uma história que é mais de continuidade e reverência ao poder instituído, do que de revoltas e rebeliões. A hierarquia do sistema político e administrativo, que era já característica da monarquia, é o elemento que une o poder máximo e central – primeiro, o Mwami e, depois, o Presidente – aos cidadãos nas colinas.

Os elevadíssimos níveis de adesão popular ao projecto de extermínio dos tutsis no Ruanda devem assim ser também analisados à luz da força do Estado, e da sua quase omnipresença na vida dos ruandeses. O Ruanda é um pequeno país densamente povoado, dividido geograficamente numa série de colinas. Estes factores contribuíram para uma interacção social intensa entre os seus habitantes, mobilizados em torno dos chefes locais e habituados a manifestações de obediência e lealdade constantes, aos trabalhos comunitários obrigatórios e às mais recentes sessões de animation, em que declaravam publicamente a sua lealdade ao MRND, e ao «pai» dos ruandeses, Habyarimana6. Assim, no momento em que a ordem inequívoca do poder em Kigali foi a da eliminação de todos os tutsis, tornava-se difícil resistir. Este processo de mobilização para o genocídio assentou em três pilares: a força coerciva do Estado, o aparelho administrativo e a propaganda.

A história ruandesa, desde os tempos coloniais, vem criar e reforçar continuamente dois aspectos que seriam determinantes para o genocídio de 1994: a rivalidade entre hutus e tutsis, agricultores e pastores, colonizados e colonizadores, e uma forte cultura de obediência às autoridades associada, no período depois da independência, a um sentimento de impunidade – suscitado a partir de cima – em relação à destruição da vida e propriedade dos tutsis. A «solução final» chegaria em Abril de 1994, logo após a morte do Presidente Habyarimana.

 

UM GENOCÍDIO DE PROXIMIDADE: MOBILIZAÇÃO E MOTIVAÇÕES

A característica mais singular, e mais perturbadora, do genocídio ruandês foi ter sido um genocídio de proximidade. Entre Abril e Julho de 1994, o país dividiu-se de facto entre carrascos, vítimas e testemunhas. Foi um período em que professores mataram alunos, médicos mataram pacientes, padres mataram fiéis, irmãos mataram irmãos. As actividades do quotidiano ficaram suspensas e o país transformou-se num gigantesco campo de morte a céu aberto, num cenário em que a morte violenta, as pilhagens e violações se tornaram absolutamente banais, como se de uma extensão dos trabalhos do campo se tratasse.

A resposta sobre as motivações que levaram tantos a matar, torturar, violar e roubar os seus vizinhos é uma resposta tão complexa quanto fundamental para perceber não apenas o passado, mas também o presente e o futuro do Ruanda, e que deve ter em conta um conjunto de factores. Por um lado, há a relevância do passado histórico, instrumentalizado pelos extremistas, e que contribui para a ideia da minoria tutsi como povo invasor e opressor da maioria hutu. Por outro, devemos ter em conta aspectos «culturalistas», que apontam para uma tradição de obediência enraizada na história ruandesa, associada a um Estado forte, estruturado e omnipresente, e onde praticamente não existem registos de rebelião ou revolta contra o poder instituído. Foram também importantes, na adesão dos camponeses hutus ao genocídio, considerações de segurança, num contexto em que o inimigo militar do país, a FPR, se confundia com os cidadãos tutsis, seus vizinhos de colina. Importa ainda considerar as motivações materiais associadas a uma situação de enorme pressão demográfica: a terra – sua escassez e vulnerabilidade – era, e continua a ser, uma questão fundamental da economia ruandesa, que atingia directamente 90 por cento da população. Esta questão não pode ser ignorada quando analisamos o genocídio. Por outro lado, num contexto de grande pobreza, os ganhos materiais e de estatuto associados à participação nas matanças constituíam, para muitos camponeses, um fortíssimo incentivo7.

Mas para entender o passado e o presente do Ruanda é também importante perceber quem foram os responsáveis pelo genocídio. A necessária distinção entre aqueles que foram os planeadores e aqueles que actuaram como executores revela-nos, de um lado, uma elite no poder ligada ao Governo, às alas extremistas dos partidos, às Forças Armadas do Ruanda (FAR) e aos meios de comunicação; do outro, uma massa imensa de camponeses hutus, afastados do poder e espalhados pelas colinas. Os agentes de ligação entre a elite no poder e os camponeses foram os quadros médios do Exército e da administração pública, peças fundamentais no processo de organização dos massacres. Vemos assim que, apesar da sua aparente falta de lógica, a tentativa de extermínio dos tutsis e hutus moderados não correspondeu a uma manifestação irracional de ódio popular, nem a um plano secreto executado apenas por uma elite instalada no poder. Aquilo que tornou o genocídio possível – e singular – foi a concertação entre uma elite no poder, os quadros médios da administração pública e a população hutus, que aderiu às matanças motivada ou pressionada por um conjunto de factores.

 

O IMPERATIVO DA RECONCILIAÇÃO NACIONAL PARA O FUTURO POLÍTICO DO RUANDA

A 4 de Julho de 1994 a FPR conquistou Kigali sem grandes dificuldades8. Terminava assim, oficialmente, o genocídio, com a queda do Governo interino, cujos membros haviam já abandonado o Ruanda, e a fuga de cerca de dois milhões de hutus, executores e testemunhas dos massacres, num episódio que se registou como o maior fluxo de refugiados na história moderna9. O país estava irreconhecível, e as consequências do genocídio eram evidentes: as infra-estruturas básicas estavam destruídas, faltava água, electricidade e as latrinas estavam cheias de corpos mutilados. Os sobreviventes deambulavam, como fantasmas, pelas ruínas das suas casas.

É neste contexto que a FPR, única entidade a fazer cumprir a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, constitui o Governo de Transição da União Nacional que obedece, pelo menos do ponto de vista formal, aos Acordos de Arusha10. Apesar de a sua intervenção ocorrer num contexto de guerra civil, a verdade é que se tratou da única força a combater de facto o regime genocída, o que lhe iria garantir um enorme crédito moral11. O líder da FPR – Paul Kagame – tornar-se-ia, na sequência da tomada de posse do novo governo, vice-presidente, ministro da Defesa e chefe das Forças Armadas. Através do controlo destas posições, e na qualidade de líder da FPR, o carismático Kagame assumia, na prática, o comando do país12.

O novo governo da União Nacional tinha três objectivos principais: a reconciliação nacional, a justiça e a redução da pobreza. O grande princípio orientador da política de reconciliação nacional era acabar com o divisionismo: no Ruanda, já não existiam hutus, tutsis ou twas, apenas ruandeses. Em nome da construção de um «novo Ruanda» as referências públicas aos grupos étnicos são proibidas, e o termo «raça» é banido dos discursos oficiais13. Mas, na verdade, estes objectivos teriam sempre implícitas as ameaças e os fantasmas da história ruandesa e do genocídio: a tradição de um Estado forte apoiado no poder das armas; a «cultura de impunidade»; o elevado número de vítimas e agressores no genocídio; o papel protagonista assumido pelas elites políticas, militares e culturais na sua organização, e aquele que é talvez o maior desafio para a liderança ruandesa – o imperativo de «acomodar» uma maioria hutu e uma minoria tutsi, sempre ameaçado por uma política em que amigo e inimigo se definem a partir das categorias étnicas.

Quanto ao processo de justiça, cedo se torna evidente a necessidade de arranjar métodos alternativos. Estes métodos acabariam por constituir «a resposta ruandesa» ao genocídio, que combina princípios jurídicos clássicos importados da tradição ocidental e modelos tradicionais de resolução de conflitos. O processo de transição do modelo de justiça convencional, de tradição ocidental, para uma resposta mista que alia os princípios convencionais a fórmulas alternativas de justiça e resolução de conflitos surge a partir de duas necessidades: a primeira, de natureza utilitária, era aliviar o sistema de justiça ruandês; a segunda, de natureza política, era a de conciliar a necessidade de fazer justiça com os imperativos da reconciliação nacional através de um modelo que simultaneamente correspondesse aos direitos das vítimas de verem os seus agressores punidos e o seu sofrimento reconhecido, e permitisse aos agressores – que constituíam uma parte significativa da população – a reintegração na sociedade14.

O equilíbrio entre estes dois imperativos – justiça e reconciliação nacional – não era fácil. Se é verdade que a justiça era condição fundamental para que os ruandeses se reconciliassem, também era verdade que um modelo de justiça que não tivesse em conta as dificuldades que resultam do facto de grande parte da população ter estado envolvida no genocídio e mesmo assim ter de ser reintegrada, poderia pôr em causa não apenas a reconciliação entre os ruandeses, mas a própria sobrevivência política e económica do país. O Ruanda era então uma «sociedade dualista pós-genocídio», segundo a classificação de Mark A. Drumbl, apresentando uma geografia social em que após um genocídio marcado pela mobilização em massa da população hutu ambos os grupos – o das vítimas e o dos agressores – coexistem num mesmo território superpovoado e cuja divisão não é possível, vivem nas mesmas comunidades e participam da mesma «sociedade civil». E em que os tutsis – numericamente inferiores – controlam o poder15. A classificação proposta por Drumbl seria uma chave fundamental para entender o Ruanda, dezassete anos depois.

 

ENTENDER O PODER NO RUANDA PÓS-GENOCÍDIO

Apesar dos sinais que apontavam, no período pós-genocídio, para um crescente autoritarismo político, cujo símbolo era a FPR e o seu grande mentor, o general Paul Kagame, o novo governo tinha dois excelentes trunfos: o primeiro, sob a forma de álibi, era o facto de, formalmente, terem-se cumprido os Acordos de Arusha; o segundo era o facto de a FPR ter sido a única força de salvação do Ruanda em 1994, agora com a dura missão de (re)construir um país devastado. Mas o «novo Ruanda» apresentava perturbadoras semelhanças com o «velho Ruanda»: um regime autoritário e militarizado que neutraliza os seus adversários, num cenário de crescente degradação dos direitos políticos e liberdades civis dos cidadãos16.

Para alcançar o objectivo da reconciliação nacional, o novo governo iria criar e aprovar uma série de leis destinadas a acabar com o divisionismo e combater a «ideologia do genocídio», que seriam muitas vezes utilizadas para afastar e neutralizar qualquer oposição indesejada, considerada «divisionista». Em nome da União Nacional, eram restringidas as liberdades políticas e civis dos ruandeses17. Em 2011, segundo a Freedom House, o Ruanda é ainda um país «não livre», uma classificação reforçada pelos meses que antecederam as eleições de Agosto de 2010, durante os quais ocorreu uma série de episódios de violência, intimidação, detenções e restrições à liberdade de imprensa. Nesse período, três candidatos de partidos da oposição foram impedidos de se registar para as eleições; dois jornais independentes foram retirados de circulação e cerca de trinta jornais e estações de rádio foram suspensos pelo Alto-Conselho para a Comunicação Social; o Governo colocou uma série de obstáculos formais à presença de elementos de organizações não governamentais; alguns críticos do regime foram assassinados; foi emitido um mandato de captura contra Paul Russessabagina – o héroi de Hotel Ruanda –, acusado de prestar apoio à Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR), ligada a elementos do Hutu Power no exílio18. Na corrida presidencial havia quatro candidatos: o Presidente Paul Kagame; Jean Damascène Ntawukuriryayo do Partido Social-Democrata; Prosper Higiro, do Partido Liberal; e Alivera Mukabaramba, do Partido do Progresso e da Concórdia. Paul Kagame vence as eleições com 93 por cento dos votos. Na realidade, nenhum dos adversários constituiu uma ameaça real, uma vez que representavam forças partidárias que apoiam a FPR, funcionando como «partidos-satélite».

No entanto, o episódio que melhor reflecte a natureza e condicionantes da política e do poder no Ruanda pós-genocídio é o da prisão de Victoire Ingabire, líder das Forças Democráticas Unificadas (FDU), um partido composto maioritariamente por hutus exilados que não tem reconhecimento oficial no Ruanda e opera a partir dos Países Baixos, conduzindo uma política de «resistência activa contra a ditadura militar e sectária instalada no Ruanda, com o objectivo de criar um Estado de direito […] de acordo com os standards democráticos internacionais»19. Depois de dezasseis anos no exílio, Ingabire, considerada pelos seus apoiantes como a versão feminina de Nelson Mandela, regressa ao Ruanda em Janeiro de 2010 e apresenta-se como candidata às eleições presidenciais. A 21 de Abril é detida, acusada de ideologia genocída, divisionismo e colaboração com grupos terroristas, no caso, as Forças Democráticas de Libertação do Ruanda, movimento militar – e político – associado ao Hutu Power e instalado na República Democrática do Congo20. A sua detenção representa o fantasma que hoje assombra os detentores do poder no Ruanda: a hipótese de uma nova inversão de papéis entre tutsis e hutus. Isto porque a lógica continua a ser a de «nós ou eles», alimentada pela ideia de que a subida ao poder de um partido de inspiração hutu ou até não tutsi, poderia significar, na melhor das hipóteses, a necessidade de abandonar o poder e, na pior, o regresso à barbárie de 1994. Assim, por causa da suspeição, em nome da prevenção e da unidade de todos os ruandeses, não parece haver espaço, no Ruanda pós-genocídio, para uma pluralidade de partidos e propostas políticas.

Segundo Mahmoud Mamdani, existem três ideias-chave ou convicções dominantes sobre o poder no Ruanda pós-genocídio: a primeira é um sentido de responsabilidade moral pela sobrevivência de todos os tutsis, a nível global e não apenas no país, o que se reflecte numa noção de identidade e poder que assenta na tribo e na diáspora e não na territorialidade; a segunda é que o poder tutsi é a condição mínima para a sua sobrevivência, ou seja, os tutsis só estarão protegidos se controlarem o Estado onde habitam; por fim, a ideia de que a única paz possível entre hutus e tutsis é uma paz armada21. Estes princípios têm resultado na tentativa, por parte da FPR, de instituir uma «etnocracia tutsi», através de uma «tutsificação das estruturas do poder», em que a autoridade dos elementos hutu é meramente nominal. Esta tentativa torna-se evidente quando olhamos para as hierarquias políticas e militares, dominadas maioritariamente por membros da FPR, retornados e tutsis22.

Mas apesar dos aparentes esforços em acabar com o «divisionismo», o novo governo veio reforçar as divisões entre os dois grupos. Como podemos ver pela história ruandesa, o que determinou os episódios de conflito e violência não foram as diferenças reais entre hutus e tutsis, mas sim o significado político que estas foram assumindo. Ao optar por um regime autoritário, o novo governo, inevitavelmente associado ao «poder tutsi», vem perpetuar a distinção entre os dois grupos, uma vez que é a política, enquanto relação e distribuição do poder, e não a etnia, a cultura ou o aspecto físico o que determina a divisão entre hutus e tutsis. A prisão de Ingabire mostra que, no Ruanda, a política – enquanto definição de «amigo» e «inimigo» – ainda se faz ao longo das linhas étnicas, agora apoiada não nas categorias de dominado/dominador mas sim de vítima/carrasco.

O Ruanda, democracia formal desde 1961, nunca conseguiu transitar para a democracia real. A política e o poder estiveram sempre reféns da simbologia das categorias étnicas e do (des)equilíbrio entre a maioria hutu e a minoria tutsi, que foi dramaticamente reforçado pelo genocídio. Mas o perigo agora é o de uma nova «cultura de impunidade», assente numa instrumentalização – pela FPR e sua identificação implícita com todos os tutsis – do estatuto de vítima e dos imperativos da reconciliação nacional e da estabilidade, que tudo justificam23.

 

PAUL KAGAME E O NOVO RUANDA

O general Paul Kagame tem outros trunfos, além do estatuto de vítima, que lhe garantem a simpatia e admiração de doadores e de alguns observadores internacionais e que resultam do seu empenho na reconstrução do país, seguindo os imperativos que ele próprio traçou: justiça, reconciliação nacional e crescimento económico.

Em Julho de 1994, quando a FPR chega ao poder, os cofres do Estado estavam vazios, os principais edíficios da administração destruídos, e faltava mesmo o material mais básico – como folhas de papel. O Ruanda era então, de acordo com o Banco Mundial, o segundo país mais pobre do mundo: o PIB, no espaço de um ano, diminuíra em 50 por cento e a taxa de inflação rondava os 40 por cento. Dezasseis anos depois, o Banco Mundial reconhe o «impressionante desenvolvimento do país» desde 1994, e coloca-o entre «os mais estáveis» do continente. O Governo ruandês tem levado a cabo uma série de reformas de fundo, que têm contribuído para o crescimento da economia através dos estímulos ao sector privado e da captação de investimento estrangeiro, traduzindo-se numa real melhoria das condições de vida da população. É cada vez mais realista a ambição de Kagame de que o Ruanda venha a ser, em 2020, um país de rendimento médio24. Esta combinação de autoritarismo político e desenvolvimento económico não é inédita, e faz-nos lembrar outros líderes e outros estados, como a Malásia de Mohammas Mahatir ou a Singapura de Lee Kwan Yew que serão, num certo sentido, um modelo a seguir para Kagame25.

Mas o autoritarismo de Kagame tem na história recente do país a sua melhor justificação. É verdade que o general e a sua entourage não estão dispostos a abandonar o poder, por razões que ultrapassam a concretização dos objectivos a que se propuseram e a necessidade de assegurar a segurança e estabilidade dos ruandeses, em particular dos tutsis. Em causa, para alguns elementos da FPR – e para o próprio Presidente – está também a hipótese de serem alvo de mandatos de captura internacionais por homicídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. No entanto, é inegável que os fantasmas que assombram o Ruanda existem para além da imaginação de Paul Kagame. Muitos dos implicados no genocídio de 1994, agora refugiados nos países vizinhos, na Europa ou nos Estados Unidos, concentram esforços numa tentativa de regressar ao Ruanda e ao poder: se for esse o caso, nada garante que não se repita a tragédia de 1994. É importante recordar que nos anos que antecederam o genocídio, apesar de o Ruanda não ser um país livre, criou-se uma certa abertura política que resultou no aparecimento de uma série de partidos, associações e movimentos, muitos deles associados ao Hutu Power e que tiveram um papel determinante na organização, mobilização e execução do genocídio. Ou seja, também a pluralidade partidária, no Ruanda, está inevitavelmente associada às matanças. Mas a favor do autoritarismo, Kagame tem outro argumento a acrescentar: só ele é responsável pela segurança dos ruandeses uma vez que se a história se repetir ninguém garante que, tal como em 1994, a «comunidade internacional» nada faça, actuando mais uma vez como testemunha acanhada da tragédia.

Por isso, olhando para o «novo Ruanda», para os seus sucessos e os seus fantasmas, encontramos atenuantes para esta política de restrição dos direitos políticos e das liberdades civis. Isto porque a política ruandesa parece estar permanentemente entre a espada e a parede: entre um modelo autoritário e repressivo de direitos políticos e liberdades civis, e a hipótese do caos e do regresso da barbárie, que poderia custar a estabilidade do país, a segurança e até a vida de milhares de ruandeses. Mas esta constatação levanta uma questão tão importante quanto perigosa: poderão os ruandeses viver simultaneamente em liberdade e em segurança?

Não será possível responder a esta questão enquanto o general Kagame continuar no poder o que – à partida – deverá acontecer até 2017. A sucessão de Kagame será a grande prova de fogo para os ruandeses e só poderá significar uma transição para a democracia real, garantindo a paz e a estabilidade, se os ruandeses se tiverem – de facto – reconciliado e «esvaziado», de conteúdo e de sentido, as categorias de «tutsi» e «hutu».

 

CONCLUSÃO

Em 1957, um grupo de nove intelectuais hutu decidiu escrever um manifesto denunciando o monopólio político e económico dos tutsis. Nesse manifesto, os signatários expressam a sua oposição à retirada dos cartões de identidade à referência ao grupo «étnico», alegando que tal supressão «preveniria a lei estatística de estabelecer a realidade dos factos»26. Passados mais de cinquenta anos e depois de um genocídio que resultou na morte de 800 mil tutsis e hutus moderados, a realidade mantém-se: no Ruanda, onde a minoria tutsi e a maioria hutu são forçadas a conviver, «amigo» e «inimigo» ainda se definem a partir das categorias étnicas, num contexto em que uma minoria tutsi e uma maioria hutu coabitam num país pequeno com recursos limitados. Mas a diferença entre «tutsis» e «hutus», que começa por ser ocupacional, foi adquirindo significados políticos, de dominado e dominador e depois de vítima e carrasco.

Por isso as críticas apontadas ao novo governo não podem ignorar a necessária abordagem realista dos factos. Num país que nunca conheceu a democracia real, com um forte historial de violência e autoritarismo político, que ainda recupera de um genocídio cuja mobilização e crueldade atingiram níveis extraordinários, e onde vítimas e agressores são forçados a conviver diariamente num espaço limitado e partilhar recursos que são escassos, implementar um regime que seja verdadeiramente democrático é tarefa, no mínimo, complicada. O processo de transição não pode ser de ruptura, mas sim de lenta e gradual transformação, num longo caminho que está repleto de fantasmas e perigos reais. A renovação na forma como se faz e se entende a política ruandesa será condição fundamental para uma verdadeira reconciliação. Mas a reconciliação necessária não é apenas entre tutsis e hutus, entre vítimas e agressores, mas também – e talvez sobretudo – entre os ruandeses e a sua história.

 

NOTAS

1 Para uma análise bastante completa da problemática entre hutus e tutsis nos períodos colonial e pré-colonial é interessante ver, entre outros, CHRÉTIEN, Jean-Pierre – «Hutu et Tutsi au Rwanda et au Burundi». In AMSELLE, Jean-Loup, e M’BOKOLO, Elikia (ed.) – Au coeur de l’ethnie: Ethnies, tribalisme et état en Afrique. 1.ª edição. Paris: La Découverte, 1985,         [ Links ] e, do mesmo autor, The Great Lakes of Africa – Two Thousand Years of History. 1.ª edição. Brooklin: Zone Books, 2003. Para abordagens mais sintetizadas, mas igualmente esclarecedoras, veja-se, por exemplo, BRAECKMAN, Colette – Rwanda – Histoire d’un génocide. Paris: Fayard, 1994, pp. 21-52,         [ Links ] e Prunier, Gérard – The Rwanda Crisis – History of a Genocide. 1.ª edição. Nova York: Columbia University Press, 1994, pp. 1-40.         [ Links ]

2 Para uma abordagem da génese e evolução destes partidos cf. LONGMAN, Timothy – «State, civil society, and genocide in Rwanda». In JOSEPH, Richard – State, Conflict, and Democracy in Africa. 1.ª edição. Boulder: Lynne Rienner Publishers, 1999, pp. 339-359.         [ Links ]

3 A guerra civil, que terminaria em Julho de 1994, foi inicialmente um conflito de baixa intensidade. A FPR, que apostava numa típica guerra de guerrilha, realizando raids curtos a partir da fronteira com o Uganda, apresentava como principais exigências o regresso dos refugiados ao país e a transição para um regime democrático, o que pressupunha uma partilha do poder. A questão dos refugiados era problemática do ponto de vista político: sucessivas vagas de ruandeses, na sua grande maioria tutsis, abandonaram o país no período pós-independência, sobretudo em 1959-1964 e depois em 1970-1973. Gérard Prunier estima que o número de refugiados – «pessoas que abandonaram o Ruanda por causa da perseguição política» – se situe entre 600 mil e 700 mil (Prunier, Gérard – The Rwanda Crisis – History of a Genocide, pp. 62-63).         [ Links ]

4 Cf. CHRÉTIEN, Jean-Pierre – The Great Lakes of Africa – Two Thousand Years of History, 1.ª edição. Brooklin: Zone Books, 2003, pp. 77-79.         [ Links ] Apesar deste movimento de conquista, a distinção entre os diferentes grupos era sobretudo ocupacional e estava na origem de uma diferenciação política e social entre hutus e tutsis, ao traduzir-se em diferentes formas de clientelismo. Muitos tutsis dedicavam-se à pastorícia e eram ricos em gado, já os hutus, dedicavam-se à agricultura. Quando o poder se centraliza no Ruanda, no século XVII, o gado era considerado um valor superior aos terrenos cultiváveis. O poder das elites na região era medido com base no número de súbditos, mas o número de súbditos dependia directamente da fortuna de que se dispunha, medida pelo número de cabeças de gado, o que se traduzia, para os tutsis, numa vantagem não apenas económica e social, mas também política.

5 Cf. DESFORGES, Alison – Leave None to Tell the Story – Genocide in Rwanda. Human Rights Watch, Março de 1999, p. 32. [Consultado em: 10 de Janeiro de 2011]. Disponível em: http://www.grandslacs.net/doc/1317.pdf.         [ Links ]

6 Cf. PRUNIER, Gérard, The Rwanda Crisis – History of a Genocide, p. 245: «         [ Links ]But we have to realize that this is a society where two factors combine to make orders hard to resist. The first is a strong state authoritarian tradition going back to the roots of Rwandese culture. The Tutsi abami were definitely not constitutional monarchs, and killing was even an accepted sign of their political health […]. The second is an equally strong acceptance of group identification. In Rwanda, as elsewhere, a man is judged by his character, but in Rwandese culture he does not stand alone but is part of a family, a lineage, and a clan, the dweller on a certain hill.»

7 O Ruanda tem uma área total de 26 mil quilómetros quadrados, mais ou menos o tamanho da Bélgica ou do País de Gales. Um dos países do continente africano mais pequenos em território, e com uma população de cerca de sete milhões de habitantes, o Ruanda era, antes do genocídio de 1994, o maior em densidade populacional (271 pessoas por quilómetro quadrado). No entanto, os dados mais relevantes para o presente argumento referem-se à relação entre o número de habitantes e a área de terra cultivável, o que equivale a uma média de 422 habitantes por quilómetro quadrado. Numa economia rural, em que 90 por cento da população retira o seu sustento da terra, estes valores indicam uma enorme pressão demográfica. Cf. WALLER, David – Rwanda – Which Way Now?. 1.ª edição. Londres: Oxfam Professional, 1993, p. 22: «         [ Links ]In Rwanda, land belongs to the State. In towns, where it is surveyed and registered, people can acquire the right of ownership. In rural areas, individuals only have the right to use land, not to own it. The State can reclaim the land for its own use, without compensation for the loss. […] The inheritance laws, which divide a family’s land among all the remaining sons, ensures that, as the population increases, not only does the size of holdings fall, but they are increasingly fragmented into small plots, scattered over a wide area.»

8 A FPR tinha sido formada em 1987 por tutsis refugiados no Uganda, mas a sua popularidade estendia-se a muitos tutsis na diáspora, noutros países e continentes. A sua génese fora o movimento da Aliança Ruandesa para a Unidade Nacional (ARUN), um movimento que ganhara expressão quando refugiados tutsis se aliaram a Yoweri Museveni na guerra civil contra Milton Obote. O «braço» militar da FPR foi treinado e comandado por Paul Kagame, actual Presidente do Ruanda e Fred Rwigema, que acabaria por morrer no primeiro ataque da FPR ao Ruanda, em Outubro de 1991. Sobre a FPR e o seu papel de destaque na história ruandesa durante os anos 1990 será interessante ver WAUGH, Colin M. – Paul Kagame and Rwanda: Power, Genocide and the Rwandan Patriotic Front. 2.ª edição. Nova York: Jefferson, NC: McFarland & Company, Inc., 2004.         [ Links ]

9 Sobre este fluxo de refugiados e para uma excelente (e dura) abordagem sobre o papel do Governo ruandês da União Nacional no conflito dos Grandes Lagos é interessante a visão de Gérard Prunier, em Africa’s World War: Congo, the Rwandan Genocide, and the Making of a Continental Catastrophe. 1.ª edição. Oxford: Oxford University Press, 2008,         [ Links ] e ainda o relatório do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – O Genocídio no Ruanda e as Suas Repercussões. [Consultado em: 30 de Novembro de 2010]. Versão portuguesa disponível em: http://www.cidadevirtual.pt/acnur/sowr2000/index.html.         [ Links ]

10 Os Acordos de Arusha, assinados antes do genocídio, previam um cessar-fogo entre a FPR e o regime em Kigali e uma partilha real de poder, através da formação de um governo de coligação entre a FPR e os partidos com assento parlamentar. Sobre o cumprimento formal dos Acordos de Arusha veja-se as palavras do major Frank Rusagara, relações públicas da FPR, «The role of the Rwandan Patriotic Front». In BERRY, John A., e BERRY, Carol Pott – Genocide in Rwanda – A Collective Memory. Washington DC: Howard University Press, 1999, pp. 156-157: «         [ Links ]Before the genocide, the RPF was formed to address the political problems of the country. We are nonpartisan, unlike some of the other political parties. We are an organization for all Rwandans, with the goal of removing ethnic barriers in Rwandan society. Before the genocide, the rpf was party to a peace agreement that was brokered by the international community, the Arusha Peace Accords. We have remained faithful to that accord in both letter and spirit. We have formed a broad-based transitional Government, a transitional national assembly; we have created democratic institutions, formed a national army and complied with other provisions of the accord».

11 Na verdade, há um terceiro elemento responsável – ainda que indirectamente – pelo genocídio de 1994. No fim do século XX, depois de Auschwitz e de Lemkin, de Nuremberga e da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, depois da euforia humanitária do início da década de 1990 e da promessa de «nunca mais», a «comunidade internacional» iria falhar, enquanto testemunha da tragédia num «país à porta fechada». Sobre a (não) intervenção da «comunidade internacional» na tragédia ruandesa será interessante ver, entre outros, DALLAIRE, Roméo – Shake Hands with the Devil – The Failure of Humanity in Rwanda. Nova York: Caroll & Graff Publishers, 2003;         [ Links ] KULMAN, Alan J. – The Limits of Humanitarian Intervention: Genocide in Rwanda. Washington DC: Brookings Institution Press, 2001;         [ Links ] POWER, Samantha – «A Problem from Hell» – America and the Age of Genocide. Nova York: Harper Perennial, 2007,         [ Links ] e BARNETT, Michael – Eyewitness to Genocide: The United Nations and Rwanda. Nova York: Cornell University Press, 2003.         [ Links ]

12 Sobre Paul Kagame e o seu projecto para um «novo Ruanda» cf. KINZER, Stephen – A Thousand Hills, Rwanda’s Rebirth and the Man who Dreamed it. 1.ª edição. Nova Jersey: John Wiley & Sons Inc., 2008.         [ Links ]

13 Um dos instrumentos fundamentais desta política seria a Comissão para a União e Reconciliação Nacional, fundada em Março de 1999. A justificação oficial para a sua criação eram os «longos períodos de má governação, caracterizados por divisões, discriminações, abuso dos direitos humanos e actos de violência». O novo Governo cria assim a Comissão, «responsabilizada por utilizar todos os meios disponíveis para mobilizar e sensibilizar todos os ruandeses para esta nobre tarefa». Cf. o sítio oficial da Comissão para a Reconciliação e União Nacional [Consultado em: 30 de Novembro de 2010] Disponível em: http://www.nurc.gov.rw/index.php?option=com_content&view=article&id=73&Itemid=58.

14 As gacaca, ou «justiça na relva», não eram um modelo novo. Desde o século XVI que existiam, enquanto sistema de resolução de disputas menores como o uso da terra, o gado ou as questões de propriedade. O seu objectivo não se esgotava na punição, mas visava sobretudo a coesão social, através do intenso diálogo entre as partes e perante a comunidade. A versão moderna das gacaca surge assim como núcleo central da resposta ao genocídio, enquanto método de justiça transitória e alternativa, capaz de envolver as comunidades e assente em três princípios fundamentais: a categorização das pessoas que haviam cometido crimes no âmbito do genocídio; uma participação alargada das comunidades nos julgamentos e, por fim, a tentativa de criar, entre os culpados, um sentimento de arrependimento. Para uma síntese sobre as gacaca no modelo de justiça pós-genocídio será interessante ver HARREL, Peter E. – Rwanda’s Gamble – Gacaca and a New Model of Transitional Justice. Nova York: Writers Club Press, 2003.         [ Links ]

15 Mark A. Drumbl defende que o que deve determinar os modelos de justiça é a «geografia social» das sociedades pós-genocídio, caracterizáveis através da análise do controlo do poder político e económico (em relação ao equilíbrio numérico dos grupos), os níveis de participação na violência e a distribuição geográfica dos dois grupos. Segundo o esquema de classificação proposto por Drumbl, o Ruanda é uma «sociedade dualista pós-genocídio». Cf. DRUMBL, Mark A. – «Punishment, postgenocide: from guilt to shame to civis in Rwanda». In New York University Law Review. Vol. 75, N.º 1221, Outubro de 2000, pp. 1221-1326. [Consultado em: 10 de Dezembro de 2010]. Disponível em: http://www1.law.nyu.edu/journals/lawreview/issues/vol75/no5/nyu503.pdf , pp. 1221-1326.         [ Links ]

16 Cf. PRUNIER, Gérard, The Rwanda Crisis – History of a Genocide, p. 369: «         [ Links ]The new Rwandese regime is a bizarre construction. Outwardly it still fits within the tattered remnants of the Arusha agreement. A majority of ministers are Hutu. There is no proclaimed theory of ethnic exclusivity […] But the whole thing is largely a make-believe exercise. First of all because, as in many authoritarian governments, there are two channels of authority: one is the official administrative structure […]; the other is the RPF network, both civilian and military, which […] makes up an unofficial government of the shadows.»

17 A 18 de Dezembro de 2001 entra em vigor uma lei para a prevenção, eliminação e punição dos crimes de discriminação e sectarismo. A definição de «sectarismo», no artigo 1.º, n.º 2, é particularmente vaga: «Sectarismo significa o uso de qualquer discurso, declaração escrita ou acção que possa resultar em conflitos entre as pessoas, ou que cause uma revolta que possa degenerar numa luta entre as pessoas, baseada na definição de discriminação no número 1 do artigo 1.º.» Em 2003 seria aprovada uma nova lei para a repressão do crime de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Esta nova lei vem condicionar a criação de partidos, exigindo que «reflictam a união do povo ruandês» e proibindo a disseminação de informação que «denigra ou divida», incluindo «palavras e actos com intenção de denegrir uma pessoa com o objectivo de a remover, de forma ilegítima, de posições de liderança». A lei vem ainda proibir o negacionismo, a «trivialização do genocídio» e a «traição à nação». Veja-se, sobre liberdade de opinião, pensamento, consciência; liberdade de imprensa e informação e liberdade de reunião, República do Ruanda, Constituição da República do Ruanda, artigos 33, 34 e 36. [Consultado em: 10 de Janeiro de 2011]. Disponível em: http://www.adh-geneva.ch/RULAC/pdf_state/Constitution-Rwanda-2003-as-amended-to-Aug2008.pdf.

18 Veja-se a cronologia detalhada da Human Rights Watch sobre a violação de direitos e restrição de liberdades no período entre Janeiro e Agosto de 2010 em HUMAN RIGHTS WATCH – Rwanda: Silencing Dissent Ahead of Elections. 2 de Agosto de 2010. [Consultado em: 24 de Janeiro de 2011]. Disponível em http://www.hrw.org/en/news/2010/08/02/rwanda-attacks-freedom-expression-freedom-association-and-freedom-assembly-run-presi.

19 Cf. o sítio oficial do Partido FDU-UDF – Forças Democráticas Unificadas – Princípios de Base. [Consultado em: 25 de Janeiro de 2011]. Disponível em: http://www.fdu-rwanda.org/fr/principes-base-rwanda/index.html: «Les FDU constituent un cadre politique dont le but est de: rassembler l’opposition démocratique rwandaise et définir ensemble les actions à mener; fédérer les forces et réaliser une unité d’action au service d’objectifs et de choix stratégiques communs; conduire une politique de résistance active contre la dictature militaro-sectaire installée au Rwanda en vue d’instaurer un Etat de droit au Rwanda respectueux des standards démocratiques internationaux.»

20 As Forças Democráticas de Libertação do Ruanda constituem um movimento armado, activo na República Democrática do Congo e contam, entre os seus mentores e elementos, com alguns dos envolvidos no planeamento e execução do genocídio de 1994. O movimento tem uma rede de apoio formada também por hutus no exílio, em particular na Europa (sobretudo na Bélgica e na Holanda) e no Canadá. A ligação de Ingabire a às FDLR não é evidente, mas num relatório do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas é mencionada a sua presença em reuniões de «diálogo inter-ruandês» que contavam com a participação de simpatizantes das FDLR. Há ainda registos de telefonemas entre elementos das chefias militares e dirigentes do partido de Ingabire, a FDU. Cf. CONSELHO DE SEGURANÇA DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – Rapport final du Groupe d’Experts sur la République Démocratique du Congo, de 23 de Novembro de 2009, S/2009/603. [Consultado em: 25 de Janeiro de 2011]. Disponível em: http://www.un.org/french/documents/view_doc.asp?symbol=S/2009/603, p. 26: «Le Groupe a obtenu confirmation que les chefs militaires des FDLR étaient en contact téléphonique avec des membres du parti politique Forces Démocratiques Unifiées FDU-Inkingi) exilés en Belgique, dont Jean-Baptiste Mberabahizi, ainsi qu’avec Naom Mukakinani, l’épouse d’un responsable politique du FDU-Inkingi, Michel Niyibizi. Le Groupe explique plus avant que Victoire Ingabire, la Présidente du FDU qui se trouve aux Pays-Bas, a assisté à des réunions du “dialogue interrwandais” auxquels participaient des sympathisants des FDLR».

21 Cf. MAMDANI, Mahmoud – When Victims Become Killers – Colonialism, Nativism, and the Genocide in Rwanda. Nova Jersey: Princeton University Press, 2001, pp. 270-271.         [ Links ]

22 Veja-se, a este propósito, TIEMESSEN, Alana Erin – «After Arusha: Gacaca justice in post-genocide Rwanda». In African Studies Quarterly, Vol. 8, N.º 1, Outono de 2004, pp. 57-76. [Consultado em: 30 de Novembro de 2010]. Disponível em: http://www.africa.ufl.edu/asq/v8/v8i1a4.htm, p. 66: «         [ Links ]Despite significant progress in terms of power sharing, it shall be argued that the government has been masking the increasing Tutsification of state institutions. This accusation has been articulated both by academics and human rights groups with regard to the democratization process, including faulty elections, restrictions on civil society, and the militarisation of the state. The presence of Hutus in positions of power is nominal. Rene Lemarchand wrote in 1997 that the «appointed parliament is a fig leaf… the civil service, the judiciary, the economy, the schools and university are all under Tutsi control.»

23 Neste ponto será relevante ver MAMDANI, Mahmoud, When Victims Become Killers – Colonialism, Nativism, and the Genocide in Rwanda, p. 271: «         [ Links ]The founding ideology of tutsi power in post-genocide Rwanda is the memory of the genocide and the moral compulsion never to let it happen again. The pursuit of the genocidaires is the raison d’être of post-genocide state, the one permanent part of its agenda. In the real world of state politics, however, the word génocidaire may be used to label any Hutu seen as an opponent, or even a critic, of Tutsi power. […] The moral certainty about preventing another genocide imparts a moral justification to the pursuit of power with impunity.»

24 Cf. BANCO MUNDIAL – Rwanda – Country Brief, última actualização em Setembro de 2010. [Consultado em: 25 de Janeiro de 2011]. Disponível em: http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/COUNTRIES/AFRICAEXT/RWANDAEXTN/0,,menuPK:368714~pagePK:141132~piPK:141107~theSitePK:368651,00.html.

25 Cf. KINZER, Stephen – A Thousand Hills: Rwanda’s Rebirth and the Man Who Dreamed It. Nova Jersey: John Wiley & Sons Inc., 2008, p. 233.         [ Links ]

26 Cf. excertos deste Manifesto Bahutu ou «Notas sobre o aspecto social do problema racial no Ruanda» em PRUNIER, Gérard, The Rwanda Crisis – History of a Genocide, p. 46.         [ Links ]

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