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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.31 Lisboa set. 2011

 

Angola, efeito invertido da débâcle no Vietname

 

Pedro de Pezarat Correia

Oficial-general do Exército na situação de reforma. Professor convidado na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e conferencista em outras instituições de ensino superior. Seis comissões durante a guerra colonial, Índia (1954-1957), Moçambique (1961-1963 e 1964-1966), Angola (1966-1968 e 1973-1975) e Guiné (1969-1971). Tem colaborado com órgãos de informação e participado em diversos colóquios sobre temas relacionados com o 25 de Abril, a guerra colonial e os conflitos internacionais, tendo dezenas de livros e trabalhos publicados.

 

Tiago Moreira de Sá

Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola

Lisboa, Dom Quixote, 2011, 400 páginas

 

 

Obras de investigação, mesmo quando assentam em fontes primárias documentais, como assume Tiago Moreira de Sá (TMS) no presente livro (p. 15), não são imunes aos riscos da fiabilidade dos textos, nomeadamente quando são actas ou memorandos de reuniões, muitas vezes pouco rigorosos e até tendenciosos. No caso presente TMS confronta-se, com alguma frequência, com essas armadilhas.

Ao contrário de muitas abordagens sobre o fim do terceiro ciclo do império português, redutoras porque confundem a descolonização com a mera fase da transferência do poder, considero-a um processo faseado, longo e complexo, no qual a guerra colonial se inscreve na fase da luta de libertação. Foi a resposta violenta da potência colonial às propostas dos grupos nacionalistas para uma transição política que elevou a luta de libertação ao patamar da luta armada. Por outro lado em alguns casos – e foi assim no caso angolano – a guerra comportou quatro componentes, a luta de libertação opondo movimentos nacionalistas à potência colonial, o conflito regional envolvendo estados vizinhos e movimentos rebeldes aí actuantes, a guerra civil confrontando nacionais das colónias divididos entre a potência colonial e o movimento nacionalista ou no interior deste porque fracturado em movimentos de libertação (ML) hostis e, por fim, a Guerra Fria com as duas superpotências perseguindo interesses antagónicos apoiando os ML e a potência colonial. Com o termo da primeira componente as restantes prolongaram-se e agudizaram-se nas fases da transferência do poder e da independência, praticamente com os mesmos actores ainda que com diferenciados graus de empenhamento.

É neste quadro que melhor se compreenderá o envolvimento dos Estados Unidos na descolonização de Angola que TMS aprofunda com este seu importante livro. A abrir a «Introdução» selecciona cinco níveis de análise da descolonização de Angola, assim enunciados: «1) a competição bipolar; 2) o papel de Portugal; 3) o contexto interno angolano; 4) o contexto africano (com destaque para a África do Sul e o Zaire); 5) o actor por procuração (Cuba)» (p. 13). Níveis de análise que correspondem, com muita proximidade, às quatro componentes da guerra colonial que atrás registei: o nível da competição bipolar corresponde à componente da Guerra Fria, o nível do papel de Portugal corresponde à componente da luta de libertação, o nível do contexto interno angolano corresponde à componente da guerra civil e o nível do contexto africano corresponde à componente dos conflitos regionais. TMS acrescenta um quinto nível, o de Cuba, que eu incluo na componente da Guerra Fria e a diferença é meramente formal. O que interessa destacar é que TMS, muito bem, inclui no contexto da descolonização a guerra colonial em sentido amplo, demarcando-se da perspectiva redutora que a resume à mera fase da transferência do poder.

 

A OPÇÃO TAR BABY

Em todo o livro ressalta o papel nefasto que teve, em todo o processo, essa personagem tão influente, conselheiro especial do presidente Nixon e secretário de Estado, Henry Kissinger. TMS denuncia, com muita lucidez que, muitas vezes mal informado mas sempre tendencioso, a sua preocupação não era Angola per se mas os seus reflexos na competição com a URSS no quadro da Guerra Fria (p. 207). E salienta o que chama de «efeito invertido da débâcle no Vietname», traduzido na ânsia de Washington em transmitir para o exterior uma imagem de força (p. 58).

Os erros de análise de Kissinger coincidem com o início da presidência de Nixon e TMS é certeiro apontando a viragem política dos Estados Unidos para a África em benefício dos regimes racistas da África do Sul e da Rodésia e colonialista de Portugal (p. 37). Em 1969, Nixon aprovou o National Security Study Memorandum 39, estudo interdepartamental coordenado por Kissinger propondo a chamada opção Tar Baby que concluía que os regimes de minoria branca na África Austral estavam para durar, que tal favorecia os interesses dos Estados Unidos e por isso deviam ser apoiados. Opção que, obviamente, influenciou negativamente a imagem de Washington junto dos ML e beneficiou a URSS, não sendo alheio ao que se passaria posteriormente nas fases da transferência do poder e da independência das colónias portuguesas. Contra isso pronunciou-se vigorosamente o professor norte-americano John Marcum em Abril de 1976 na Foreign Affairs: «Os Estados Unidos têm de se conformar com o facto de terem apoiado o anterior regime colonial e de deixarem que os seus interesses em Angola após o golpe se tornassem suspeitos e pouco convincentes para muitos africanos» («Lessons of Angola», p. 423). Kissinger ignorou repetidamente informações dos seus conselheiros e diplomatas mais perto da realidade e afastou-os quando os seus estudos não lhe convinham. Foi assim com os cônsules-gerais em Luanda Everet Briggs e Tom Killoran e com os secretários de Estado adjuntos para os assuntos africanos (departamento de que desconfiava e desprezava) Daniel Easum e Nathaniel Davis. Já no livro que anteriormente publicou com Bernardino Gomes, Carlucci vs. Kissinger – os EUA e a Revolução Portuguesa (Dom Quixote, 2008), TMS revelava que Kissinger, a 10 de Abril de 1974, aconselhou o embaixador em Lisboa, Stuart Nash Scott, a não estabelecer contactos com Spínola, que acabara de publicar o livro Portugal e o Futuro, nem com o MFA.

 

OS EQUÍVOCOS DAS RELAÇÕES MFA/ML

Esta deficiente e/ou tendenciosa interpretação de documentos na Secretaria de Estado explicará a injustificada importância dada à entrevista com o Presidente zambiano Keneth Kaunda, em Abril de 1975, que TMS refere a abrir o livro. Segundo o memorando, Kaunda terá informado Gerald Ford (que entretanto rendera Nixon) e Kissinger que os presidentes Julius Nyerere (Tanzânia), Mobutu (Zaire) e Samora Machel (FRELIMO) apoiavam a UNITA, bem como o ministro dos Estrangeiros português Melo Antunes. Kaunda pretenderia justificar o seu apoio a Savimbi e atrair o de Washington em detrimento do que até então concedia à FNLA. TMS assinala mais à frente este «exagero» de Kaunda (p. 178, nota 64), mas mais do que exagero foi uma falsa informação, pois Mobutu apoiava a FNLA, Nyerere e Machel não apoiavam a UNITA, e, quanto a Melo Antunes, só podia ser uma deturpação do que este lhe terá transmitido sobre a então posição do seu governo, do Presidente da República e do Conselho da Revolução, convencer Savimbi a aliar-se com o MPLA contra a FNLA, que se apresentava como uma lança armada dos interesses de Mobutu em Angola. Esta entrevista com Kaunda teria deixado marcas na forma como Washington interpretava a posição de Melo Antunes, de novo deturpada no memorando da sua reunião em Washington com Ford e Kissinger, segundo o qual Melo Antunes considerou Savimbi o mais capaz e politicamente mais forte dos líderes angolanos e teria até dito que provavelmente Cabinda iria separar-se (pp. 243 e 244). Melo Antunes nunca fez estas afirmações.

Claramente contraditório nos registos dos Estados Unidos é o pretenso comprometimento do MFA com o MPLA. O MFA e o presidente da Junta Governativa de Angola nunca privilegiaram o MPLA contra os outros ml, mas opuseram-se a que, como pretenderam Spínola e Kissinger, o MPLA fosse marginalizado. TMS referencia essas tentativas de marginalização em documentos norte-americanos (p. 111), apesar de personalidades influentes nos Estados Unidos constatarem a necessidade de contar com o MPLA e aconselharem o estabelecimento de contactos diplomáticos (pp. 95 e 96). E da Administração norte-americana há várias provas do reconhecimento da equidistância do MFA. O registo do encontro de Donald Easum com Rosa Coutinho em Luanda a 22 de Novembro de 1974 salienta o pedido de Rosa Coutinho para que os Estados Unidos não marginalizassem nenhum movimento pois todos tinham um papel importante no processo de descolonização (p. 135). Em Junho de 1975 um memorando do Gabinete de Informações Secretas (INR) de Kissinger reconhecia a neutralidade portuguesa no embate entre o MPLA e a FNLA (p. 184). Mas há outros registos em sentido contrário. A 1 de Agosto de 1975 a Embaixada em Lisboa informava o Departamento de Estado da substituição do alto-comissário em Angola Silva Cardoso em resultado da reunião de um emissário do MPLA, Henrique Santos, com Rosa Coutinho, Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de Carvalho tendo por objectivo favorecer o MPLA (pp. 236 e 237). Era uma cabala pois a demissão, da exclusiva competência do Presidente da República, foi a pedido de Silva Cardoso. TMS confirma o erro, desmentido pelo próprio Silva Cardoso (p. 237). Mas TMS acabou por cair numa armadilha fazendo fé no livro de Almeida Santos Quase Memórias que refere o encontro de 20 de Novembro de 1974 em Argel entre Melo Antunes e Agostinho Neto, no qual teriam escrito conjuntamente o texto da proposta original do Acordo do Alvor (p. 129). Esta tese, delirante, Almeida Santos repescou-a do livro de Silva Cardoso Anatomia de Uma Tragédia, livro lastimável, paradigma de obra autojustificativa e compensatória das frustrações do autor, o que a condena como fonte minimamente credível e ao qual, por isso mesmo, chamei «Tragédia de uma anatomia» (O Referencial, revista da Associação 25 de Abril, N.º 85, Outubro-Dezembro de 2006). Almeida Santos e Silva Cardoso integraram a delegação portuguesa no Alvor e sabem que isto é falso. O encontro de Argel, onde acompanhei Melo Antunes, inscreveu-se na série de contactos unilaterais com todos os ml, a que se seguiram encontros dois a dois e, por fim, a cimeira dos três em Mombaça, a 3-5 de Janeiro de 1975. Foi aqui, sem presença portuguesa, que chegaram à plataforma de entendimento que levaram ao Alvor e serviu de base às negociações com Portugal. Pretender que o acordo nascera de um encontro Portugal-MPLA visa sustentar o favorecimento do MPLA. Não resiste a uma análise honesta e nenhuma leitura crítica do texto detecta a mínima cláusula que favoreça qualquer das partes. O acordo tinha vulnerabilidades mas não, seguramente, no equilíbrio absoluto entre os três movimentos. Nem outra coisa podia resultar de um texto de base tripartida elaborado de livre e comum concordância. O próprio TMS, mais à frente, cita um documento do Bureau of Intelligence and Research de 23 de Janeiro de 1975, no qual se reconhece tratar-se de um mecanismo complexo projectado para não dar vantagem a qualquer das partes e afirmava categoricamente que Lisboa não tinha preferências entre o MPLA, a FNLA e a UNITA (pp. 145 e 146). E, na sua sequência, Kissinger instruiu o novo cônsul-geral dos Estados Unidos em Luanda, Killoran, para louvar as partes envolvidas no Acordo do Alvor e deixar uma mensagem de felicitações para Rosa Coutinho pelos seus esforços para obter o acordo angolano (p. 147).

O livro confirma outros aspectos importantes, que não podemos aqui desenvolver, como o escalonamento das intervenções armadas externas cujo pioneiro foi o Zaire, ou as manobras para a secessão de Cabinda ou mesmo para a balcanização de Angola.

TMS conclui que a descolonização de Angola foi o que as superpotências quiseram, produto da Guerra Fria (p. 311) ou, como corrige a seguir, foi o somatório das acções de Portugal, dos ml, dos vizinhos, de Cuba mas, essencialmente, dos Estados Unidos e da URSS, acabando com a derrota daqueles e a vitória desta. Francamente, aqui discordo de TMS porque, acima de tudo, foi o que os angolanos quiseram ao longo de décadas, porque a guerra civil, componente do processo de descolonização que começara pelos anos 30 do século XX, prolongou-se para além da Guerra Fria, da implosão da URSS, da queda do apartheid na África do Sul, da queda de Mobutu no Zaire e ainda se confrontou com as interferências dos Estados Unidos como única hiperpotência global. Mas, como muito bem aponta TMS, houve sem dúvida uma constante da parte dos Estados Unidos, «[...] a evidente falta de uma estratégia norte-americana para Angola» (p. 166).