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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.31 Lisboa set. 2011

 

«Cavaleiro da Triste Figura». Spínola exposto e um livro famoso revisto

 

Douglas Wheeler

Professor de História jubilado da Universidade de New Hampshire, Durham. Editor jubilado da Portuguese Studies Review, da Universidade de Trent, Ontario, Canadá.

 

Luís Nuno Rodrigues

Spínola

Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010, 748 páginas

 

 

É com o prazer de historiador que observo a produção historiográfica portuguesa mais recente devolver à biografia o seu devido lugar; as biografias de figuras importantes são contributos excelentes para o estudo da história. Até à Revolução de 1974 as biografias sérias eram raras, e a mera hagiografia e os retratos bajuladores imperavam. Todavia, desde meados da década de 1990 assistimos à publicação de biografias substanciais de monarcas, presidentes da República e membros do governo do Estado Novo. Há pouco tempo foi publicada uma nova e extensa biografia – mas prática, num só volume – de outro tipo de monarca português, Salazar1. Existe também uma nova biografia do general Costa Gomes. E agora, pelo historiador que fez o retrato de Costa Gomes, Luís Nuno Rodrigues, saiu uma excelente e exaustiva biografia de António de Spínola (1910- -1996). Luís Nuno Rodrigues é especialista em história diplomática contemporânea e lançou-se neste desafio do estudo de grandes figuras militares e civis das décadas de 1960 e de 1970 em Portugal e no antigo império português.

O volume tem 748 páginas e constitui uma biografia completa. No entanto, tanto aqui como na maioria da literatura sobre Spínola produzida ao longo de décadas, as fases anteriores a 1961 (data em que Spínola partiu, aos 51 anos, para lutar em Angola) não merecem profundidade ou detalhe. A intenção de Luís Nuno Rodrigues é concentrar-se na vida de Spínola entre 1961 e 1975, os anos em que o invulgar soldado profissional assumiu lugar central no palco da vida política e imperial portuguesa. Apenas 24 páginas do capítulo 1, «A educação de António de Spínola», são dedicadas à personagem até aos 51 anos, em 1961, e o grosso do livro analisa o resto da sua vida até à morte, aos 86 anos, em 1996. Mesmo assim, a maior parte da obra, das páginas 51 à 569, e com uma bem documentada minúcia, debruça-se apenas sobre os anos de 1961 a 1976.

A amplitude de fontes desta soberba biografia é notável. Incluem entrevistas pessoais do autor a oito sobreviventes fundamentais que trabalharam de perto com Spínola, todos os arquivos portugueses relevantes e arquivos governamentais estrangeiros no Brasil, no Reino Unido e nos Estados Unidos, imprensa, escritos de Spínola publicados e por publicar, literatura académica, publicações periódicas militares portuguesas, documentos governamentais impressos, documentos familiares privados de Spínola (com muitas cartas do próprio), documentos de Marcello Caetano e outros. O reduzido número de entrevistas pessoais poderá desagradar a muitos historiadores, já que o número de companheiros, amigos e família que poderia ser contactado é bastante superior. Não esqueçamos, no entanto, que Spínola faleceu há quinze anos e que o número de colaboradores mais próximos foi reduzido por essa passagem do tempo. Além disso, o estudo das notas e do texto esclarece que os motivos de Spínola no contexto histórico são-nos revelados por uma vasta gama de material manuscrito e impresso, desde cartas e relatórios até jornais, revistas e livros. Um biógrafo incapaz de entrevistar o próprio sujeito tem, todavia, neste caso, duas vantagens: Spínola concedeu muitas entrevistas aos meios de comunicação social durante os anos em que ocupou posições importantes e deixou cartas privadas em que revelava pensamentos mais íntimos.

O autor enquadra Spínola no contexto histórico e analisa o pensamento do soldado e a forma como influenciou as suas acções. Sem entrevistas a colaboradores, a ausência de muitas cartas privadas e de entrevistas de Spínola aos meios de comunicação teria tornado a tarefa do autor mais difícil. É o dilema de muitos biógrafos de figuras históricas de tempos mais remotos. Na nossa época, em que cada vez menos pessoas escrevem cartas e notas e em que outras formas de comunicação, como os correios electrónicos, representam, por vezes, fontes historicamente ambíguas e de preservação mais problemática, os historiadores regozijar-se-ão em saber que as epístolas completas de Spínola foram guardadas e disponibilizadas. São complementadas por extensas entrevistas antes e depois de acontecimentos significativos.

Esta recensão não conseguirá fazer a síntese exaustiva da obra; seleccionará pontos de viragem na vida de Spínola e na história contemporânea de Portugal como amostra do que a biografia oferece. Em primeiro lugar temos o ano de 1961 e a decisão de Spínola se voluntariar para a distante Angola, aos 51 anos, como mero tenente- -coronel sem experiência de combate, quando a idade, posto e regulamentações não o obrigavam a partir em busca de um «baptismo de fogo». Mais tarde explicaria ter sentido que os súbitos acontecimentos em Angola no início de 1961 anunciavam uma era «crucial e decisiva» na história de Portugal. Também diria que, até finais de 1961, quando embarcou num navio de Lisboa para Luanda, embora tivesse sido um observador da guerra jamais fora combatente. A guerra em Angola aparecia como a oportunidade final para uma realização enquanto soldado profissional. Aos 51 anos muitos oficiais de carreira estavam próximos da reforma.

Mas o ponto de viragem principal que pretendo explorar é o período entre finais de 1973 até ao início de 1974, que precedeu o golpe de 25 de Abril de 1974. Em particular desejo encontrar respostas para duas questões: em que medida é que o sucesso de vendas do livro de Spínola Portugal e o Futuro foi um esforço individual ou colaborativo e que consequências teve. Na análise que faz da obra, bem como da resposta oficial e não oficial, ou pública, a ela, Luís Nuno Rodrigues sublinha muito naturalmente as principais teses relacionadas com a análise e a resolução da «questão ultramarina», as guerras coloniais nas «províncias» africanas. E a importância relativa de outras teses? O que é que está no texto de Spínola acerca da «questão do regime» e da democratização da abordagem à questão ultramarina e à política na metrópole? O comentário tradicional sobre o impacto revolucionário do livro centra-se quase em exclusivo na «questão ultramarina». Mas há algo presente no texto em que nunca se repara, uma espécie de «elefante na sala», para utilizar uma metáfora comum. O problema das guerras do Ultramar tem sido visto como o único elefante na sala, que tem de ser enfrentado para que a grave crise portuguesa possa ser resolvida. Mas a releitura do texto faz-nos reparar que existe outro elefante na sala: para além da sugestão que Portugal precisa de se abrir ao processo de resolução da questão ultramarina com votos e referendos sobre o futuro dessas províncias, nesse processo, a democratização da própria metrópole aparece como uma opção. A democratização de Portugal seria um dos três pontos anunciados a seguir ao golpe de 1974, na declaração oficial do Movimento das Forças Armadas de 27 de Abril que Spínola, presidente da Junta de Salvação Nacional, assinou. Os outros dois pontos eram a autodeterminação dos povos das províncias ultramarinas e a necessidade do desenvolvimento moderno da economia portuguesa. Exploremos no texto de Portugal e o Futuro as provas da necessidade da democratização de Portugal como parte da solução da grave crise provocada pelas guerras.

Que dizer, para começar, do aparecimento do «livro dos livros» neste ano fundamental? As origens de Portugal e o Futuro, publicado em 1974, estão num documento de 1970 que Spínola elaborou para Marcello Caetano, Algumas Ideias sobre a Estruturação Política da Nação, e numa resposta pró-federalista à posição de Franco Nogueira, que em 1971 defendera também em livro a continuação da «unidade». Ainda que Spínola tenha sido o autor da maior parte de Portugal e o Futuro, a obra resultaria da considerável colaboração com vários conselheiros do tempo do governo-geral na Guiné. O livro estaria pronto para publicação em meados de 1972. Depois do regresso da Guiné, o ritmo de produção acelerou-se. Após muitos rascunhos e da edição feita por vários colaboradores, ficou terminado no Verão de 1973. Em 23 de Fevereiro de 1974 era publicado e em poucas horas tornou-se um sucesso de vendas instantâneo e sensacional, e num inesperado preparador da opinião pública e num prelúdio à Revolução.

Estranhamente, Caetano escolheu não se opor à publicação do livro, com o argumento que seria pior para o regime proibi-la. Temendo a proibição pelo regime português da publicação, alguns apoiantes de Spínola precaveram-se com uma cópia pronta para impressão em França. Caetano relegou a autorização para o general Costa Gomes, que a confirmou, num daqueles casos na história em que os protagonistas não fazem qualquer ideia das consequências das suas acções. Anos mais tarde, o último ministro dos Negócios Estrangeiros do regime, Rui Patrício, recordava que depois de ter lido a obra dissera que a publicação e recepção do livro era «o princípio do fim» mas que, mais presciente, um pesaroso Franco Nogueira contradissera-o e considerara o livro «o fim».

Luís Nuno Rodrigues observa correctamente que antes da esmagadora resposta à publicação da obra Spínola não considerava o livro revolucionário ou ameaçador para o regime, apenas um argumento em favor de uma nova política colonial. Como diz Luís Nuno Rodrigues: «Na verdade, nada do conteúdo do livro apontava para necessidade de derrubar o Governo, afastar o presidente do Conselho ou implantar um regime democrático» (p. 223).

Ainda que o texto não defenda explicitamente o estabelecimento de um regime democrático, a sugestão está implícita em muitas passagens sobre a implementação do plano proposto para a questão ultramarina. Quando o examinamos, especialmente a secção cinco, «Os fundamentos de uma estratégia nacional»2, vemos que é sugerida a realização de eleições democráticas e de referendos para a autodeterminação dos povos das províncias ultramarinas e para a «unidade» que o autor crê poder resolver a grave crise nacional. Na página 160 Spínola evoca para este grande plano a «adopção de esquemas abertos, liberalizantes e progressivos» e noções semelhantes são repetidas ao longo do texto, incluindo a conclusão. Se os africanos das províncias ultramarinas tiverem referendos livres para decidir se optam por ficar ou não ficar «na nação», o que acontecerá ao povo da metrópole? Os processos mais democráticos no império, que poderão conduzir à sua dissolução, não implicarão processos democráticos semelhantes em Portugal? A ideia era completamente estranha aos dirigentes do Estado Novo antes de Caetano ser presidente do Conselho, em 1968. De acordo com Salazar tal ideia não era concebível no seio da política colonial do regime. No início da década de 1960, quando o diplomata americano George Ball o visitou em Lisboa, perguntou-lhe porque é que Portugal não concedia o direito à autodeterminação dos povos do império. Salazar respondeu qualquer coisa como: «Não posso conceder aos africanos algo que não concedo aos portugueses.» O pedido de Spínola de uma nova política para as províncias ultramarinas africanas é repetido de forma mais sucinta na conclusão de Portugal e o Futuro: «baseada na abertura, na liberalização, na segurança cívica, na africanização, na autonomia dos territórios ultramarinos e no respeito pelo direito dos povos a disporem de si mesmos...»3.

Todos os académicos concordam que a principal tese da obra era que as guerras em África não podiam ser vencidas militarmente, uma tese que chocou Caetano. Mas havia uma outra tese, implícita, que dizia que Portugal e as colónias tinham de avançar para um sistema mais democrático, sob pena da questão ultramarina não poder ser resolvida. O contexto da publicação do livro, em tempos de incerteza e crise, e o próprio facto de Spínola ter conseguido publicá-lo dizendo o que dizia, defendendo «uma abertura», foram muito importantes na forma como a opinião pública e o Governo receberam Portugal e o Futuro. Na história contemporânea é raro um texto, o acto de autoria e a publicação de um livro provocarem a diferença e protagonizarem acontecimentos que, nas palavras de Edward Gibbon, são as «molas» da mudança.

Qual foi então o verdadeiro papel de Spínola no planeamento do golpe de 25 de Abril de 1974 e qual o seu envolvimento no Movimento das Forças Armadas? O mistério ainda hoje permanece. O estudo cuidado de Luís Nuno Rodrigues sugere que existia uma ligação ou uma consulta com Spínola desde o início do mfa. A 4 de Março, por exemplo, os conjurados Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Lourenço visitaram a residência de Spínola em Lisboa para uma reunião. A interpretação que Luís Nuno Rodrigues faz da história do golpe abortado de 16 de Março de 1974 é fascinante: esse movimento militar prematuro foi essencialmente uma acção da «facção spinolista» do mfa, num esforço para derrubar o regime e instalar o general no poder. Um dos contributos mais úteis desta secção da biografia é a análise exaustiva que o autor faz dos testemunhos das várias figuras dirigentes do mfa sobre o golpe abortado (pp. 256-259). Deles emerge que não haveria grande consenso ou ponto de vista unitário. Também são interessantes os comentários acerca destes acontecimentos feitos por diplomatas americanos residentes e adidos militares em Lisboa, documentados pelo Departamento de Estado e por outros registos em arquivos americanos.

Em conclusão: trata-se da biografia no seu melhor. O contexto e a personalidade são claramente analisados. É uma contribuição excelente para a história de acontecimentos-chave na história de Portugal, especialmente entre 1961 e 1976. Se levar os historiadores a reexaminar e a reler o texto do livro que ajudou a sedimentar o caminho até à Revolução de 1974, e se ajudar a alargar a análise de Portugal e o Futuro para lá das questões da guerra colonial, considerando-o pelo que também sugere de uma futura democracia para Portugal, terá servido outro objectivo útil.

Spínola é a obra principal e fundamental sobre a personagem e as suas circunstâncias e assim se manterá durante muito tempo.

Tradução: Marta Amaral

 

NOTAS

1 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar. A Political Biography. Nova York: Enigma, 2009.         [ Links ] Edição portuguesa: MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar. Biografia Política. Lisboa: Dom Quixote, 2010.         [ Links ]

2 SPÍNOLA – Portugal e o Futuro. 2.ª edição. Lisboa: Arcádia, 1974, pp. 139-178.         [ Links ]

3 Ibidem, p. 242.