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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.31 Lisboa set. 2011

 

Fazer melhor as contas? Rawls, A Lei dos Povos, e a questão da justiça global

 

Paulo Barcelos*

Investigador do Instituto de Filosofia da Linguagem da FCSH – UNL. Investigador do Observatório Político. Doutorando em Ciência Política na FCSH – UNL

 

RESUMO

Este texto procura introduzir a questão da justiça global através de uma avaliação da concepção de John Rawls traçada em The Law of Peoples. Esta obra coloca-nos no centro do carácter aparentemente paradoxal que enforma a postura do pensamento liberal de cariz igualitário perante a consideração de um modelo de justiça internacional. A concepção rawlsiana de justiça internacional tem sido apontada como contraditória face à sua concepção aplicada à esfera doméstica. No artigo procurar-se-á não só perspectivar as vertentes das teorias de Rawls num enquadramento contínuo, como avaliar a pertinência do modelo exposto em The Law of Peoples a partir de um binómio entre justiça e humanidade.

Palavras-chave: John Rawls, justiça global, humanidade, filosofia política

 

Rawls, the Law of Peoples and the global justice

ABSTRACT

This text seeks to introduce the matter of global justice through an assessment of the conception of John Rawls, as advanced in The Law of Peoples. This work places us in the centre of the seemingly paradoxical character that shapes the attitude of the liberal-egalitarian thinking before the consideration of a model of international justice. The rawlsian conception of international justice as been criticized as contradictory regarding his conception applied to the domestic sphere. We will seek not only to understand the axis of Rawls’ theories in a continuity perspective, but also to assess the pertinence of the model exposed in The Law of Peoples through the duality between justice and humanity.

Keywords: John Rawls, global justice, humanity, political philosophy

 

Sabes ou não que passarão séculos e a humanidade proclamará, pela boca da sua sabedoria e da sua ciência, que não existe o crime e, portanto, não existe também o pecado, mas apenas existem os famintos?Dá-lhes de comer e só depois lhes peças a virtude!

Fiódor Dostoievski1


But again suppose that several distinct societies maintain a kind of intercourse for mutual convenience and advantage, the boundaries of justice still grow larger, in proportion to the largeness of men’s views,
and the force of their mutual connexions.

David Hume2

 

Arecente encíclica da autoria de Joseph Ratzinger, Caritas in Veritate, proporciona um bom ponto de partida não só para se compreender alguns dos argumentos avançados pelos proponentes de princípios globais de justiça económica, e as asserções que lhes servem de esteio, como para dar conta da crescente importância e visibilidade que têm tomado as questões de justiça distributiva aplicada às relações internacionais. Nela, sendo o modo como Ratzinger encara a esfera económica doméstica consentâneo com a tradição da doutrina social da Igreja3, a originalidade reside no traçar de um diagnóstico das consequências morais suscitadas pela «explosão da interdependência mundial». Advoga-se na secção 39.ª que a ideia segundo a qual «a ordem civil, para subsistir, tinha também necessidade da intervenção distributiva do Estado» revela-se hoje incompleta no que concerne à exclusividade doméstica da sua aplicação, «posta em crise pelos processos de abertura dos mercados e das sociedades». Daí deriva a necessidade de ampliar a noção de bem comum de modo a abarcar a «comunidade dos povos e das nações» (secção 7.ª), o que por sua vez justificará a extensão dos deveres de distribuição de recursos entre indivíduos do plano infra-estatal (válidos apenas entre concidadãos) para o plano global, compreendendo a totalidade da «família humana».

A reflexão de Ratzinger, na verdade, transcende as considerações de justiça, ancorando-se na acepção cristã de caridade e na interpretação teológica de conceitos como os de solidariedade ou verdade. É, porém, possível empreender-se uma leitura estritamente «política» da encíclica – alojada não no plano ético da conduta individual voluntária mas naquele que designa as obrigações morais, capazes de serem institucionalizadas por lei, de todos perante (todos) os outros. Tal leitura introduz com clareza a questão da justiça global no seu entendimento cosmopolita.

Visto que o que se convencionou nomear de justiça global – temática que só há poucas décadas se assumiu como autónoma no campo da teoria política, mas que desde então se tornou, seguramente, uma das questões sobre as quais actualmente mais se discute e mais se publica – procede através de uma extensão da questão clássica da justiça distributiva do plano doméstico para a esfera global, convirá esclarecer, antes de mais, o que se poderá entender por justiça distributiva. Esta poderá ser sucintamente designada como o campo normativo em que se consideram os problemas concernentes a «como deve uma sociedade ou grupo distribuir os seus recursos ou produtos escassos entre indivíduos com necessidades e reivindicações concorrentes»4. O campo de aplicação dos princípios de justiça económica será, então, o que Rawls designa por estrutura básica de uma sociedade, isto é, o conjunto das instituições que presidem à distribuição dos bens sociais primários, dos direitos e deveres dos cidadãos5. O que a opção por uma dada concepção de justiça distributiva (de um conjunto de princípios que regulem a estrutura básica) determina é, portanto, a escolha de um modelo social, o qual veicula uma forma particular de proceder à divisão dos bens entre os indivíduos que colectivamente os produzem6.

No tratamento que os autores enquadrados no domínio do liberalismo político (inclusivamente por autores, como Rawls, de tendência igualitária no que toca ao modelo proposto de distribuição de recursos7) concederam a estas questões, a esfera infra-estatal, a sociedade doméstica, surgiu classicamente como o seu campo exclusivo de aplicação8.

Partindo desta constatação, os proponentes de uma concepção de justiça global ancoram, antes de mais, as suas pretensões na identificação de um paradoxo no seio da filosofia política liberal9. Por um lado, uma das premissas base em torno das quais o liberalismo se institui é o igualitarismo moral, ou seja, a consignação de igual estatuto moral (e, por conseguinte, de uma esfera uniforme de direitos invioláveis) a cada homem pelo simples facto da sua humanidade. Como Rawls enfatizou em A Theory of Justice (TJ), nenhuma característica que seja moralmente arbitrária, que tenha sido atribuída ao indivíduo através das lotarias genética e social (seja ela a raça, o sexo, ou até os talentos e capacidades inatas que possua), pode ser instituída como factor que determine uma distribuição de bens desigual face aos restantes indivíduos10.

Por outro lado, a validade dessa asserção de partida parece ter sido paradoxalmente confinada aos limites das sociedades domésticas. Como indica Blake, as teorias da justiça de cariz liberal não conceberam tradicionalmente o seu campo de aplicação como o conjunto das «pessoas morais» (isto é, à totalidade da população mundial11), como seria o corolário lógico de se ter o igualitarismo por premissa de partida, mas antes decalcam a abrangência dos deveres socioeconómicos entre indivíduos a partir de uma sobreposição com as fronteiras territoriais de cada Estado.

Se o liberalismo político – e em particular o liberalismo de cariz igualitário –, ao pensar os deveres de justiça interindividuais e os mecanismos distributivos que os garantem, não contempla a sua necessária validade cosmopolita mas antes os circunscreve ao âmbito do Estado-nação, envolvendo apenas co-nacionais ou co-cidadãos, estará então a incorrer numa aporia que compromete a referida asserção primária que dá corpo a toda a teorização liberal. Estará, por conseguinte, a determinar uma outorga diferenciada de direitos e deveres aos indivíduos cuja disparidade resulta de um fenómeno puramente arbitrário, destituído de relevância moral: da «lotaria do nascimento», segundo a expressão, com ecos rawlsianos, de Hirst e Thompson12.

Essa aporia, segundo os autores que primeiro sinalizaram a insuficiência do carácter estatocêntrico das concepções tradicionais sobre justiça, é particularmente visível na obra de Rawls, na «incoerência» ou «assimetria»13 entre a sua teoria da justiça aplicada à esfera doméstica, e aquela que concebe para a esfera internacional. Com efeito, poder-se-á dizer, com alguma liberdade, que a génese do pensamento sobre justiça global se deve a um exercício de heteronímia por parte de autores que, seguindo a esteira de Rawls na definição de princípios de justiça para a sociedade doméstica, pugnaram pela sua extensão para o plano global. Surge, pois, há cerca de trinta anos, a partir das reacções de autores como Thomas Pogge ou Charles Beitz14 ao que se intuía ser a posição de Rawls relativamente à justiça internacional – já incipientemente formulada na secção 58 de TJ, e confirmada, passadas duas décadas, no artigo e posterior livro intitulados The Law of Peoples (LoP).

Este texto focar-se-á numa análise da concepção rawlsiana de justiça internacional como constante na sua obra de 1999, que constitui a sua versão acabada15. Num primeiro momento analisarei os aspectos essenciais da ideia de uma «Lei» e de uma «Sociedade dos Povos» (SdP). Em seguida, num segundo momento, apresentarei uma interpretação de LoP, e em particular da ideia de tolerância face aos povos não liberais, como estando inserida num arco do qual fazem parte – como momentos anteriores e alicerces da concepção pluralista que enforma o modelo rawlsiano de sociabilidade internacional – Political Liberalism (PL) e The Idea of Public Reason Revisited (IPRR). Tal interpretação contraria a ideia de uma contradição ou incoerência entre as teorias da justiça de Rawls. Sustentarei que a aparente incoerência se deve ao facto de se colocar a interpretação da concepção rawlsiana de «justiça como equidade» nos termos de TJ (isto é, como doutrina abrangente de cariz liberal e igualitário) como barómetro da avaliação da concepção de justiça internacional em Rawls, e não a interpretação veiculada a partir de PL, em que a justiça como equidade surge já não como doutrina mas como concepção política, neutra face ao que não releva da «cultura pública» de uma sociedade. Não será, porém, essa clarificação que isentará a construção ralwsiana de crítica. No que diz respeito à questão distributiva entre estados, em particular, sustentarei que LoP não constitui propriamente uma concepção de justiça, mas tão-somente um sistema de assistência humanitária. A terceira parte do texto dedicar-se-á a expor a insuficiência dessa concepção.

 

ORTONÍMIA E HETERONÍMIA RALWSIANA

Rawls começa por declarar que a enunciação de uma concepção de justiça aplicada às normas e prática internacionais (a Lei dos Povos) – que por sua vez dará origem a uma estrutura confederal de relacionamento mútuo entre os povos16 que respeitarem os princípios designados (a SdP) – procederá a partir de uma «extensão de uma concepção liberal de justiça aplicada a um regime doméstico para o plano internacional»17; mais propriamente, de uma concepção «semelhante a, mas mais geral que» a ideia de justiça como equidade18.

Caso se propusesse uma concepção efectivamente idêntica à que Rawls propugna para a esfera doméstica, a ordenação interna dos participantes da SdP teria que replicar os constituintes internos de uma sociedade democrático-liberal – isto é, nas palavras de Rawls, teriam de ser sociedades comprometidas com os direitos e liberdades individuais, cujo estatuto seria prioritário ante quaisquer considerações particulares do bem público, e que garantissem aos cidadãos um mínimo de recursos económicos19; teriam de ser dotadas, ainda, de um governo e ordem constitucional democráticos20; as relações entre cidadãos deveriam, finalmente, desenrolar-se num contexto de razoabilidade e concórdia, dotando o todo de «natureza moral»21. Em suma, caso Rawls enquadrasse a sua teoria de justiça internacional a partir da extensão da concepção de justiça como equidade, a sua construção procederia a uma actualização mimética do foedus pacificum kantiano, cujo «Primeiro Artigo Definitivo para a Paz Perpétua» designa como cláusula obrigatória uma constituição de tipo republicano para cada Estado participante. Por constituição republicana entenda-se aquela cujo governo se exerça mediante a forma representativa e que, por conseguinte, garanta a liberdade de cada indivíduo como Homem, e igualdade de todos enquanto cidadãos22.

O que Rawls pretende para a sua teoria de justiça internacional é, porém, um modelo cuja herança face à justiça como equidade se revele não no registo da mesmidade, mas no da «semelhança». Como tal, o dado novo que caracteriza a proposta de Rawls prende-se com o facto de esta pretender ser uma estrutura legal mais agregativa que a federação para a paz kantiana: já não apenas um clube de democracias – que, aliás, segundo Kant, não deixam de permanecer em estado de guerra com os estados cuja constituição não se conforme aos princípios constitucionais republicanos23 – mas um círculo pacífico que congregue, para além delas, um conjunto de estados que, não seguindo os postulados liberais nem tendo uma ordenação constitucional necessariamente democrática, reúnem um conjunto de condições base. Estas, garantindo-lhes o cumprimento de um patamar mínimo de legitimidade, permitem-lhes desse modo integrar a SdP. Rawls apelida-os de «povos hierárquicos decentes». Hierárquicos porque não concedem aos seus habitantes o estatuto de «cidadãos livres e iguais, nem de indivíduos independentes merecedores de igual representação»24 mas antes os encara a partir de um ponto de vista «associacionista»: divididos em diferentes grupos, que devem ser tomados em conta pelo governo, mas não necessariamente em regime de equidade25. Poderão, porém, tornar-se legítimos parceiros dos povos liberais se respeitarem dois critérios: o primeiro, terem uma postura não agressiva no plano externo. O segundo critério é tripartido: terão de honrar um determinado conjunto de direitos humanos «básicos»26, o seu sistema legal tem de originar deveres e obrigações para todos os habitantes, e os juízes e responsáveis pelo sistema legal têm de crer firmemente que a lei é guiada por e dirigida para uma ideia comum de justiça e de bem27.

O fulcro da concepção rawlsiana reside, então, na procura de constituir um modelo de sociabilidade internacional que seja norteado não por pressupostos etnocêntricos mas por um ideal de «tolerância». Uma LdP tolerante será aquela que não procure impor um modelo de organização social baseado na generalização de um ideal – o liberal-democrático – que, na verdade, não escapa a um carácter circunstancial, não universalizável28. Será aquela, por conseguinte, que não estabeleça como condições necessárias para a inclusão no seio do espaço normativo que funda critérios que só povos liberais poderiam respeitar, mas que, levando em devida conta a inescapável pluralidade política e cultural que permeia a esfera internacional, determina um limiar de razoabilidade (uma «ideia mínima», composta pelos princípios e direitos humanos já aludidos), respeitando os regimes que o atinjam e acolhendo-os na SdP como membros de pleno direito29.

Nessa medida, também as sociedades não liberais mas decentes terão uma palavra a dizer quanto aos princípios de justiça a serem adoptados através da extensão da posição original como dispositivo representativo (e do véu da ignorância como instrumento de validação da deliberação moral30) para o plano internacional, como «posição original de segundo nível»31. Como, porém, o projecto rawlsiano deriva de uma concepção «semelhante» à da justiça como equidade, a posição original internacional está dividida em dois estádios. No primeiro, os representantes dos povos liberais escolhem os princípios globais de justiça. No segundo estádio os princípios alcançados são submetidos ao julgamento dos representantes dos povos hierárquicos decentes. A aceitação, por parte destes últimos, dos oito princípios designados32 não só confirmaria a sua razoabilidade como atestaria o «alcance universal»33 dos preceitos da LdP, que comporiam deste modo o núcleo minimal mas comum dos princípios aceites por todos os povos razoáveis, independentemente da variação cultural que os aparte.

O oitavo princípio será aqui alvo de particular enfoque, na medida em que testemunha a preterição de um ideal distributivo de cariz tendencialmente igualitário – como o que preside à proposta de TJ, incorporado na segunda alínea do segundo princípio de justiça, ou «princípio da diferença», como é habitualmente referido34 – em prol de um modelo de assistência económica bem menos robusto. Este princípio determina um «dever de assistência» dos povos decentes face àqueles (aos seus governos, entenda-se, e não aos cidadãos) cuja possibilidade de bom ordenamento existe de forma latente mas inconcretizada devido, em parte, à ausência de condições materiais. Nesse sentido, a assistência financeira que é devida aos povos onerados tem por único objectivo fornecer-lhes os meios financeiros necessários para lhes garantir a autonomia na gestão dos assuntos internos, para que esta possa ser processada de forma «razoável e racional», impulsionando desse modo o seu acesso ao grupo dos povos bem ordenados35. Constitui-se, portanto, como «princípio de transição»36. Como tal, assim que as condições para tal acesso se encontrarem reunidas, estando o «alvo» do dever assistencialista concretizado, mesmo que o povo se mantenha relativamente depauperado, a ajuda financeira cessará. Prossegui-la para além do alvo (isto é, quando já se garantira um nível adequado de liberdade e igualdade à sociedade assistida) seria agir de forma paternalista e desproporcionada37.

O que ressalta da elaboração deste oitavo princípio de justiça é a já referida deslocação do estatuto de «sujeito moral» dos indivíduos para as unidades políticas que os congregam em comunidade38. Essa assunção de Rawls de uma não analogia entre o carácter moral da esfera doméstica e o da esfera internacional foi alvo de inúmeras críticas de autores que defendem uma extensão cosmopolita39 daqueles deveres de assistência económica cuja vigência foi classicamente considerada como aplicada em exclusivo à esfera doméstica.

A concepção de Rawls parece, com efeito, esbarrar no paradoxo liberal exposto no início deste texto. Por um lado, ao encarar os indivíduos já não como agentes morais de base mas enquanto partes de um corpo agregado que surge em LoP como o efectivo sujeito moral, Rawls abandona a sua visão dos indivíduos como «fontes que por si sós originam reivindicações válidas»40, prescindindo do cariz individualista que na sua teoria da justiça doméstica surgia como pressuposto inalienável. Por outro lado, à luz dos pressupostos de TJ, Rawls parece incorrer numa contradição, já que em LoP encara a nacionalidade – a mera circunstância de se de ter nascido num lugar e não noutro – como dado moralmente inócuo. Ao contrário do que seria previsível, Rawls não interpreta a nacionalidade como factor arbitrário que, à semelhança da raça ou sexo, não pode instituir-se como justificador de uma distribuição diferenciada de direitos e deveres entre os indivíduos – uma situação assimétrica que, a emergir, terá por conseguinte de ser mitigada através de uma correcção redistributiva41.

Este paradoxo, segundo os críticos, parece determinar uma inflexão no pensamento rawlsiano, a passagem de um «individualismo doméstico» para um «comunitarismo internacional»42. A manter-se fiel ao individualismo liberal, e por conseguinte coerente com a teoria da justiça que delineou, teria de conceber a posição original não a partir de uma fórmula bipartida, mas estipulando um momento deliberativo único e de alcance global. Nessa «posição original global», o resultado da deliberação, no que toca aos deveres de justiça económica, seria análogo ao do definido para a esfera doméstica: dos princípios constaria uma alínea formulando um «princípio da diferença internacional». Tal significaria que o padrão definido para a avaliação e transformação da «estrutura básica global» seria a capacidade de maximizar as condições de vida dos globalmente mais pobres. Significaria ainda que as transferências redistributivas não se fariam de forma interestatal mas reverteriam directamente para os indivíduos43.

Rawls parece, ele próprio, assumir o paradoxo, afirmando que o propósito de LoP não se prende com a protecção da individualidade dos cidadãos, mas com as condições (mínimas) de legitimidade dos estados. Abordando o contraste entre a sua concepção e o princípio cosmopolita, sustenta que enquanto este se preocupa em última instância com «o bem-estar dos indivíduos, e logo com a possibilidade de o bem-estar dos globalmente mais pobres poder ser melhorado», o que é importante para a LoP é, pelo contrário, «a justiça e estabilidade pelas razões certas das sociedades liberais e decentes»44.

O que para Rawls é problemático na assunção do indivíduo como centro de uma concepção moral aplicada às relações internacionais – extrapolando assim o princípio basilar de uma teoria da justiça aplicada à sociedade doméstica, e apenas a alguns tipos de sociedades, a saber, as democráticas liberais – é que esta testemunharia a imposição de uma mundividência particular a um mundo no qual a heterogeneidade cultural é um dado inevitável. Edificar uma Lei dos Povos (LdP) a partir de pressupostos exclusivamente liberais seria, por conseguinte, fazê-la assentar numa base «demasiado estreita», isto é, seria fundar essa estrutura normativa supranacional através da generalização etnocêntrica de um conceito de pessoa que não é alvo de consenso por parte das diversas culturas. Nas palavras de Rawls, estar-se-ia neste caso a tratar «todas as pessoas, independentemente da sua sociedade ou cultura, como indivíduos livres e iguais, razoáveis e racionais, logo, de acordo com a concepção liberal»45. Uma estrutura confederativa que se pretenda inclusiva e dotada de «abrangência universal» não pode, neste sentido, forçar os povos participantes a alterarem as disposições dos seus regimes internos em direcção a uma progressiva liberalização46. Tendo de respeitar a «autonomia política» das sociedades decentes47, apenas poderá requerer «o que elas puderem razoavelmente subscrever assim que estiverem preparadas para entrarem numa relação de recta igualdade com todas as outras sociedades»48.

Para os críticos, esta inflexão de Rawls para um entendimento mitigado do liberalismo representa uma incoerência insanável entre duas vertentes da sua obra, que na esfera internacional redunda não na projecção de uma «utopia realista»49, de um modelo de convivência entre povos que seja justo e estável, mas num compromisso artificial entre regimes liberais e não liberais, sem condições para transcender o estatuto de modus vivendi entre estados dotados de regimes políticos incongruentes50. A própria concepção da teoria estaria, segundo Fernando Tesón51, enviesada ab initio, já que a intenção de Rawls – que, como vimos, declara, na primeira página da Introdução de LoP, a sua concepção internacional como devedora de uma ideia liberal semelhante à da justiça como equidade – seria a de dilatar artificialmente as asserções da sua concepção doméstica, corrigindo-as nos casos em que impeçam a inclusão das sociedades não liberais (que não partilham da ênfase no valor intrínseco dos direitos humanos, da liberdade individual, do regime democrático), com o propósito de «imunizar a teoria contra a falsificação (moral)».

 

UMA TEORIA DA JUSTIÇA PARA UM «MUNDO DESENCANTADO»52

As críticas cosmopolitas não parecem, porém, reconhecer os matizes do pensamento rawlsiano, nem o papel que as questões abordadas em PL desempenharam na reflexão sobre as condições que possam garantir uma sociabilidade estável e equilibrada num contexto de estilhaçamento das concepções de bem e visões morais, isto é, num meio social destituído de uma visão de mundo una, que mobilize a totalidade, ou sequer o grosso, dos indivíduos. Uma frase de Rawls defendendo a já aludida ideia de tolerância permitirá tornar mais claro quais as fundações sobre as quais Rawls alicerça a sua teoria de justiça internacional. Confrontando-se com o «inescapável facto do pluralismo» na esfera internacional, Rawls enuncia o seguinte princípio orientador:

«Assim como um cidadão numa sociedade liberal deve respeitar as doutrinas abrangentes – religiosas, filosóficas, e morais – desde que estas sejam exercidas em conformidade com uma concepção política de justiça que seja razoável, uma sociedade liberal deve, do mesmo modo, respeitar outras sociedades organizadas de acordo com doutrinas abrangentes, desde que as suas instituições políticas e sociais cumpram determinadas condições que levam a sociedade a aderir a uma lei dos povos razoável.»53

Na defesa de que a inclusão de sociedades decentes na SdP deverá proceder não de um compromisso artificial mas de uma intenção devedora dos princípios liberais, a acepção de liberalismo que Rawls mobiliza, assim como as noções de tolerância e neutralidade face às sociedades não liberais que respeitem o limiar internacional de razoabilidade, não é aquela veiculada pela acepção dos princípios de justiça como equidade como constante em TJ. Trata-se, antes, da interpretação que assoma a partir do surgimento de um outro tipo de preocupações – ainda no âmbito doméstico – com que Rawls se começou a debater a partir de PL: com as que concernem a manutenção da «estabilidade» de uma concepção de justiça face ao contexto de irreconciliável diversidade de doutrinas morais, religiosas e filosóficas que caracteriza os estados contemporâneos. Preocupações que ditaram uma modificação no modo como Rawls passou a entender a concepção de justiça como equidade, uma alteração de estatuto: de doutrina abrangente que orientasse uma sociedade culturalmente homogénea passou a concepção estritamente política, mais adequada para operar num contexto de descontinuidade e fracturação doutrinárias. A compreensão desta modificação permitirá porventura encarar os pressupostos de LoP já não como cisão dissonante na filosofia rawlsiana, mas como culminar de uma continuidade que se começou a esboçar com a consideração das questões levantadas pelo «facto do pluralismo razoável».

Tal facto prende-se com a inevitabilidade de, numa sociedade livre, pela própria estruturação psicológica dos indivíduos, haver uma dispersão de pontos de vista quanto às questões básicas concernentes à religião, à moral, à concepção do mundo. Dispersão essa que se manifesta entre indivíduos dotados de razoabilidade, e que é inclusivamente incitada pela existência de uma cultura e instituições que potenciem a liberdade humana54. A homogeneidade em termos de «doutrinas abrangentes»55 seria apenas alcançável através da supressão despótica da diversidade56.

Não havendo uma visão do mundo agregadora entre os indivíduos que partilham o estatuto de cidadãos de uma unidade política, e sendo ilegítimo estender artificialmente uma doutrina abrangente para orientar a cooperação social, a questão que se coloca é a de saber sob que condições o conjunto dos cidadãos aceitará como legítima a produção e entrada em vigor de legislação que contrarie as suas convicções, que coaja uma parte substancial da população a seguir um curso de acção que não subscreve. Dito de outro modo, a questão que Rawls aborda é a de determinar o tipo de procedimento a seguir no desempenho do poder político, para que o grupo de cidadãos que eventualmente ache uma lei imoral a reconheça no entanto como legitimamente formulada e, por conseguinte, a acate57. O problema da legitimidade cruza-se, então, com o da estabilidade de um regime, com a sua perpetuação através do respeito da ordem pública e dos termos da deliberação e decisão políticas por parte dos cidadãos.

A questão com que Rawls se debate em PL e IPRR é então a de encontrar uma forma de deliberação e decisão públicas no que respeita à formulação de leis – logo, encontrar uma forma de «razão pública» orientadora da cooperação política e social entre cidadãos58 – que transcenda a impossibilidade de consenso estrito entre indivíduos no que toca à moralidade privada, que possa ser endossada por todos os cidadãos independentemente da doutrina abrangente que cada um siga. Mais ainda: procura-se apurar se a razão pública como enquadramento institucional da multiplicidade e dissensão doutrinais é operativa no âmbito de um regime democrático, e se por conseguinte o seu conteúdo pode ser compatibilizado com os princípios liberais59.

Já que o conjunto dos cidadãos não é passível de ser mobilizado em torno de concepções unas que determinariam a verdade, ou o que em última instância é correcto, a solução que Rawls encontra será suprimir essas questões, de ordem ética, do seu modelo de razão pública e determinar a orientação da sociedade exclusivamente a partir de uma ideia do «politicamente razoável»60. O conteúdo de tal ideia, numa sociedade democrática, poderá ser intuído a partir do «fundo implícito de ideias e princípios partilhados» veiculado pela história do pensamento democrático61. Sendo essas directrizes, como se viu, apenas orientadoras dos «fundamentos» do governo e justiça numa sociedade, são exclusivamente direccionadas para o campo político, para o campo que dá corpo à «estrutura básica» de uma sociedade. Aplicam-se, portanto, unicamente às relações entre indivíduos como cidadãos, na esfera que Rawls apelida de «fórum público» – aquela em que se efectuam as decisões políticas concernentes aos fundamentos de uma sociedade62.

As relações entre indivíduos no âmbito do que Rawls designa por «cultura de fundo» (background culture) – seja na esfera privada (no espaço familiar), seja no âmbito de associações que não são geridas pelos poderes públicos (como igrejas, universidades ou os mais diversos clubes e agremiações) –, visto não se submeterem a nenhum tipo de base doutrinária sancionada pelo Estado, nem sendo lícita tal submissão, não lhes está, igualmente, associado nenhum tipo de razão pública63. Há, sim, um limiar de razoabilidade, que determina os limites da tolerância devida às associações e sistemas de relações governados por normas (e à luz de doutrinas) não liberais mas que respeitam o conjunto de direitos públicos inalienáveis que sustenta a autonomia individual64.

Esta dualidade entre razão pública e moralidade privada, assim como a questão do pluralismo razoável, não haviam sido objecto de consideração em TJ. Aí, os princípios de justiça e o seu espaço de aplicação são traçados como resultantes de um contexto social dotado de unidade e de homogeneidade doutrinárias. Os representantes na posição original foram concebidos como pessoas, e os princípios de justiça foram determinados tendo em conta uma noção de bem ancorada nos postulados do liberalismo como doutrina abrangente (projectando, por exemplo, uma acepção de indivíduo como devendo ser dotado de autonomia irrestrita em todas as esferas da sociedade). O que daí resulta é uma projecção dos princípios de justiça como tendo uma abrangência que se sobrepõe a todas as instâncias de moralidade social, superintendendo tanto a esfera pública, a da estrutura básica, como a esfera privada, da sociedade civil. Em resumo, é uma doutrina moral abrangente que não só se sobreporia a todas as outras que os cidadãos pudessem possuir, como os projectaria como «povo de deuses», para usar livremente uma expressão rousseauniana.

O que se procura em PL é, pelo contrário, uma concepção de justiça que alcance o estatuto de neutralidade face às diferentes doutrinas abrangentes razoáveis que povoam a esfera social. Representando as partes contratantes na posição original já não pessoas abstractas mas cidadãos, os princípios que delinearem – cuja vigência se resumirá à acção pública dos indivíduos – originarão uma concepção liberal não abrangente mas política65. Política e, como tal, passível de ser aceite e reclamada por todos os indivíduos, independentemente da sua concepção moral ou religiosa, como o ideal para orientar a deliberação pública. Passível, portanto, para utilizar terminologia rawlsiana, de ser objecto de um «consenso por sobreposição»66.

Poder-se-ia, posto isto, organizar as posições de Rawls quanto à constituição de uma teoria da justiça através de uma gradação tripartida, ou mesmo quadripartida. Gradação que determina os diferentes matizes e a variação a que foi sujeito o entendimento do universo moral ao qual os princípios de justiça se aplicam e, logo, o conteúdo de tais princípios e a acepção de razão pública (e de razoabilidade dos agentes) que espelham67.

Num primeiro momento, em TJ, Rawls delineia uma teoria da justiça cujo campo de aplicação se restringe a uma (implausível) sociedade doméstica orientada por uma mesma doutrina moral abrangente: liberal e individualista. Os dois princípios de justiça determinam, por si sós, os critérios a partir dos quais a conduta e produção normativa das instituições sociais são avaliadas.

Num segundo momento, o de PL, a sociedade rawlsiana é compreendida como campo de forças onde se jogam as múltiplas reivindicações e asserções morais decorrentes de uma inescapável pluralidade de doutrinas e visões, tanto individuais como grupais, sobre o mundo. A impossibilidade de se impor uma síntese leva à procura de um ideal mediador entre as doutrinas abrangentes incomensuráveis, ideal que não pode repousar numa de tais doutrinas mas, para que seja objecto de consenso, veicular uma moralidade nuclear exclusivamente política, que determine as condições segundo as quais as moralidades individuais se podem esgrimir na esfera pública68.

Considerando IPRR, poder-se-ia talvez sugerir um terceiro momento, ou uma segunda alínea do segundo. Com efeito, se em PL é veiculada uma interpretação única da concepção política liberal passível de ser partilhada entre indivíduos, em IPRR Rawls insiste na existência de várias concepções políticas de justiça, todas razoáveis porque todas pertencentes à família liberal. Uma família que, porém, se desdobra em vários membros, a serem objecto de escolha e desacordo pelos indivíduos, e na qual a justiça como equidade é apenas uma das possibilidades que pode, ou não, ser escolhida69.

O que une, todavia, estes três momentos distintos numa certa continuidade – sujeitos a uma variação contínua a partir de um progressivo afastamento de um «liberalismo individualista» em direcção a um «liberalismo defensivo»70 – é o que marca a sua distinção face a LoP, que surgiria como um elemento de radicalização do carácter «defensivo» da concepção de justiça internacional que, para alguns críticos, o resultado já não seria reconhecível como liberal. Os três momentos já referidos, apesar das variações, partilham inegavelmente um fundo liberal-democrático, que lhes é conferido pelo facto de todos derivarem de «ideias fundamentais assinaladas como implícitas na cultura política pública de um regime constitucional, tais como as concepções de cidadãos como pessoas livres e iguais e da sociedade como sistema de cooperação equitativa»71.

Como se tornou claro na abordagem a LoP, o fundo implícito de ideias e princípios globais que é mobilizado para daí se extraírem os princípios de justiça não corresponde àquele do qual se servem os indivíduos das três anteriores variantes rawlsianas. Aqui, o pluralismo dita que haja não só povos que não partilham do individualismo ou do igualitarismo estrito da justiça como equidade enquanto doutrina abrangente, como povos que recusam a própria ordenação constitucional democrática como regime que garante aos indivíduos a fruição inviolável dos direitos políticos de cidadania, rejeitando conceber a estrutura básica de uma sociedade como «relação de cidadãos livres e iguais que exercem o poder colectivo supremo como corpo colectivo».

Esta ampliação do universo moral ao qual os princípios de justiça aspiram aplicar-se vem acompanhada de um consequente alargamento do espectro de convicções morais dos agentes envolvidos na cena internacional. Destarte, o exercício de identificar a existência de uma cultura política comum – da qual derive o padrão de moralidade pública que permita discernir quais os princípios de justiça partilhados por todos os agentes – torna-se bastante mais difuso. O que surge como garantido é precisamente a inexistência de um consenso que estabeleça que o tratamento dos cidadãos, por parte de cada Estado, e que o relacionamento entre cidadãos de diferentes estados, deva ser pautado por critérios de autonomia e de igualdade, e muito menos que deva estabelecer-se um esquema redistributivo de recursos que compense os indivíduos confrontados com situações de miséria originadas por factores «moralmente arbitrários».

Como tal, ou a SdP se comporia exclusivamente de povos liberais, à semelhança do modelo kantiano de paz perpétua, ou haveria que proceder a uma descensão dos requisitos para a razoabilidade de uma doutrina internacional abrangente e, consequentemente, da fronteira a partir da qual um regime deve ser tolerado. Foi essa a escolha de Rawls, fazendo coincidir o critério mínimo de legitimidade de um regime – e, logo, da sua aceitabilidade como membro da SdP – com a acepção minimal de direitos humanos que propõe.

Tal escolha será devedora da acepção rawlsiana de legitimidade. Como já foi abordado, por legitimidade Rawls entende as condições sob as quais um conjunto de indivíduos aceita submeter-se à coerção política, acatando a formulação de normas sociais mesmo quando contrariam as suas convicções éticas, mercê da sua confiança na forma convencionada de deliberação pública. Partindo desta definição, Rawls não poderia, ao deslocar o campo de aplicação da concepção política de justiça para o plano internacional, desenvolver uma noção de razão pública centrada em princípios liberais que não têm vigência no imaginário comum dos estados72. No plano externo, posto isto, para que o critério de legitimidade seja operativo terá necessariamente de ser adaptado à composição empírica dos agentes passíveis de se tornarem membros da comunidade internacional governada pela LdP.

São deste modo tornados mais claros quer a transferência do estatuto de sujeitos morais (de destinatários dos princípios de justiça) dos indivíduos para os povos, quer a afirmação que, ao contrário das propostas cosmopolitas, a LdP não se preocupa com o bem-estar dos indivíduos mas com a legitimidade das sociedades. O mesmo para a recusa da extensão do sistema doméstico de justiça distributiva, substituído por um dever de assistência perante os povos (e não, novamente, perante os cidadãos) que dela necessitem para atingir o limiar mínimo de legitimidade internacional. Tal deve-se não a uma incongruência entre as teorias rawlsianas de justiça, mas a um progressivo deslocamento da atenção de Rawls para a tentativa de encontrar um modelo de liberalismo que seja inclusivo, não etnocêntrico, dotado de neutralidade política e adaptado às condições reais dos sistemas de cooperação. No caso da concepção de justiça internacional, essa preocupação redunda num exacerbar do carácter progressivamente «defensivo» que a sua compreensão do liberalismo tinha vindo a tomar ao longo dos anos. De tal modo defensivo que se poderá perguntar se o empobrecimento dos pressupostos liberais em LoP e o progressivo abraçar de um certo relativismo moral não tornou essa matriz fundacional, que Rawls reclama como esteio da obra, praticamente irreconhecível.

No âmbito do modelo de deveres económicos defendido por Rawls para a esfera internacional, poder-se-á igualmente indagar se este, efectivamente, constitui uma concepção de justiça ou se, por outro lado, enformando um certo tipo de obrigação de assistência, a faz repousar em pressupostos que não os de uma teoria da justiça.

 

OS CÁLCULOS DA HUMANIDADE E OS CÁLCULOS DA JUSTIÇA

Os termos que permitirão, segundo o que aqui se sustenta, enquadrar o que está em causa na concepção rawlsiana de assistência económica internacional poderão talvez ser tomados de empréstimo de uma curta novela de Tchekov, na qual, a propósito de um diálogo sobre a melhor forma de afrontar a miséria que lavrava nas aldeias de uma região do interior russo, a questão dos deveres económicos perante os outros é apresentada através de uma divisão binomial entre humanidade (que aqui se apresenta como sinónimo da alegada «caridade»73) e justiça. Sobole, o médico provincial, apresenta a seguinte posição:

«Enquanto as nossas relações com a gente do povo tiverem o carácter da caridade tradicional, tal como ela é praticada nos asilos para crianças e nos hospícios dos velhos, apenas estaremos a usar da astúcia, a enganarmo-nos a nós próprios e aos pobres, e nada mais... [...] As relações entre os homens de todas as classes devem ser práticas, baseadas num sistema racional, na sabedoria e na justiça74

Extrapolando a situação para o plano internacional, esses dois termos (e o tipo de obrigações que deles decorrem) constituem, como veremos, uma dualidade dotada de carácter explicativo quanto ao posicionamento de Rawls na abordagem à questão da justiça global.

A sua recusa em consignar um mecanismo de justiça distributiva para o plano global – negando a simetria entre esfera doméstica e a esfera internacional no que toca a características moralmente relevantes, e propondo para esta última um dever de assistência interestatal – repousa fundamentalmente em dois argumentos, avançados nos capítulos finais de LoP.

O primeiro adianta que os propósitos redistributivos que decorrem da LdP são assegurados pelo princípio de assistência, sendo por isso redundante propor um princípio mais robusto, que, além disso, extravasaria as necessidades às quais uma LdP responde. No plano da sociedade doméstica cuja estruturação da cultura pública se coadune com os pressupostos da justiça como equidade, recordemo-lo, um mecanismo redistributivo contínuo e de pendor igualitário é necessário para corrigir as assimetrias na distribuição de bens sociais primários motivadas por factores arbitrários. No plano internacional, não se considerando as assimetrias quanto à posse de bens e recursos, nem a arbitrariedade da sua distribuição, como dados moralmente relevantes, não é imperativo corrigi-los. Para Rawls, as metas às quais cada povo aspira, as que seriam acordadas na posição original internacional como objectivos a serem potenciados pelos princípios de justiça a estabelecer, são, essencialmente, atingir instituições políticas que sejam decentes, garantir a observância dos direitos humanos, e atender às necessidades básicas dos cidadãos. Como tal, o único propósito do dever de assistência é garantir que todos os estados que aspirem a reunir as condições para uma efectiva autonomia e boa ordenação interna consigam, efectivamente, efectuar a «transição» que lhes permita aceder a esse patamar. Elevar o padrão mínimo de riqueza dos povos para além desse limiar, ou limitar as desigualdades de riqueza entre povos, derivaria já de princípios (individualistas, igualitários) que não são partilhados pelos povos que compõem a esfera internacional75.

Este argumento é, ademais, reforçado por duas premissas respeitantes ao estatuto moral da concentração de riqueza. A primeira, que a riqueza não é uma variável indispensável para se garantir um ordenamento político-constitucional conveniente. Uma sociedade bem ordenada necessitará apenas de possuir um nível de riqueza suficiente para garantir a perpetuação de instituições justas que proporcionem o referido limiar mínimo de liberdade e autonomia aos cidadãos76. A segunda, confirmando a anterior, dita que o elemento verdadeiramente crucial para assegurar um regime legítimo é a «cultura política» de um povo, as suas tradições religiosas, morais e filosóficas, e a diligência e probidade dos seus cidadãos77.

O segundo argumento que leva Rawls a rejeitar um modelo de justiça distributiva prende-se com o facto de este acarretar consequências inaceitáveis. Impede, nomeadamente, que as sociedades mais diligentes se distingam das outras através de uma concentração de riqueza que derivaria em exclusivo do mérito da sua população e das decisões acertadas dos seus governantes. De modo a não incorrer em tais entraves à autonomia dos estados, o dever de assistência em LdP tem, como vimos, um «alvo» definido, que determinará igualmente o «ponto de cessação» (cutoff point) da ajuda que é canalizada para um dado Estado. Será suspensa assim que o Estado atinja a meta definida na posição original: o estatuto de autonomia e boa ordenação que lhe permita tornar-se um povo razoável e, desse modo, integrar a SdP. Estando o «alvo» atingido, as transferências económicas não têm razões para prosseguir78.

O que, para Rawls, falha nas concepções cosmopolitas de justiça é o facto de não definirem nenhum «alvo» que justifique a assistência e que, por sua vez, estabeleça a meta que marque a cessação da assistência. Para os cosmopolitas, a assistência deverá continuar indefinidamente, mesmo após as determinações que presidem ao dever de assistência terem sido satisfeitas. O resultado dessa orientação será uma igualitarização artificial da situação dos povos, um nivelamento que impede o justo reconhecimento e os ganhos acrescidos legítimos das sociedades que invistam na maximização dos seus recursos. Rawls refere dois exemplos79. O primeiro, o de duas sociedades que, contando, numa hipotética situação inicial, com o mesmo nível de recursos naturais, se diferenciam posteriormente em consequência de terem prosseguido diferentes planos de desenvolvimento: uma terá investido em políticas de industrialização e de austeridade financeira, enquanto que a outra, mais bucólica, privilegiou o lazer dos cidadãos. Esta bifurcação traduziria, a médio prazo, um hiato no nível de riqueza das duas sociedades, ficando a primeira com reservas muito mais abundantes. A segunda permaneceria, porém, com um nível de recursos suficiente para garantir as cláusulas que ditam a sua boa ordenação. O segundo exemplo de Rawls é em todo semelhante, apenas mudando os termos que ditam a dissemelhança de percurso entre as sociedades – neste segundo exemplo, a diferença é marcada pelo facto de uma sociedade ter atingido uma taxa de crescimento zero no que concerne à população, e a segunda ter observado um crescimento populacional exponencial; o resultante é um maior nível de riqueza para a primeira sociedade, embora ambas se mantenham autónomas e decentes.

Posto isto, o que seria inaceitável na proposta cosmopolita é que esta, impelindo à formação de uma estrutura taxativa que procederia a transferências contínuas entre os povos até que os níveis de riqueza fossem nivelados, nega o cariz meritocrático que subjaz à diferença entre povos quanto ao nível de provimento, e a autonomia por parte de cada um para fazer escolhas quanto às opções políticas a seguir. Povos que, contudo, concentram um número suficiente de recursos para não necessitarem forçosamente de mais80.

Os postulados sobre os quais assenta a posição de Rawls face a uma eventual redistribuição de recursos entre povos padecem, contudo, de inúmeras fragilidades, que comprometem a robustez que uma concepção de justiça aplicável à esfera internacional necessariamente carece. Abordarei as mais notórias.

Rawls, antes de mais, ao veicular a noção de «povos» como assente numa acepção unitária de agregado populacional (não considerando a existência de minorias, de migrantes, ou de dissidentes), não só os assume erroneamente como entidades dotadas de homogeneidade, como torna permissível que as decisões políticas tomadas no âmbito nacional sejam injustas para com os grupos referidos, que só artificialmente se poderiam considerar parte de um agregado perfeitamente coeso81. Do mesmo modo, quando na posição original internacional, as partes contratantes não estarão verdadeiramente a representar os respectivos povos, mas uma interpretação da unidade nacional assente num simulacro de homogeneidade.

Em segundo lugar – no que será uma fragilidade quanto à coerência interna dos conceitos que Rawls emprega – não são avançados dados que garantam a verosimilhança do conjunto de decisões que Rawls alega resultarem da deliberação dos representantes na posição original internacional. Poder-se-á perguntar, como o fez Pogge, por que razão os representantes, desconhecendo as suas posições de partida, não quereriam assegurar uma distribuição de maior amplitude que aquela que seria, segundo Rawls, consignada. Por que razão não assumem os delegados que o seu povo, «tudo o mais constante, preferiria ter um padrão de vida superior, e não inferior»82. Tanto mais que, no primeiro estádio da posição original internacional, apenas estariam presentes representantes de povos liberais. Rawls não nos dá, portanto, motivos que justifiquem que a escolha da abrangência do princípio de assistência económica se limitasse às condições de autonomia do corpo institucional do Estado.

Em terceiro lugar, o postulado segundo o qual o critério determinante para o acesso a um nível de riqueza satisfatório (e, inversamente, a causa explicativa da pobreza nacional) depende na sua maior parte da cultura política de um povo, das instituições e políticas que o Estado desenvolve, é uma asserção de validade empírica duvidosa. Esta premissa, nomeada por Pogge de «nacionalismo explicativo»83, negligencia dois factores inequivocamente inerentes à esfera internacional.

O primeiro, a não inocuidade do influxo do contexto internacional nas decisões políticas internas de um Estado; ou seja, por exemplo, a possibilidade de as elites governativas – e, por consequência, o desenho das políticas públicas – serem alvo de pressões, manipulações e subornos por parte dos restantes actores internacionais84.

O segundo factor prende-se com a constatação que a explicação causal do nível de vida de uma população depende de mais variáveis do que simplesmente a cultura política e o empreendedorismo de um povo, ou os recursos naturais que possui. Para além dos motivos estritamente domésticos, os fenómenos transnacionais jogam um papel não negligenciável. O nível actual de interdependência económica impede, ao contrário do que parece tacitamente decorrer da posição de Rawls, a consideração das sociedades como entidades autárquicas. Pelo contrário, nas palavras de Beitz, a integração profunda dos mercados, assim como o surgimento de estruturas regulativas, formais e informais, das transacções globais, levam a que se possa considerar a existência de um «esquema global de cooperação social», ou, por outras palavras, de uma «estrutura básica global», análoga à que recobre a esfera interna de um Estado85. O corolário desta situação – se, como Beitz, se encarar a cooperação como um dos elementos fundacionais que ditam o surgimento de deveres de justiça entre os participantes da mesma estrutura básica – será constatar que «a interdependência económica internacional apoia a criação de um princípio global de justiça distributiva semelhante ao que vigora na sociedade doméstica»86.

Acima de tudo, porém, os pressupostos da moral internacional proposta por Rawls não parecem ser consentâneos com a sua própria definição do papel de uma concepção de justiça como aquela que fornece «um padrão que permita avaliar os aspectos distributivos da estrutura básica da sociedade»87 e que, dessa forma, como «virtude primeira das instituições sociais», impõe a rejeição das leis ou instituições que contribuam para uma situação de injustiça na forma como os bens sociais são alocados aos agentes que se envolvem no sistema de cooperação social88. Em LoP, o dever de assistência não procede a esse tipo de avaliação da estrutura básica (global) no qual opera, tomando-a antes como instância naturalizada, dada a priori e, desse modo, legitimando quer o estado actual da distribuição de recursos e riqueza, quer as normas que codificam a sua posse e distribuição. Com efeito, quando emprega o conceito de estrutura básica para a compreensão da esfera internacional, não o faz nos termos de uma avaliação das formas como as instituições distributivas globais determinam a divisão das vantagens da cooperação, mas entende-o apenas como designando o espaço no qual deve assentar o respeito mútuo entre os povos na SdP89. Por isso, o princípio de justiça económica da LdP tem por ponto de cessação o momento em que um povo, acedendo à autonomia na gestão dos assuntos internos, é passível de ser respeitado pelos demais povos decentes.

A proposição de um dever assistencialista em LoP a partir da definição prévia de um cutoff point é um dos dados que nos permite remeter a fundamentação rawlsiana desse dever para a divisão, proposta por Brian Barry90, entre «deveres de humanidade» como ancorados em objectivos (goal-based) e «deveres de justiça» como ancorados em direitos (rights-based). Os primeiros, como em LoP, determinam um propósito da assistência, fazendo-a cessar assim que aquele for alcançado. O objectivo que se institui como móbil da acção é, segundo Barry, assegurar o bem-estar dos sujeitos morais (no caso de LoP, trata-se, então, do bem-estar dos povos), o que neste caso é entendido como a satisfação das suas necessidades básicas. O propósito da justiça, pelo contrário, é definir princípios que determinem as condições da posse legítima sobre os bens sociais por parte dos indivíduos que partilhem um sistema de cooperação, estabelecer os direitos constantes e invioláveis que um agente tem sobre um determinado conjunto de bens. «O objecto da justiça, alega Barry, é a distribuição de controlo sobre os recursos materiais. [...] A humanidade é uma questão de fazer o bem; a justiça é uma questão de poder.»91 Neste sentido, o que uma concepção de justiça procura determinar será não o processo que organizará uma redistribuição de recursos dos seus proprietários legítimos para os mais pobres mas o critério segundo o qual a própria legitimidade da posse dos recursos mundiais será avaliada, definindo «o que pertence por justiça a cada país»92.

Ao não pugnar por uma avaliação (e possível transformação, caso se concluísse haver desacertos) da estrutura básica global mas por uma mera contribuição humanitária dos países desafogados para com as sociedades depauperadas, Rawls não faz jus ao que, segundo os seus próprios pressupostos, caracterizaria a actuação internacional de uma concepção de justiça. Para ser concebida como justiça, esta deveria desenrolar-se – como defendem aqueles que propõem um entendimento cosmopolita dos princípios rawlsianos para a esfera doméstica – a partir de uma avaliação crítica do sistema de propriedade e da actuação económica dos agentes no sistema comercial mundial. Esse pendor avaliativo surgiria como garante da correcção de eventuais desequilíbrios sistémicos que concorressem para a perpetuação de desigualdades entre estados e populações. Só num momento subsequente, quando as regras básicas que orientarão o «objecto primário da justiça» estiverem definidas, se poderia partir para a determinação dos deveres humanitários que, mesmo numa estrutura básica justa, poderão subsistir93. Nas palavras de Barry: «Não podemos, com sensatez, falar de humanidade se não tivermos uma base de referência definida pela justiça. Falar do que eu devo, como injunção de justiça, fazer com o que é meu não fará sentido até termos estabelecido, em primeiro lugar, o que é meu.»94

Ao não considerar a ordenação hierárquica da dualidade entre deveres de justiça e deveres humanitários, invertendo os termos e não considerando prioritário aquele que deveria ter primazia, a obra de Rawls vê a sua aspiração explicativa dos fenómenos moralmente pertinentes que se desenrolam no plano global – e, logo, a validade dos princípios que dela derivam e que procuram configurar um cenário realisticamente utópico – seriamente comprometida.

«Ah! Se falássemos menos de humanidade e fizéssemos melhor as contas!», remata Sobole, a personagem da novela de Tchekov95.

 

NOTAS

1 DOSTOIÉVSKI, Fiódor – Os Irmãos Karamazov. Lisboa: Editorial Presença, 2002 [1880], vol. I.         [ Links ]

2 HUME, David – An Enquiry Concerning the Principles of Morals: A Critical Edition. Oxford: Clarendon Press, 1998 [1751]         [ Links ].

3 Declara-se, por exemplo, que a lógica mercantil não deve subsistir numa busca ensimesmada pela mera produção de riqueza. Deve sim, temperada pelo agir político, ser orientada para a prossecução do bem comum, através da função redistributiva que cabe ao Estado (secção 36.ª).

4 ROEMER, John – Theories of Distributive Justice. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1998 [1996], p. 1.         [ Links ]

5 RAWLS, John – A Theory of Justice. Revised Edition. Oxford: Oxford University Press, 1999 [1971], p. 6.         [ Links ]

6 Textualmente, Rawls refere que «os homens não são indiferentes à forma como os maiores benefícios produzidos pelos seus labores conjuntos são distribuídos, já que de modo a potenciar os seus próprios objectivos cada um prefere a maior à menor parte. Uma concepção de justiça é um conjunto de princípios para escolher entre modelos sociais que determinam esta divisão e para garantir um consenso quanto à repartição adequada dos bens [the proper distributive shares]» (RAWLS, John – «Distributive Justice». In Collected Papers. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1999, p. 130]         [ Links ].

7 Por tendência igualitária entenda-se, neste contexto, a proposição de uma concepção de justiça económica cujo objectivo seja estabelecer um limiar para as desigualdades aceitáveis entre indivíduos em termos de alocação de bens e rendimentos (SANGIOVANNI, Andrea – «Global justice, reciprocity, and the State». In Philosophy & Public Affairs. Vol. 35, N.º 1, 2007, p. 3n).         [ Links ]

8 BEITZ, Charles – Political Theory and International Relations. Princeton: Princeton University Press, 1979, p. 127.         [ Links ]

9 BLAKE, Michael – «International justice». In ZALTA, E. N. (ed.) – The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2009 Edition), 2005. [Consultado em: 15 de Janeiro de 2010]. Disponível em: http://plato.stanford.edu/archives/win2009/entries/international-justice        [ Links ]

10 É justamente a inadmissibilidade de uma estrutura básica que estratifique a repartição de bens entre cidadãos a partir de um critério ancorado no arbítrio que leva Rawls a engendrar um dispositivo de representação – a posição original – que, pela colocação dos decisores morais numa situação de desconhecimento da circunstância particular em que cada um se insere, tanto a nível de características pessoais como de posicionamento social, garanta uma posição de estrita igualdade na definição dos princípios de justiça que orientarão as instituições sociais. É, aliás, do carácter equitativo dessa posição particular que Rawls retira a propriedade da expressão justice as fairness (RAWLS, John – A Theory of Justice. Revised Edition, pp. 12, 15, 74, 75, 311).         [ Links ]

11 O que pressuporia um entendimento cosmopolita de pertença identitária moralmente relevante (isto é, aquela a partir da qual decorre o sistema de direitos e deveres que abrangem cada indivíduo), ou seja, um entendimento de pessoa cuja «fidelidade primária seja à comunidade de seres humanos no mundo inteiro» (NUSSBAUM, Martha – «Patriotism and cosmopolitanism». In The Boston Review. Vol. 19, N.º 5, 1994. [Consultado em: 15 de Janeiro de 2010]. Disponível em: http://bostonreview.net/BR19.5/nussbaum.html ).         [ Links ]

12 HIRST, Paul, e THOMPSON, Grahame – Globalization in Question: The International Economy and the Possibilities of Governance. Cambridge: Polity Press, 1999.         [ Links ] Cf. igualmente BADER, Veit – «Citizenship and exclusion: radical democracy, community, and justice. Or, what is wrong with communitarianism?». In Political Theory. Vol. 23, 1995, p. 214.         [ Links ] Esta mesma constatação levou, por exemplo, Joseph Carens a classificar a noção moderna de cidadania como equiparável ao estatuto do indivíduo na era feudal e à estratificação social que daí decorria, isto é, como algo estritamente determinado pelas circunstâncias de nascimento de cada um. «Ter nascido cidadão de um país afluente como o Canadá é como ter nascido na nobreza [...]. Ter nascido cidadão de um país pobre como o Bangladesh é (para a maior parte) como ter nascido no campesinato da Idade Média [CARENS, Joseph – «Migration and morality: a liberal egalitarian perspective». In BARRY, B., e GOODIN, R. (eds.), Free Movement. Hertfordshire: Harvester Wheatsheaf, p. 26].

13 POGGE, Thomas – «An egalitarian law of peoples». In Philosophy & Public Affairs. Vol. 23, N.º 3, 1994, pp. 195-224;         [ Links ] POGGE, Thomas – «The incoherence between Rawls’s theories of justice». In Fordham Law Review. Vol. 77, 2004, pp. 1739-1760; TAN, Kok-Chor – Toleration, Diversity, and Global Justice. University Park: Pennsylvania State University Press, 2000.         [ Links ]

14 POGGE, Thomas – «Rawls and global justice». In The Canadian Journal of Philosophy. Vol. 18, N.º 2, 1988, pp. 227-256;         [ Links ] POGGE, Thomas – Realizing Rawls. Nova York: Cornell University Press, 1989;         [ Links ] BEITZ, Charles – Political Theory and International Relations.         [ Links ]

15 Em «Uma Teoria da Justiça» (RAWLS, John – A Theory of Justice. Revised Edition, pp. 331-333),         [ Links ] RAWLS aborda muito brevemente o que seria um sistema de princípios do que ainda chama de «lei das nações», fazendo-o repousar na ideia contratualista e na existência de uma posição original de segunda ordem, e avançando alguns princípios, «familiares» face ao que era consignado pelo direito internacional. Na Amnesty Lecture da qual resultou o artigo intitulado «The law of peoples» (RAWLS, John – «The Law of Peoples». In SCHUTE, S. e HURLEY, S. (eds.), On Human Rights: The Oxford Amnesty Lectures. Nova York: Basic Books, 1993.         [ Links ] Reimpresso em RAWLS, J. – Collected Papers, pp. 529-564) a construção rawlsiana surge já com uma configuração análoga à que seria apresentada no livro que se lhe seguiria; o que é particularmente importante, enquadrada como uma concepção «política» de justiça. Porém, no elenco de princípios de justiça presentes no artigo não consta ainda o dever de assistência económica aos «povos onerados» (burdened societies), que aqui me interessará particularmente.

16 Em LoP, ao contrário da restante obra de Rawls, são os povos, e não os indivíduos, as unidades morais primárias. São os povos que se apresentam representados como partes contratantes na posição original internacional e, como tal, são eles os sujeitos dos direitos e os depositários das obrigações a serem definidos. Povos, para Rawls, não é sinónimo de estados. Este último termo remete para o entendimento clássico – realista – das unidades políticas territoriais como entidades dotadas de soberania absoluta, com discricionariedade interna e projecção externa a partir do seu poderio militar posto ao serviço da maximização racional dos interesses nacionais (pp. 25, 27, 28). O termo povos designa, ao invés, uma transformação na configuração interna dos estados, através da sua conformação aos preceitos do direito internacional e dos direitos humanos, limitando o monopólio do poder interno e prescindindo da agressão externa como meio permissível para fazer avançar os interesses particulares. Os estados feitos povos deixaram de nortear a sua actuação pelo puro cálculo em termos de raison d’état, sobrepondo à racionalidade a «razoabilidade», e adquirindo por essa via um «carácter moral» (pp. 27-29). A constituição de um Estado enquanto Povo estipulará, por conseguinte, a condição necessária para se poder aceder à sociedade dos povos. A diferenciação entre povos e estados tem sido apontada por vários comentadores como equívoca, já que os povos rawlsianos, apesar de serem destituídos de algumas prerrogativas clássicas da soberania estatal, não deixam de ser ordenados politicamente como estados, assim como os princípios delineados para a esfera global são os mesmos que têm norteado as relações interestatais. A concepção de Rawls não se conseguiria, portanto, deslocar de um estatuto vestefaliano. Veja-se, por exemplo, BUCHANAN, Allen – «Rawls’s law of peoples: rules for a vanished westphalian world». In Ethics. Vol. 110, N.º 4, 2000, pp. 698-703.

17 RAWLS, John – The Law of Peoples. Cambridge. Harvard University Press, 1999, p. 9.         [ Links ]

18 Ibidem, p. 3.

19 Ibidem, p. 14.

20 Ibidem, p. 24.

21 Ibidem, p. 25.

22 KANT, Immanuel – «Toward perpetual peace». In GREGOR, M. J. (ed.) – The Cambridge Edition of the Works by Immanuel Kant – Practical Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1996 [1795], pp. 317-351.         [ Links ]

23 DOYLE, Michael – «Liberalism and world politics». In The American Political Science Review. N.º 80, B. 4, 1986, p. 1162.         [ Links ]

24 RAWLS, John – The Law of Peoples, p. 71.         [ Links ]

25 Ibidem, pp. 64, 71 e 72.

26 Ibidem. A acepção rawlsiana de direitos humanos a serem respeitados, pelo carácter minimal do catálogo que propõe, é particularmente problemática. Dele fazem parte o direito à liberdade como ausência de servidão, a uma «medida relativa» de liberdade de consciência, à propriedade privada, e a que «casos semelhantes sejam tratados da mesma forma» (p. 65). Esta «classe especial de direitos urgentes» (p. 79), cujo respeito garantirá a legitimação de um regime político aos olhos dos membros da SdP, deixa de fora, por exemplo, o direito à liberdade de expressão, o direito à não discriminação racial ou sexual, o direito ao voto, o direito à educação, etc. A análise desta questão não é, porém, do âmbito deste texto, focado nos direitos e deveres económicos. Sobre o catálogo dos direitos humanos em LoP como renúncia às pretensões da validade universal dos direitos ou como «traição ao liberalismo» veja-se, por exemplo, BUCHANAN, Allen – «Rawls's Law of Peoples: Rules for a Vanished Westphalian World». In Ethics. Vol. 110, N.º 4, 2000, p. 697; CABRITA, Maria João – «Os Direitos Humanos nos contornos da Utopia Realista». In Diacrítica – Série de Filosofia e Cultura, N.º 23, Vol. 2, 2009, pp. 231-247;         [ Links ] CANEY, Simon – «Survey Article: Cosmopolitanism and the Law of Peoples». In The Journal of Political Philosophy. Vol. 10, N.º 1, 2002, pp. 100-104;         [ Links ] CANEY, Simon – Justice Beyond Borders: A Global Political Theory. Nova York: Oxford University Press, 2005, pp. 83-85;         [ Links ] GUILLARME, Bertrand – «Y a-t-il des principes de justice pertinents hors des frontières des régimes démocratiques?». In RAWLS, John – Le droit des gens, Paris: Esprit, 1996, pp. 22, 25-29, 34.         [ Links ]

27 RAWLS, John – The Law of Peoples, pp. 64-66.         [ Links ] Povos liberais e povos hierárquicos decentes (formando ambos o conjunto dos «povos bem ordenados») são dois termos da tipologia de povos que Rawls apresenta, da qual fazem parte ainda mais três arquétipos, nenhum deles passível de pertencer à sociedade dos povos. Os estados párias caracterizam-se por terem uma postura despótica no plano interno e belicosa no externo (pp. 5 e 90) e, como tal, podem legitimamente ser alvo de agressão por parte dos povos bem ordenados, inclusivamente visando uma mudança de regime (pp. 48 e 81). Os absolutismos benevolentes são os regimes que, podendo respeitar uma parte substancial dos direitos humanos veiculados pelos princípios da LdP, impedem aos seus habitantes qualquer tipo de participação política relevante, e como tal não podem constar do grupo de povos bem ordenados (p. 4). Finalmente, as sociedades oneradas, «submetidas ao fardo de condições desfavoráveis», são aquelas que, não tendo uma postura externa agressiva, não respeitam os requisitos internos que lhes permitiriam alcançar o estatuto de boa ordenação. Esse desrespeito pelas condições mínimas de razoabilidade não é, porém, encarado como irreversível, já que muitas vezes seria resultado de um défice de cultura política ou dos meios financeiros e tecnológicos que permitam construir um Estado de direito (pp. 5, 105-106). Este tipo de sociedades é particularmente relevante no âmbito deste texto, já que um dos princípios da LoP determina o dever de assistência financeira por parte dos povos afluentes aos estados cuja possibilidade de acederem a uma boa ordenação interna, estando por concretizar, é alcançável e de alguma forma se encontra em latência.

28 RAWLS, John – The Law of Peoples, pp. 18-19, 59-90, 68, 121-122.         [ Links ]

29 Ibidem, pp. 59-60, 67-68.

30 Os representantes dos povos, aquando da determinação dos princípios de justiça a partir de um conjunto de normas tradicionais na prática e direito internacionais (p. 40), desconhecerão «o tamanho do seu território ou da sua população, ou o poder relativo do povo» que representam, e, na mesma medida, «o nível dos seus recursos naturais ou do desenvolvimento económico» (pp. 32-33).

31 RAWLS, John – The Law of Peoples, p. 10.         [ Links ]

32 «1. Os povos são livres e independentes, e a sua liberdade e independência devem ser respeitadas pelos outros povos. 2. Os povos devem respeitar os tratados e os compromissos. 3. Os povos são iguais e partes dos acordos que os vinculam. 4. Os povos devem observar um dever de não intervenção. 5. Os povos têm o direito à autodefesa mas não a instigar uma guerra por motivos outros que a autodefesa. 6. Os povos devem honrar os direitos humanos. 7. Os povos devem observar certas restrições específicas na sua conduta durante a guerra. 8. Os povos têm um dever de assistir outros povos que vivam sob condições desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo ou decente» (p. 37).

33 RAWLS, John – The Law of Peoples, pp. 86, 113 e 121.         [ Links ]

34 O princípio da diferença, conforme foi grafado em Justice as Fairness: A Restatement, surge-nos na seguinte forma: «As desigualdades económicas e sociais devem satisfazer duas condições: [...] em segundo lugar, ser para o maior benefício dos membros menos favorecidos da sociedade» (RAWLS, John – Justice as Fairness: A Restatement. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 2001, pp. 42-43).         [ Links ]

35 RAWLS, John – The Law of Peoples, pp. 106 e 111.         [ Links ]

36 Ibidem, p. 118.

37 Ibidem, pp. 111-119.

38 Para salientar a diferença que esta posição marca face à abordagem tradicional de Rawls, recorde-se uma passagem de TJ na qual se declara que nessa obra se propõe uma «concepção de justiça cuja base teórica é individualista», recusando-se ancorá-la num «conceito indefinido de comunidade, ou supor que a sociedade é um todo orgânico dotado de uma vida própria que é distinta da e superior à de todos os seus membros nas suas relações uns com os outros» (RAWLS, John – A Theory of Justice. Revised Edition, p. 264).         [ Links ]

39 Para se fornecer uma definição breve de cosmopolitismo poder-se-á recorrer a Pogge. Este afirma que, para além de todas as tipologias, há três elementos fundacionais partilhados por todas as variantes cosmopolitas. «Em primeiro lugar, o individualismo: as unidades últimas de consideração [moral] são seres humanos, ou pessoas – em vez de, digamos, linhas familiares, tribos, comunidades étnicas, culturais ou religiosas, nações, ou estados. Em segundo lugar, a universalidade: o estatuto de unidades básicas de consideração estende-se igualmente a todos os seres humanos vivos – não apenas a alguma subcategoria, como homens, aristocratas, arianos, brancos, ou muçulmanos. Em terceiro lugar, a generalidade: este estatuto especial tem força global. As pessoas são unidades básicas de consideração para todos – não apenas para os seus compatriotas, pares na religião, ou semelhante» (POGGE, Thomas – «Cosmopolitanism and sovereignty». In Ethics. Vol. 103. N.º 1, 1992, pp. 48-49).         [ Links ]

40 RAWLS, John – «Kantian constructivism in moral theory». In The Journal of Philosophy. Vol. 77, N.º 9, 1980, p. 543.         [ Links ]

41 POGGE, Thomas – Realizing Rawls. Nova York: Cornell University Press, 1989, p. 247.         [ Links ]

42 TAN, Kok-Chor – Justice without Borders: Cosmopolitanism, Nationalism, and Patriotism. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 75.         [ Links ]

43 BEITZ, Charles – Political Theory and International Relations, pp. 143-153;         [ Links ] BEITZ, Charles – «Cosmopolitan ideals and national sentiment». In Journal of Philosophy. Vol. 80, N.º 10, 1983, p. 595;         [ Links ] POGGE, Thomas – «Rawls and global justice». In The Canadian Journal of Philosophy. Vol. 18, N.º 2, 1988, p. 233;         [ Links ] POGGE, Thomas – Realizing Rawls, p. 247;         [ Links ] POGGE, Thomas – «An egalitarian law of peoples», pp. 208-211.         [ Links ]

44 RAWLS, John – The Law of Peoples, p. 120.         [ Links ]

45 RAWLS, John – «The Law of Peoples». In SCHUTE, S., e HURLEY, S. (eds.) – On Human Rights: The Oxford Amnesty Lectures. Nova York: Basic Books, 1993,         [ Links ] reimpresso em RAWLS, J. – Collected Papers. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1999, pp. 548-549.         [ Links ]

46 RAWLS, John – The Law of Peoples, p. 60.         [ Links ]

47 Ibidem, p. 118.

48 Ibidem, p. 122.

49 Por utopia realista Rawls entende um cenário que conjugue o potencial de alcançabilidade com o estatuto de resultado altamente desejável no que concerne à estruturação da SdP. Nesse contexto, o cenário realisticamente utópico de LoP é aquele que resultará de uma aplicação maximal dos princípios internacionais às relações entre povos. Tal cenário conjugaria o alargamento do espectro das sociedades bem ordenadas, potenciado pelo princípio de assistência humanitária, a contenção e pacificação dos estados agressivos, e a vigência estável dos direitos humanos. Dito de outro modo, seria um cenário em que se unissem a «razoabilidade e a justiça com as condições que permitem aos cidadãos realizar os seus interesses» (pp. 7, 126-128).

50 ACKERMAN, Bruce – «Political liberalisms». In Journal of Philosophy. Vol. 91, N.º 7, 1994, p. 383;         [ Links ] HOFFMANN, Stanley – «Dreams of a just world». In The New York Review of Books. Vol. 42, N.º 17, 1995, p. 54;         [ Links ] TAN, Kok-Chor – «Liberal toleration in Rawls’s Law of Peoples». In Ethics. Vol. 108, N.º 2, 1998, p. 285.

51 TESÓN, Fernando – «The rawlsian theory of international law». In Ethics & International Affairs. Vol. 9, N.º 1, 1995, p. 85.         [ Links ]

52 A expressão é tomada de empréstimo a Max Weber (WEBER, Max – «A política como vocação». In O Político e o Cientista. Lisboa: Editorial Presença, 1979 [1922], pp. 74-99).         [ Links ]

53 RAWLS, John – «The Law of Peoples», p. 530. Cf., igualmente, RAWLS, John – The Law of Peoples, pp. 59-60.         [ Links ]

54 RAWLS, John – «The idea of public reason revisited». In Collected Papers. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1999, p. 573.         [ Links ]

55 Na terminologia rawlsiana, o termo «doutrina abrangente» (comprehensive doctrine) designa uma concepção moral de cariz holístico, aspirando a governar todos os aspectos da vida: estabelecendo, desse modo, por exemplo, uma concepção de bem e de vida boa, um conjunto de normas de conduta, de ordenação social, e uma visão filosófica ou teológica do mundo. Nas palavras de Rawls, «uma concepção será totalmente abrangente se cobrir todos os valores e virtudes reconhecidos num sistema único e articulado de forma precisa» (RAWLS, John – Political Liberalism. Nova York: Columbia University Press, 1993, p. 13).         [ Links ]

56 RAWLS, John – Political Liberalism, p. 37.         [ Links ]

57 «O exercício do poder político será totalmente aceitável apenas quando for exercido conforme uma Constituição, e quando se puder razoavelmente esperar que os seus fundamentos serão subscritos por todos os cidadãos como livres e iguais, à luz de princípios e ideais aceitáveis à sua razão humana comum» (Ibidem, p. 137). O campo de aplicação que Rawls define para a concepção de justiça que norteará as instituições políticas e, consequentemente, as relações sociais, prende-se, deste modo, com a escolha dos «fundamentos» de uma Constituição, ou, como igualmente os nomeia, dos «fundamentos constitucionais e [d]as questões de justiça básica». Entre estes compreendem-se quer as decisões concernentes à estrutura do governo e do processo político (a tripartição dos poderes e as relações entre os órgãos legislativos, executivos e judiciais; a composição e forma de designação dos governos) quer aquelas que dizem respeito aos direitos e liberdades básicos e ao seu entrosamento com o poder político (Ibidem, pp. 227 e 230).

58 RAWLS, John – «The domain of the political and overlapping consensus». In Collected Papers, p. 484.         [ Links ]

59 RAWLS, John – «The idea of public reason revisited». In Collected Papers, p. 611.         [ Links ]

60 Ibidem, pp. 574 e 607.

61 Entre eles contam-se aqueles princípios «familiares» que ditam a liberdade de cada cidadão, a igualdade entre todos e a equidade da cooperação social (direitos como o que estabelece o livre uso da razão e da palavra, a liberdade religiosa, a protecção das minorias, a igualdade entre sexos, etc.). RAWLS, John – Political Liberalism, p. 14.         [ Links ]

62 RAWLS, John – «The idea of public reason revisited», pp. 575 e 577.         [ Links ]

63 Ibidem, p. 576; RAWLS, John – Political Liberalism, pp. 14 e 195.

64 Como tal, será aceitável que numa igreja não seja concedido às mulheres o direito de ingressarem no sacerdócio, ou as inscrições num clube privado sejam restringidas a determinados grupos da população, ou ainda que na distribuição de tarefas numa família haja uma desigualdade que favoreça o homem. O que tornaria estas situações irrazoáveis, e portanto legitimamente criticadas e desafiadas, seria o não se conceder aos indivíduos em causa os direitos públicos básicos que têm enquanto cidadãos – por exemplo, o direito à dignidade e à integridade física, o direito de voto e de participação política, o direito de abandonarem tais associações e integrarem outras, o direito à educação, etc. (TAN, Kok-Chor – «Liberal toleration in Rawls’s Law of Peoples», p. 278).

65 DREBEN, Burt – «On Rawls and political liberalism». In FREEMAN, S. (ed.) – The Cambridge Companion to Rawls. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 235.         [ Links ] Nas palavras de Rawls: «Valores políticos não são doutrinas morais, por mais que estejam disponíveis ou sejam acessíveis à nossa razão e reflexão em termos de senso comum. As doutrinas morais estão no mesmo nível que a religião e a filosofia primeira. Pelo contrário, os valores e princípios políticos liberais, embora sejam intrinsecamente valores morais, são especificados por concepções de justiça liberais políticas e caem na categoria do político» (RAWLS, John – «The idea of public reason revisited», p. 584).         [ Links ]

66 RAWLS, John – «The idea of public reason revisited», p. 608.         [ Links ] Ao ser um possível objecto de «consenso por sobreposição», os princípios liberais atingem, por sua vez, o estatuto de independência (freestanding). Tornados independentes de qualquer fundamentação moral abrangente, organizados estritamente como princípios políticos, estão aptos a constituírem o «campo neutro» onde as diversas doutrinas abrangentes possam exercer as suas reivindicações na esfera pública (RAWLS, John – Political Liberalism, pp. 144 e 155).         [ Links ]

67 Não me proponho a sustentar que há várias «teorias da justiça» em Rawls, mas apenas que houve, ao longo das obras, uma alteração paulatina no entendimento quanto à abrangência da aplicação dos princípios de justiça. Tal alteração deveu-se, fundamentalmente, a uma mutação na consideração do universo moral ao qual os princípios se aplicam, mutação introduzida pela atenção crescente que as questões do pluralismo e da alteridade suscitara em Rawls. Estas movimentações no seio da concepção rawlsiana traduziram-se, por conseguinte, numa progressiva inflexão relativizadora da abrangência dos princípios de justiça, culminando com a preterição dos dois princípios tradicionais na consideração de uma razão pública para a esfera internacional, a que é mais tocada, e de forma mais intensa, pela presença de múltiplas alteridades.

68 Em IPRR, Rawls expõe da seguinte forma as diferenças entre TJ e PL: «Os dois livros são assimétricos, embora ambos tenham uma ideia de razão pública. No primeiro, a razão pública é dada por uma doutrina liberal abrangente, enquanto que no segundo a razão pública é uma forma de argumentar sobre valores políticos partilhados por cidadãos livres e iguais que não violará as doutrinas abrangentes dos cidadãos enquanto estas forem compatíveis com um regime democrático» (RAWLS, John – «The idea of public reason revisited», pp. 614-615).         [ Links ]

69 Ibidem, pp. 578 e 581; DREBEN, Burt – «On Rawls and political liberalism», pp. 320 e 338-339.         [ Links ]

70 Isto é, que recuse o estabelecimento de uma concepção de justiça a partir de uma concepção de vida boa, na medida em que esta não se pode estabelecer como alvo de consenso entre os agentes sociais, e tem por isso de ser substituída por uma definição de rectidão e razoabilidade que possa ser partilhada por aqueles que se opõem à premissa individualista. V. Dyzenhaus, 1998, pp. 271-273, 280.

71 RAWLS, John – «The idea of public reason revisited», p. 584.         [ Links ]

72 Como sustenta Leif Wenar: «Rawls indubitavelmente acredita que todos os humanos devem ser considerados como livres e iguais. Acredita, porém, mais profundamente que os humanos devem apenas ser coagidos a partir de uma imagem-de-si que lhes seja aceitável» (WENAR, Leif – «Why Rawls is not a cosmopolitan egalitarian». In MARTIN, R., e READY, D. (eds.) – Rawls’s Law of Peoples, A Realistic Utopia?. Malden: Blackwell Publishing, 2006, p. 103).

73 Recorrendo a Hume e à sua oposição entre virtudes naturais e virtudes artificiais, constatamos que disposições psicológicas como a caridade ou a generosidade pertencem à primeira classe. Estas, segundo Hume, constituem motivos morais para a acção cuja origem se situa em «traços de carácter instintuais», que compõem o «forte sentimento moral» comum «a todas as nações e idades» (HUME, David – A Treatise of Human Nature. Londres: Penguin Books, 1985 [1739], p. 628). Tendo origem pré-convencional – prévia à constituição artificial das virtudes que sustentarão a sociabilidade politicamente enquadrada –, virtudes como a caridade constituem, desta forma, o que há de mais propriamente humano, no sentido de enformarem o fundamento de uma moralidade inata. Sobre esta distinção consultar igualmente Fieser (FIESER, James – «Hume’s motivational distinction between natural and artificial virtues». In British Journal for the History of Philosophy. Vol. 5, N.º 2, 1997, pp. 373-388).

74 TCHEKOV, Anton – A Minha Mulher. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2008 [1892], pp. 89-90.         [ Links ]

75 RAWLS, John – The Law of Peoples, pp. 118-119.         [ Links ]

76 Ibidem, pp. 106-107.

77 Ibidem. Rawls defende que «não há sociedade alguma no mundo – excepto casos marginais – cujos recursos sejam tão escassos que a impeçam, caso seja razoável e racionalmente organizada e governada, de tornar-se bem ordenada» (p. 108).

78 Ibidem, pp. 118-119.

79 Ibidem, pp. 117-118.

80 Ibidem, pp. 117-119.

81 BUCHANAN, Allen – «Rawls’s Law of Peoples: rules for a vanished Westphalian world», pp. 698 e 716-720; TAN, Kok-Chor – Toleration, Diversity, and Global Justice. University Park: Pennsylvania State University Press, 2000, pp. 28-45;         [ Links ] CANEY, Simon – «Survey article: cosmopolitanism and the Law of Peoples», pp. 99-104.         [ Links ]

82 POGGE, Thomas – «An egalitarian law of peoples», p. 208;         [ Links ] BEITZ, Charles – Political Theory and International Relations, pp. 141-142.         [ Links ]

83 POGGE, Thomas – World Poverty and Human Rights: Cosmopolitan Responsibilities and Reforms. Cambridge: Polity Press, 2002, pp. 145-150.         [ Links ]

84 POGGE, Thomas – «An egalitarian law of peoples», p. 213;         [ Links ] BEITZ, Charles – «Social and cosmopolitan liberalism». In International Affairs. Vol. 75, N.º 3, 1999, p. 525.         [ Links ]

85 BEITZ, Charles – Political Theory and International Relations, pp. 143-154.         [ Links ] BUCHANAN, Allen – «Rawls’s law of peoples: rules for a vanished Westphalian world», pp. 703-706; POGGE, Thomas – Realizing Rawls. Nova York: Cornell University Press, 1989, parte III.         [ Links ]

86 BEITZ, Charles – Political Theory and International Relations, p. 144.         [ Links ] A ideia de que o plano internacional – destituído de instituições governativas e de práticas regulatórias coercivas – esteja submetido a uma estrutura básica análoga à que rege a esfera doméstica não é absolutamente convincente. Por outro lado, a designação de laços cooperativos como condição motivadora do estabelecimento de deveres de justiça não é, na mesma medida, um argumento inteiramente isento de problemas. Beitz, aliás, acabaria por prescindir deste argumento, fazendo antes derivar a imposição de princípios de justiça distributiva simplesmente da dotação de cada indivíduo de personalidade moral – isto é, da circunstância, comum a todos os humanos de se possuir um sentido de justiça e da capacidade para formular e perseguir uma concepção de bem (BEITZ, Charles – «Cosmopolitan ideals and national sentiment», pp. 595-596).         [ Links ] Uma crítica às hipóteses cosmopolitas escapa, de qualquer modo, ao âmbito deste texto.

87 RAWLS, John – A Theory of Justice. Revised Edition, p. 8.         [ Links ]

88 RAWLS, John – The Law of Peoples, p. 3.         [ Links ]

89 Ibidem, p. 62.

90 BARRY, Brian – «Humanity and justice in global perspective». In PENNOCK, J. R., e Chapman, J. W. (eds.) – Nomos XXIV: Ethics, Economics and the Law. Nova York: New York University Press, 1982.         [ Links ] Reimpresso em POGGE, T., e HORTON, K. (eds.) – Global Ethics: Seminal Essays. Nova York: Paragon House Publishers, 2008, pp. 179- -209.         [ Links ] Ver igualmente CAMPBELL, Tom – «Humanity before justice». In British Journal of Political Science. Vol. 4, N.º 1, 1974, pp. 1-16.         [ Links ]

91 BARRY, Brian – «Humanity and justice in global perspective», p. 202.         [ Links ]

92 BARRY cit. in TAN, Kok-Chor – Justice without Borders: Cosmopolitanism, Nationalism, and Patriotism, p. 67.         [ Links ]

93 Esta bipartição é igualmente delineada por Pogge, ao sustentar que na consideração das condições que determinam a justeza de uma sociedade haverá que proceder a uma distinção entre a condição primária, a saber, o modo como as «regras básicas de um sistema devem ser avaliadas/desenhadas», da condição secundária, que apura o modo como «os actores (indivíduos, associações, governos) podem e devem agir no seio de um regime em curso cujas disposições são tomadas como fixas». A condição primária consiste na justiça, isto é, na «avaliação moral e justificação das instituições sociais». A condição secundária, a moralidade, dedica-se à «avaliação da conduta e do carácter» (POGGE, Thomas – Realizing Rawls. New York: Cornell University Press, 1989, p. 17).         [ Links ]

94 BARRY, Brian – «Humanity and justice in global perspective», p. 206.         [ Links ]

95 TCHEKOV, Anton – A Minha Mulher, p. 90.         [ Links ]

 

* Estou muito agradecido, pelas críticas e sugestões feitas a versões preliminares deste texto, a Maria João Cabrita, Pedro Mendonça, Raquel Duque e ao referee anónimo da R:I.