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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.31 Lisboa set. 2011

 

História

 

Thiago Carvalho

Investigador do IPRI – UNL e do Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa (CEHCP). Mestre em História das Relações Internacionais pelo ISCTE, prepara actualmente uma tese de doutoramento sobre as relações luso-brasileiras entre 1968 e 1985.

 

Matias Spektor (org.), Azeredo da Silveira. Um Depoimento

Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 2010, 398 pp.

Entre Maio de 1979 e Março de 1982 o antigo ministro das Relações Exteriores do Governo Geisel (1974-1979) e então embaixador do Brasil em Washington, António Azeredo da Silveira, concedeu uma longa entrevista ao Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (Cpdoc/FGV) no Rio de Janeiro. Ao contrário dos seus antecessores e sucessores, Azeredo da Silveira não legou um diário ou um livro de memórias completo que servisse de guião para o estudo sistemático da sua actuação diplomática e do vasto arquivo pessoal depositado no Cpdoc. Neste contexto, o seu testemunho oral constitui um instrumento ímpar para a compreensão da acção de um dos diplomatas mais polémicos e audazes que passaram pelo Itamaraty e de um momento determinante da política externa brasileira no século XX. O livro, recentemente publicado sob a chancela da FGV, resulta da transcrição e edição do registo oral cuja consulta até então só era possível se realizada presencialmente no Cpdoc.

Enquanto ministro das Relações Exteriores, Azeredo da Silveira implementou uma política externa que pretendia ampliar a concepção do interesse nacional e concorrer para o projecto nacional-desenvolvimentista. Apesar de crítico da rigidez da ordem internacional, Silveira identificava um conjunto de oportunidades para que o Brasil alterasse a sua posição no sistema. Para o então chanceler, o poder de um país não poderia ser medido apenas pela sua capacidade material mas também pelas suas ideias. Daí ter constantemente afirmado que cabia à diplomacia projectar o Brasil à frente do seu tempo ao executar uma acção externa ambiciosa e hábil. Apesar do livro se centrar nos cinco anos em que Azeredo da Silveira esteve à frente do Itamaraty (1974-1979), abrange as quatro décadas da sua carreira diplomática contribuindo para uma melhor compreensão do seu percurso individual e para a história da política externa brasileira na segunda metade do século XX.

A obra em análise foi organizada por Matias Spektor, que teve a difícil tarefa de preservar o estilo irreverente e arguto do discurso oral de Azeredo da Silveira e ao mesmo tempo elaborar um livro cuja leitura fosse coerente e fluida para o leitor. Para tal, Spektor introduziu as notas explicativas necessárias, uma lista das personagens citadas, uma cronologia, um índice onomástico e uma bibliografia de apoio, além de fotos que ilustram os principais assuntos tratados. A completar esta edição existe uma página na internet onde o leitor pode encontrar informação suplementar sobre a obra, o entrevistado e o organizador (http://silveiradepoimento.com.br/site/).

 

Túlio Sérgio Henriques Ferreira, O Universalismo e seus Descontentes. A Política Exterior do Brasil no Governo Figueiredo (1979 a 1985)

Curitiba, Juruá, 2009, 163 pp.

Apolítica externa do último governo da ditadura militar brasileira, presidido por João Baptista Figueiredo (1979-1985), tem recebido uma maior atenção à medida que a consulta da documentação oficial se tem vindo a tornar gradualmente disponível. Trata-se de um período de mudanças políticas, económicas e sociais profundas na história do Brasil contemporâneo, que conduziu ao processo de transição para a democracia e de revisão do modelo de desenvolvimento e de inserção internacional do país.

O fim do ciclo de prosperidade económica, iniciado durante o Governo Geisel (1974-1979) e agravado ao longo da presidência de Figueiredo – com a recessão económica mundial e a crise da dívida externa – pôs termo ao consenso existente entre as bases do regime e evidenciou dissensões quanto às políticas a seguir. O livro de Túlio Sérgio Henriques, resultado da sua dissertação de mestrado, explora estas divisões no que diz respeito à formulação e à implementação da diplomacia brasileira, uma área de acção do executivo tradicionalmente entendida como alheia às disputas políticas internas e pautada por uma tradição de continuidade entre os sucessivos governos.

A política externa implementada pelo chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro (1979-1985), conhecida por universalismo, procurou aprofundar a inserção internacional brasileira através de relações comerciais mais amplas e de uma crítica sistemática à rigidez do sistema internacional, em continuidade com as posições adoptadas pelo seu antecessor no Itamaraty, António Azeredo da Silveira. A diferença é que Saraiva Guerreiro teve de lidar com uma conjuntura interna e externa bem mais adversa e que exigiu o reajuste dos objectivos traçados. O trabalho de Túlio Ferreira demonstra que o universalismo não reunia consenso em Brasília e identifica quais as vozes dissonantes ao analisar o debate entre os seus críticos e defensores. Da sua análise resulta um conhecimento mais profundo sobre as divisões existentes entre as direitas do regime, sobre os debates travados e as propostas alternativas ao universalismo. Não menos importante é a confirmação de que mesmo durante a ditadura militar a política externa foi alvo do escrutínio civil, o que permite questionar a ideia de continuidade e consenso como linha de força da acção do Ministério das Relações Exteriores brasileiro.

 

Jerry Dávila, Hotel Trópico. Brazil and the Change of African Decolonization. 1950-1980

Londres, Duke University Press, 2010, 321 pp.

Foi a partir do Hotel Trópico, inicial- mente um dos melhores estabelecimentos da capital angolana e por fim dos poucos que permaneceram abertos enquanto a cidade mergulhava na guerra civil, que o diplomata brasileiro Ovídio de Andrade Melo começou a exercer, contra todas as adversidades, as suas funções em Luanda. A passagem de Ovídio por Angola coincidiu com uma das mais polémicas e audazes decisões da diplomacia brasileira: o reconhecimento do MPLA como legítimo representante do Estado angolano.

A escolha de Jerry Dávila para o título do livro é plena de significados. Em Angola a diplomacia brasileira consumou uma gradual e consistente reaproximação do país ao continente africano, constatou as potencialidades e os condicionalismos desta relação bilateral e da estratégia de inserção internacional que vinha sendo executada pelo Itamaraty. Ao considerar a evolução das posições adoptadas por Brasília face ao processo de descolonização africano, Dávila ultrapassa o estudo das linhas de força da política externa brasileira e propõe uma reflexão profunda sobre o comportamento das elites e sobre o pensamento racial brasileiro. Da obra de Gilberto Freire às visitas de Estado ao continente africano, o autor analisa a acção de gerações de intelectuais, políticos e diplomatas que tiveram um papel activo no reencontro do Brasil com África e na reflexão sobre a identidade nacional e internacional do país.

Ao centrar o seu trabalho no desempenho dos diplomatas brasileiros o autor não só revela o funcionamento de parte privilegiada da burocracia estatal mas também o modo como as elites brasileiras – de onde provinham os quadros diplomáticos – percebiam o seu lugar no mundo. Uma das conclusões é a de que o lusotropicalismo, o mito da democracia racial, a lusofilia, a crença no país enquanto potência emergente e o nacional-desenvolvimentismo, constituíram um substrato político-ideológico que influenciou a política africana do Itamaraty e que reforçou junto das elites brasileiras a ideia de que o Atlântico Sul, nomeadamente as relações com África, constituíam uma prioridade geoestratégica para o Brasil. Esta interpretação assentava na concepção de uma identidade nacional híbrida – plena de contradições – que permitia legitimar as aspirações do país enquanto parceiro privilegiado do continente africano e como interlocutor entre o hemisfério norte e o hemisfério sul.

A obra de Jerry Dávila demonstra como a questão da raça e do imperialismo influenciou a formulação da política africana do Itamaraty e como esta concorreu para uma estratégia de inserção internacional mais ampla e independente. Em certa medida, a aposta em África deveria confirmar a ascensão do Brasil ao estatuto de potência e constituir parte de uma resposta autónoma aos desafios colocados pela Guerra Fria. Paradoxalmente, foi no continente africano que o confronto bipolar evidenciou com mais clareza as limitações do modelo de desenvolvimento e de inserção internacional adoptado por Brasília.

 

Hal Brands, Latin America’s Cold War

Londres, Harvard University Press, 2010, 385 pp.

Apresente obra analisa a Guerra Fria na América Latina a partir da dinâmica estabelecida entre os actores domésticos e as forças internacionais, procurando apreender a importância dos factores endógenos para a história do conflito bipolar no subcontinente. Desse modo, Hal Brands recusa uma interpretação simplista e polarizada que interpreta a Guerra Fria na América Latina como o resultado da acção das direitas locais, apoiadas por Washington, contra os movimentos populares – maioritariamente de esquerda – ou que reduz a acção americana à promoção e defesa da democracia num continente politicamente instável e sob o risco de cair na órbita soviética.

Um dos méritos do trabalho de Brands é demonstrar que o estudo da Guerra Fria na América Latina deve conjugar as influências dos factores locais, regionais e globais, procurando estabelecer uma visão internacional e multilateral do conflito. Ao refutar uma interpretação da ordem bipolar centrada no confronto entre os Estados Unidos e a URSS, e ao privilegiar a análise de novos actores e espaços geográficos, assim como as consequências a médio e longo prazo do conflito Leste-Oeste, o autor desloca o estudo da Guerra Fria para além do eixo Washington-Moscovo ou de uma sucessão de eventos isolados.

Na América Latina como em outros continentes, a Guerra Fria resultou de conflitos de natureza política, social, geoestratégica e também ideológica, cujas repercussões fazem sentir-se até hoje. Por isso o autor enfatiza que os factores endógenos são por vezes mais eficazes para explicar a violência e a polarização política vivida durante a Guerra Fria do que apenas a clivagem capitalismo versus comunismo. Desse modo, Brands questiona o impacto da transferência do confronto Leste-Oeste para o eixo Norte-Sul e introduz um novo elemento de complexidade ao evidenciar que muitos dos conflitos atribuídos à ordem bipolar tinham na sua origem questões locais que foram potencializadas.

O livro de Hal Brands é inovador ao demonstrar que os actores latino-americanos foram co-responsáveis pela formulação da sua política interna e externa e, por conseguinte, pelo curso da Guerra Fria no subcontinente. Existiu uma relação de dois sentidos, ainda que desigual, entre o centro e a periferia do sistema que revela como a segunda exerceu um papel mais actuante do que frequentemente tem sido sugerido. Ao propor uma interpretação mais matizada e complexa, Hal Brands dá um importante contributo para desarticular as leituras que sugerem ter havido uma vitória moral do capitalismo sobre o comunismo ou que atribuem à Guerra Fria uma acepção forçosamente negativa.