SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número31Portugal, Europa e globalização: Como gerir as consequências do endividamento e construir alianças externas para o crescimentoFazer melhor as contas?: Rawls, A Lei dos Povos, e a questão da justiça global índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.31 Lisboa set. 2011

 

«The Godfather goes to Brussels». A evolução do conceito de crime organizado no contexto da área de liberdade, segurança e justiça

 

Helena Carrapiço1

Investigadora pós-doutoral no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Professora convidada da James Madison University. Doutorada pelo Instituto Universitário Europeu, Florença.

 

RESUMO

O artigo tem como objectivo reconstruir de forma crítica o discurso da União Europeia relativamente ao crime organizado, tentando estabelecer uma relação entre este e um discurso mais lato sobre a criação e desenvolvimento da Área de Liberdade, Segurança e Justiça (ALSJ). É salientada a forma como os argumentos justificadores de uma cooperação mais profunda da ALSJ assentaram na necessidade de compensar pelas externalidades negativas do mercado interno e de proteger a liberdade de circulação de possíveis abusos. Esta tendência levou à gradual institucionalização da Área de Justiça e Assuntos Internos a nível europeu, caracterizada por uma luta permanente entre a sua intergovernamentalização e a comunitarização.

Palavras-chave: União Europeia, políticas contra a criminalidade organizada, justiça e assuntos internos, cooperação policial

 

«The Godfather goes to Brussels»: the evolution of the organized crime concept in the Area of Freedom, Security and Justice

ABSTRACT

This article aims at tracing, criti- cally, the European Union’s discourse on organized crime, by establishing its relation with a wider discourse on the creation and development of the Area of Freedom, Security and Justice (AFSJ). It pointed out how the rationale for the AFSJ's deeper integration was the need to compensate for the negative externalities of the Internal Market and to protect the liberty of movement from abuse. This trend led to the definition of a balance between freedom and security, characterized by a gradual EU institutionalization of Justice and Home Affairs and a permanent struggle between the intergovernmentalisation and the communitarization of this area.

Keywords: European Union, organized crime policies, justice and home affairs, police cooperation

 

Este artigo pretende analisar a origem e o desenvolvimento do discurso europeu relativamente ao fenómeno do crime organizado, à luz do actual nível de ameaça assumido pela União Europeia (UE)2 e da importância que este fenómeno tem vindo a ganhar no contexto da Justiça e dos Assuntos Internos (JAI). As respostas à criminalidade organizada adoptadas pela UE serão igualmente analisadas, em particular a sua evolução a partir do período inicial de cooperação policial esporádica até à fase mais recente, caracterizada por um conjunto de políticas institucionalizadas. Mais especificamente, este texto argumenta que o discurso da UE sobre o crime organizado surge em grande medida no alinhamento da adopção de uma abordagem securitária no contexto da Área de Liberdade, Segurança e Justiça (ALSJ). Abordagem esta que se tem vindo gradualmente a caracterizar por uma limitação das liberdades cívicas dos cidadãos residentes neste espaço, em prol do destaque das medidas de segurança interna.

Tendo em consideração que as políticas de luta contra o crime organizado estão directamente ligadas a entendimentos específicos em torno do conceito de criminalidade organizada, não constituindo simples reacções a eventos externos independentes, este artigo propõe abordar o conceito de crime organizado como uma construção social viabilizada através do poder do discurso3. Partindo desta ideia base, o texto analisa documentos centrais no discurso da UE relativamente ao crime organizado, sublinhando a forma como estes têm vindo a reproduzir uma interpretação funcionalista do Espaço Schengen, dando lugar a uma lógica de pensamento segundo a qual a liberdade de circulação deve necessariamente ser limitada por medidas acrescidas de segurança por forma a proteger essa mesma liberdade4.

Este artigo compreende quatro partes: a primeira descreve a génese da cooperação policial entre os países europeus e a forma como esta influenciou, de forma decisiva, tanto a estrutura como o conteúdo da ALSJ. A segunda parte incidirá sobre a criação deste espaço específico através da análise de documentos oficiais. A parte seguinte descreve o crescendo na abordagem securitária da ALSJ, concretizado através de um reforço contínuo do aparato de segurança (através do desenvolvimento de novas técnicas de vigilância da população, por exemplo) e do aumento gradual da influência das agências europeias de segurança. A quarta e última parte procurará reflectir sobre o que reserva o futuro relativamente à justiça e assuntos internos da UE, tendo em consideração a entrada em vigor do Tratado de Lisboa e, em particular, a reestruturação da ALSJ através da abolição da estrutura em pilares e da comunitarização parcial das provisões do Terceiro Pilar.

 

A EVOLUÇÃO DA COOPERAÇÃO POLICIAL NA EUROPA: DA TROCA ESPORÁDICA DE INFORMAÇÕES À COOPERAÇÃO INSTITUCIONALIZADA

AS ORIGENS DA COOPERAÇÃO POLICIAL INSTITUCIONALIZADA

Até meados dos anos 1980, os estados-membros optaram por não delegar às instituições europeias qualquer poder nos campos da justiça e dos assuntos internos. Por este motivo, as discussões nesta área eram geralmente levadas a cabo quer de forma bilateral, quer no contexto de organismos puramente intergovernamentais ou de grupos de trabalho criados para o efeito. Embora as autoridades policiais europeias tivessem já uma longa história de cooperação ad hoc, esta acontecia, essencialmente, de maneira esporádica e desestruturada5.

Apesar do historial de cooperação ocasional, a primeira organização a providenciar um enquadramento institucional para uma cooperação permanente em matéria criminal viria apenas a ser criada em 1923, em Viena. Tendo-lhe sido inicialmente atribuído o nome de Comissão Internacional de Polícia, viria a ser mais tarde renomeada Organização Internacional de Polícia Criminal, também conhecida como Interpol, tornando-se um centro de informação para investigações criminais em curso. Contudo, entre os anos 1950 e 1970, não foi no seio da Interpol que surgiram os desenvolvimentos mais substanciais em termos de cooperação policial, mas sim no enquadramento do Conselho da Europa6. Criado com o propósito de proteger os direitos humanos, os valores democráticos e o cumprimento da lei, este organismo rapidamente desenvolveu um mandato relacionado com a luta contra o tráfico de drogas e de seres humanos, assim como a cooperação judicial em geral. O Grupo para o Combate contra o Abuso e Tráfico Ilícito de Drogas, criado pelo Presidente francês Pompidou em 1969, é um bom exemplo de uma das actividades desenvolvidas no seio do Conselho da Europa7. Apesar das inúmeras iniciativas desta organização internacional, os resultados das reuniões do Conselho da Europa começaram a partir dos anos 1970 a ser considerados «escassos e lentos, dado que os instrumentos adoptados reflectiam frequentemente pouco mais do que o mínimo denominador comum»8.

 

COOPERAÇÃO INTERGOVERNAMENTAL ATRAVÉS DE GRUPOS AD HOC

Embora o resultado das iniciativas do Conselho da Europa tenha sido considerado desencorajador, deveria ainda assim ser reconhecido como um dos primeiros sinais da vontade política dos países europeus no sentido de uma maior cooperação na área de justiça e assuntos internos. De facto, este terá sido provavelmente o ponto de partida para um número de outras iniciativas ad hoc como o Grupo Trevi (1975)9. Estas eram plataformas em que os estados-membros da Comunidade Económica Europeia cooperavam, trocavam informações e discutiam quais as melhores práticas a assumir nas áreas do terrorismo, do crime organizado, da imigração e de questões de segurança interna em geral, sem no entanto terem de passar pela estrutura da Comunidade. A existência de tais reuniões, assim como o seu conteúdo, estavam cobertos por um véu de secretismo que, embora considerado essencial para o bom funcionamento da troca de informações, levou a que o trabalho destes grupos fosse considerado como pouco transparente e pouco democrático10. Ainda que tais grupos se reunissem apenas ocasionalmente e fossem somente consultivos, a sua influência sobre as estratégias e o teor de certas políticas a nível nacional e europeu foi notável, como o demonstra, por exemplo, a estruturação da área de justiça e assuntos internos aquando da preparação do Tratado de Maastricht. Relativamente às estruturas internas dos grupos ad hoc, é interessante salientar que a forma como estavam organizados poderá ter contribuído substancialmente para a actual interconexão entre os conceitos de terrorismo, crime organizado e imigração. Apelidada por Bigo como um «fluxo contínuo de segurança»11, esta transposição do significado de ameaça de um conceito para outro tem permitido que áreas tão diferentes como asilo e imigração, tráfico de seres humanos e crime organizado em geral passem de questões não politizadas a ameaças de elevado nível para a sociedade europeia.

A literatura relativa à Área de Justiça e Assuntos Internos presta pouca atenção a esta constelação de grupos ad hoc. Este lapso é devido não apenas ao seu nível de confidencialidade, mas também à ideia geralmente aceite de que a Área de Liberdade, Segurança e Justiça teve a sua origem no Acordo de Schengen em 1985. Esta associação baseia-se em duas tendências: por um lado, a evolução da ALSJ é habitualmente analisada como um processo independente das dinâmicas de cooperação preexistentes nesta área; por outro, os autores que têm de facto em conta a influência de tais grupos ad hoc geralmente olham para a sua evolução com base numa perspectiva funcionalista12. Apesar de esta ser uma abordagem interessante, os autores tendem a propor explicações para o desenvolvimento destes grupos, e da consequente delineação da ALSJ, com base em ligações causais com factores externos ao funcionamento da própria área, tais como o efeito impulsionador da integração económica ou os interesses nacionais e europeus13.

Tal como acima mencionado, a literatura tende a relacionar a criação da ALSJ com o surgimento e desenvolvimento do Mercado Único, defendendo a existência de uma necessidade racional de introduzir medidas de segurança acrescidas por forma a compensar o desaparecimento das fronteiras internas. Contudo, se analisarmos os relatórios da época, podemos observar que não parece haver qualquer tendência coerente que justifique a formulação de uma explicação funcionalista para o desenvolvimento da ALSJ14. Não deixa, no entanto, de ser importante sublinhar, independentemente dos argumentos que se encontram na base desta visão funcionalista, que esta perspectiva se tornou dominante no discurso europeu, alterando assim a forma como entendemos o conceito de segurança15. É portanto relevante, neste caso, tentar compreender não o porquê de esta visão funcionalista se ter tornado dominante, mas sim como conseguiu penetrar o discurso de justiça e assuntos internos de forma tão eficaz. Em particular, é importante identificar a forma como circularam determinadas ideias securitárias, assim como os momentos-chave que lhes permitiram enraizar-se na ALSJ. No que diz respeito aos grupos ad hoc, é de sublinhar o tipo de cooperação que desenvolveram, assim como a especificidade da informação partilhada, de modo a compreender quanto da estrutura actual da área da justiça e assuntos internos da UE terá sido herdada destes grupos intergovernamentais. Herança esta que adquire particular relevo quer na forma como desenvolvemos e gerimos as actuais práticas de segurança, quer na forma como entendemos a relação entre liberdade e segurança, em particular, a necessidade de encontrar um compromisso entre estes dois conceitos.

 

A INSTITUCIONALIZAÇÃO GRADUAL DA COOPERAÇÃO INTERGOVERNAMENTAL

O período de cooperação intergovernamental com base em grupos ad hoc independentes durou até 1988, momento em que os estados-membros tomaram a decisão de formalizar a existência de tais estruturas e de as colocar sob a alçada da Comunidade Económica Europeia através da criação do Grupo de Coordenadores16. Tal não significa que os grupos ad hoc tenham sido dissolvidos; pelo contrário, estes vieram a ser integrados na estrutura da CEE com um formato semelhante ao que tinham até então e continuando a funcionar segundo as mesmas directrizes, tal como pode ser constatado através da publicação do Documento de Palma em 198917. A influência destes grupos continuou a fazer-se sentir posteriormente, em especial na preparação do título VI do Tratado de Maastricht (Justiça e Assuntos Internos), o qual foi particularmente inspirado na estrutura, cultura e métodos de trabalho do Grupo Trevi18.

Numa iniciativa intergovernamental paralela, a França, a Alemanha e o Benelux tomaram a decisão de dar um passo adicional na sua integração ao assinarem o Acordo de Schengen (1985), cujo objectivo era possibilitar a livre circulação de pessoas entre os seus territórios. Este acordo baseava-se, no entanto, na ideia fundamental de que a liberdade concedida aos seus cidadãos deveria ser protegida e compensada com medidas acrescidas de segurança. Assim sendo, à medida que os estados-membros aboliram as fronteiras internas, substituindo-as por uma fronteira externa reforçada, adoptaram igualmente parâmetros comuns de vigilância desta última, como disso são exemplo os procedimentos conjuntos de vigilância de fronteiras e condições de entrada.

 

A IRONIA DAS PALAVRAS NUMA ÁREA COM MAIS SEGURANÇA QUE LIBERDADE E JUSTIÇA

A FORMALIZAÇÃO DA ÁREA DA JUSTIÇA E ASSUNTOS INTERNOS

O Tratado da União Europeia, assinado em Maastricht em 1992, introduziu alterações com consequências relevantes para a luta contra o crime organizado. Tal como previamente referido, a mais importante destas alterações terá provavelmente sido a institucionalização dos grupos ad hoc através quer da sua inclusão no tratado, quer da criação do Terceiro Pilar dedicado à justiça e assuntos internos. Dentre os resultados de tal institucionalização, podemos sublinhar o desenvolvimento da cooperação policial, alfandegária e judicial que procurou alcançar posições de consenso relativamente à fronteira externa da UE e a políticas de asilo e imigração, assim como um esforço considerável no sentido de desenvolver meios mais eficazes de acção contra o tráfico de drogas, imigração ilegal, terrorismo e crime organizado. Este último não foi, no entanto, explicitamente identificado no Tratado de Maastricht como um problema de particular relevo. Tal como podemos observar no artigo K1 do Tratado de Maastricht, as prioridades da Comunidade Europeia diziam respeito maioritariamente à imigração19, enquanto o crime organizado é somente mencionado no último ponto (ponto 9). É feita uma referência no ponto 3 (c) ao combate à imigração ilegal, mas tal não deve ser interpretado no sentido da luta contra as estruturas criminosas que permitem o desenvolvimento da imigração ilegal, mas sim da luta contra o acto em si de imigrar de forma ilegal20.

Embora o crime organizado não surja como uma das grandes prioridades do Tratado de Maastricht na área de segurança, é já possível observar uma tentativa inicial de delinear estratégias de luta contra este problema. Contudo, a fase do Tratado de Maastricht não se caracteriza pelo desenvolvimento de planos holísticos de combate à criminalidade organizada como um todo, mas sim de luta contra fenómenos específicos, como é o caso da introdução da estratégia comum contra a droga. O tratado em questão caracterizou-se também pelo abandono de tentativas anteriores de desenvolvimento de uma definição comum de crime organizado, substituindo-as, no entanto, pela criação de um conceito elástico que veio a ser sucessivamente expandido até à introdução do Tratado de Amesterdão. Este conceito veio assim a incluir não apenas novas actividades, tais como a falsificação de arte, mas também outras como o hooliganismo e o racismo21. Embora tenha havido uma tentativa de democratizar a área de justiça e assuntos internos e de melhorar a sua transparência através de um envolvimento mais próximo da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu, o resultado ficou consideravelmente aquém do esperado: uma linha de acção foi desenvolvida delineando a necessidade de compensar possíveis consequências negativas da construção do Mercado Interno, através do estabelecimento de uma estrutura de justiça e assuntos internos caracterizada por um controlo acrescido do Parlamento Europeu.

Esta tendência está directamente relacionada com o facto de o Terceiro Pilar ter sido estruturado em torno do mesmo equilíbrio entre liberdade e segurança, já estabelecido pelos grupos ad hoc. Por um lado, a Comunidade Europeia considerou que uma importante parte dos seus objectivos era assegurar a livre circulação das populações pela eliminação de obstáculos ao seu movimento. Para este efeito, assumiu a responsabilidade de desenvolver os direitos dos seus cidadãos, assim como instrumentos específicos de modo a conceder-lhes mais liberdade. Por outro lado, defendeu a ideia de que uma cultura de segurança compreensiva necessitava de ser desenvolvida para proteger esta nova liberdade. Conseguiu-o criando outras formas de controlo (como, por exemplo, bases de dados) e demonstrando «uma preferência excessiva por instrumentos repressivos de segurança e ordem»22.

De facto, olhando para os nove artigos que compõem o título VI do Tratado de Maastricht, sentimo-nos obrigados a concordar com Walker, na medida em que estes instrumentos, mais do que facilitar, parecem dificultar a circulação. Tal como Huysmans propõe, a forma como a Área de Justiça e Assuntos Internos tem evoluído exige «um entendimento específico de liberdade e da sua relação com o conceito de segurança. Entendimento este que conceptualiza a relação entre liberdade e segurança como sendo simultaneamente de competição e funcional»23. Tendo em consideração que a liberdade é habitualmente entendida como a ausência de restrições à existência e capacidade de acção do indivíduo e que os processos de socialização nos conduzem a restringir essa mesma liberdade a favor de uma vida em comunidade, a necessidade de alcançar um meio-termo entre a liberdade do indivíduo e a do seu próximo ganha relevância. No entanto, a convicção de que é necessário encontrar um equilíbrio adequado entre liberdade e segurança exige ter em consideração a possibilidade de abuso dessa mesma liberdade. É neste sentido que poderemos dizer que há uma relação de competição entre o anseio de maior liberdade e a imposição de limites a essa mesma liberdade. Em consequência desta argumentação, a relação entre liberdade e segurança não só é «concorrente», como também é «funcional» na medida em que as limitações à liberdade de um indivíduo são os garantes dessa mesma liberdade. A forma como a área da justiça e assuntos internos tem sido gerida, estruturada e planificada é o resultado de um entendimento particular de como a liberdade deve ser regulada e da conversão deste entendimento num discurso e práticas que delineiam a importância de tecnologias de segurança. O facto de título VI do Tratado de Maastricht se ter essencialmente baseado no trabalho de um conjunto de grupos relacionados mais com o aparato de segurança do que com liberdades civis, faz com que a abordagem securitária que é praticada actualmente nesta área seja mais do que uma simples coincidência.

 

A ÁREA DA LIBERDADE, SEGURANÇA E JUSTIÇA COMO UM OBJECTIVO FUNDAMENTAL DA UNIÃO EUROPEIA

Dada a percepção da falta de transparência e responsabilização na Área da Justiça e Assuntos Internos, a fase preparatória do Tratado de Amesterdão foi particularmente cuidadosa em reposicionar os cidadãos no centro do projecto europeu e em envolver as principais instituições da Comunidade Europeia24. De modo a alcançarem este objectivo, as áreas relativas à imigração, vistos, asilo e a livre circulação de pessoas foram transferidas do terceiro para o primeiro pilar, formando, assim, o título IV (artigos 61 a 69)25. A comunitarização destas provisões constituiu-se, no entanto, apenas como um pequeno passo na direcção de uma maior transparência e responsabilização. De facto, todas as provisões relativas à cooperação policial e judicial em assuntos criminais foram mantidas no pilar intergovernamental, no título VI. Tal implica que o Parlamento e o Tribunal de Justiça continuaram a não ter qualquer competência «para fiscalizar a validade ou a proporcionalidade de operações efectuadas pelos serviços de polícia ou outros serviços responsáveis pela aplicação da lei num Estado-Membro»26. Por outras palavras, não é difícil perceber que o Tratado de Amesterdão, com a sua complicada sobreposição entre os primeiro e o terceiro pilares, não contribuiu substancialmente para a transparência da área da justiça e assuntos internos.

Apesar da relevância deste aspecto, o título IV constitui provavelmente a mudança mais significativa trazida pelo Tratado de Amesterdão, dado que legisla a criação da Área de Liberdade, Segurança e Justiça. Embora o Tratado de Maastricht tivesse já aberto caminho para uma cooperação especificamente nesta área, a justificação para o seu desenvolvimento estava ainda em grande medida dependente do Mercado Único. O Tratado de Amesterdão veio, contudo, modificar esta relação ao apresentar a ALSJ como um objectivo de direito próprio27.

No que diz respeito ao crime organizado, este tratado veio atribuir um maior grau de prioridade a este fenómeno. A transferência para o primeiro pilar das provisões relativas à imigração, asilo e vistos permitiu ao novo tratado concentrar a sua atenção na prevenção e combate a «criminalidade, organizada ou não, em especial o terrorismo, o tráfico de seres humanos e os crimes contra as crianças, o tráfico ilícito de droga e o tráfico ilícito de armas, a corrupção e a fraude»28. Tal cedência de prioridade conduziu a uma aceleração da cooperação policial e judicial em assuntos criminais, nomeadamente através do aumento das competências da Europol (artigo K. 2). Embora o foco relativamente ao crime organizado pareça constituir um novo desenvolvimento do tratado, este tinha já sido abordado pelo Conselho Europeu de Dublin em Dezembro de 1996, que sublinhou a sua «absoluta determinação em combater a criminalidade organizada e sublinhou a necessidade de uma abordagem coerente e coordenada por parte da União»29.

A delineação da uma estratégia inicial, contra o que é entendido como uma ameaça crescente e transnacional à sociedade, aos seus cidadãos e os seus valores, foi pela primeira vez discutida com o Plano de Acção de 1997, desenvolvido pelo Grupo de Alto Nível relativo ao crime organizado30. Este plano continha 15 directrizes políticas e 30 recomendações específicas que defendiam a necessidade de respostas urgentes ao crime organizado para desenvolver correctamente a futura Área de Liberdade, Segurança e Justiça. O documento sublinhava principalmente a importância da troca de informações entre os diferentes pilares, do desenvolvimento de uma metodologia comum para facilitar o reconhecimento do crime organizado e da aceleração dos procedimentos de implementação31. Estas recomendações serviram como uma agenda de desenvolvimento do título VI do Tratado de Amesterdão. Através da leitura deste último e do Plano de Acção de 1997, é possível observar o desenvolvimento de um entendimento de crime organizado como uma ameaça extremamente séria para toda a sociedade europeia, assim como a necessidade subsequente de lhe fazer face com base em medidas extraordinárias.

 

O PROGRAMA DE TAMPERE E O DESENVOLVIMENTO DE UMA ABORDAGEM EFICAZ E ABRANGENTE DA LUTA CONTRA TODAS AS FORMAS DE CRIMINALIDADE

A imagem do crime organizado como uma ameaça de alto nível e a consequente forma como deveria ser enfrentado continuou a ser desenvolvida em dois documentos: o «Plano de Acção para o aperfeiçoamento das provisões do Tratado de Amesterdão estabelecedoras de uma Área de Liberdade, Segurança e Justiça»32, encomendado pelo Conselho Europeu de Viena, e as conclusões do Conselho Europeu de Tampere de 1999. O Plano de Acção de 1998 resultou na adopção pelo Conselho da «Resolução para a prevenção do crime organizado com vista ao estabelecimento de uma estratégia compreensiva para o seu combate» (Dezembro de 1998). Tal como o seu título sugere, este texto foca-se na prevenção e no maior envolvimento da sociedade civil. O significado que o Plano de Acção de 1998 acrescenta ao conceito de liberdade é particularmente interessante: «liberdade para viver num ambiente caracterizado pela obediência à lei, no qual as autoridades públicas estão a fazer todo o possível [...] para combater e conter aqueles que pretendem limitar ou abusar dessa mesma liberdade.»33 A questão aqui não é se a liberdade e segurança são duas faces da mesma moeda, mas sim o que significa estar seguro, quem decide quais são as melhores medidas de segurança a ser tomadas e quais são as consequências deste tipo de liberdade. No que diz respeito ao segundo texto, as conclusões do Conselho de Tampere de 1999 apresentaram uma abordagem muito semelhante à do Plano de Acção de 1998. Apesar da tentativa formal de encorajar um «ideal comum de liberdade baseado nos direitos humanos, em instituições democráticas e no primado do direito»34, a Presidência continuou a promover a noção de liberdade através de um aumento da segurança. Tendo em conta as provisões assumidas relativamente ao combate do crime organizado, há uma clara referência à ideia de que «é necessária uma abordagem eficaz e abrangente da luta contra todas as formas de criminalidade»35.

De forma a pôr em prática esta abordagem, a presidência da UE encorajou o desenvolvimento de um conjunto de orientações para a implementação das provisões e instrumentos desenhados para a ALSJ, instruções essas que vieram a assumir o formato final do Programa de Tampere (1999-2004). As conclusões deste texto sublinharam que o desenvolvimento da Área de Liberdade, Segurança e Justiça deveria ser mantido como um dos mais importantes objectivos da União e que deveria permanecer no topo das agendas políticas36. O crime organizado foi o foco de uma das quatro secções do Programa de Tampere. O título «A luta contra a criminalidade ao nível da União» indica de forma explícita a intenção da União de dar continuidade à estratégia global contra o crime, já introduzida anteriormente pelo Conselho Europeu de Dublin (1996). As prioridades do programa eram a «prevenção da criminalidade a nível da União» (com um foco particular na delinquência juvenil, a criminalidade em meio urbano e associada à droga), a «acção específica contra o branqueamento de capitais» (considerada como a base para as actividades de crime organizado) e a «intensificação da cooperação em matéria de luta contra a criminalidade». O texto propunha igualmente desenvolver o já existente aparato de segurança a nível da UE ao encorajar a organização de equipas de investigação conjuntas já delineadas pelo Tratado de Amesterdão, o incremento das capacidades das agências de segurança, tal como a Europol, e a criação de novas instituições como a Eurojust, a unidade operacional de chefes de polícia europeus e a Academia Europeia de Polícia37. O programa previa igualmente o estabelecimento de definições comuns, não de crime organizado como um fenómeno geral, mas de subáreas como o crime financeiro e o tráfico de drogas e de seres humanos. Em termos gerais, a mais importante tendência a reter das conclusões de Tampere é o crescente detalhe técnico da Área de Justiça e Assuntos Internos e o continuado desenvolvimento do discurso de legitimação das autoridades policiais, reforçando a seriedade das ameaças específicas por forma a justificar uma nova abordagem à segurança38.

 

DA ÁREA DA LIBERDADE, SEGURANÇA E JUSTIÇA À ÁREA DE SEGURANÇA, JUSTIÇA E LIBERDADE

A ACELERAÇÃO DO APARATO DE SEGURANÇA

O esforço desenvolvido pelo Programa de Tampere para lidar com o crime organizado resultou, passado um ano, na publicação de um plano de acção intitulado «Prevenção e controlo da criminalidade organizada: estratégia da União Europeia para o início do novo milénio». Produzido pelo Conselho da União Europeia no início 2000, o texto introduziu pouca novidade, mas procurou reunir em maior detalhe todas as iniciativas tomadas até ao momento nesta área39. Este plano avançou com trinta e nove recomendações, divididas por áreas de relevância e formuladas com base nas directrizes políticas estabelecidas para cada uma destas áreas, assim como os mandatos e iniciativas existentes40. A Estratégia Milénio fez também inúmeras referências às tendências actuais do crime organizado, nomeadamente ao evidente crescimento deste fenómeno, à sua natureza dinâmica e transnacional, à sua capacidade de interligar actividades lícitas e ilícitas e à sua habilidade de tirar partido da Área de Liberdade, Segurança e Justiça. Em termos mais gerais, o texto tenta transmitir uma imagem do conceito de crime organizado que ecoa a de uma conspiração criminosa global cujo intuito é perturbar o bom funcionamento da sociedade europeia: «os esforços concertados [dos grupos de crime organizado] para influenciar e dificultar o funcionamento dos serviços responsáveis pela aplicação da lei, bem como do sistema judicial, comprovam a dimensão e a capacidade profissional dessas organizações criminosas.»41 Desde a publicação desta estratégia, a maioria dos documentos publicados tem constituído uma tentativa de implementar esta proposta e de verificar que a estratégia da União está a ser seguida com sucesso.

Um relatório conjunto da Comissão e da Europol, publicado em 2001, continuou a desenvolver o tópico da definição de crime organizado. «Para uma estratégia europeia para a prevenção do crime organizado»42 foi em muito similar ao Plano de Acção de 1997; contudo, não deixou de introduzir alguns elementos inovadores: enfatizou, nomeadamente, a importância de harmonizar as definições de crime organizado como forma de lidar com um fenómeno que diz respeito a toda a UE. Segundo tal lógica de pensamento, informações, medidas, instrumentos e estratégias poderão apenas ser desenvolvidos em comum, se os diferentes agentes nacionais acordarem no objecto a ser tido em conta e as suas características. Neste sentido, o relatório conjunto listou em 11 pontos as idiossincrasias que considerou mais representativas do crime organizado. Os pontos assumidos como elementos essenciais para que um grupo seja considerado como crime organizado foram os seguintes: «colaboração de duas ou mais pessoas», «por um longo ou indefinido período de tempo», «suspeito de ter cometido ofensas criminais graves» e «motivado pela procura de lucro e/ou poder»43. Este foi um passo importante na evolução do entendimento de crime organizado na medida em que marca inequivocamente a vontade da União em moldar as definições nacionais existentes como forma de desenvolver mecanismos de segurança uniformizados. Contudo, esta iniciativa revelou também quão vaga e ampla é a definição usada pela União para justificar o desenvolvimento de tecnologias de segurança e o incremento dos poderes das agências de segurança.

 

O PROGRAMA DA HAIA E O CUSTO DA LIBERDADE

Se por um lado o Programa de Tampere foi criticado pela abordagem securitária desenvolvida para a Área de Liberdade, Segurança e Justiça até 2004, por outro foi igualmente criticado pela incapacidade em respeitar o seu próprio calendário, prioridades e objectivos. Tal desilusão resultou, em Maio de 2004, na adopção do Programa da Haia, que estabeleceu um conjunto de objectivos a ser alcançado na ALSJ durante o período de 2004 a 2009. Este plano continha igualmente um novo conceito estratégico para lidar com o crime organizado, assim como novas prioridades para a área de cooperação policial e judiciária.

O objectivo deste programa consistia em cumprir de forma mais eficiente os compromissos de Tampere. O texto encontra-se dividido em três partes: o «fortalecimento da liberdade», o «fortalecimento da segurança» e o «fortalecimento da justiça». Bigo faz uma análise interessante de como estes diferentes conceitos são trabalhados no seio do texto e de como se relacionam entre si. Este autor debruça-se, nomeadamente, sobre a forma como o texto parte de uma interpretação específica de liberdade, em grande medida em linha com a interpretação de segurança44. É de facto possível observar que, apesar de dedicar a maioria das suas provisões à liberdade, o Programa da Haia propõe uma definição muito limitada deste conceito. Liberdade não só diz apenas respeito à liberdade de circulação e residência, como é somente aplicável àqueles que possuem um passaporte da UE45. Por exclusão, os cidadãos extracomunitários beneficiam de um conceito de liberdade consideravelmente mais reduzido, o qual varia consoante o seu estatuto oficial dentro da UE (autorização de permanência / autorização de residência / visto de turista / visto de estudante / ilegal, entre outros). De facto, o que o texto transmite é que para que a liberdade exista dentro da ALSJ terá de ser controlada por dispositivos de segurança, especialmente se estivermos a falar da liberdade de indivíduos entendidos como não pertencentes a este espaço. Se formos, por exemplo, imigrantes ilegais oriundos de um dos países subsarianos em busca de melhores condições de vida, o tipo de liberdade com que nos deparamos é sem dúvida bastante escasso. Mesmo para cidadãos da UE, este conceito de liberdade é apresentado como um direito imposto pela UE e os seus estados-membros aos seus habitantes passivos46. Acima de tudo, não existe qualquer dúvida relativamente à forma como liberdade, segurança e justiça se tornaram interligadas e se mostram inseparáveis: «A liberdade, a justiça, o controlo das fronteiras externas, a segurança interna e a prevenção do terrorismo deverão, assim, ser considerados indissociáveis na União, vista como um todo.»47

O Programa da Haia não continha, contudo, qualquer directiva específica sobre como estas propostas deveriam ser implementadas. Procurando alcançar tal implementação, o Conselho Europeu pediu à Comissão para preparar um Plano de Acção que viria a ser submetido em Maio de 200548. Este último continha dez recomendações relativamente a políticas a ser adoptadas nos próximos cinco anos, assim como um calendário para a sua implementação. O crime organizado surge listado dentre estas, juntamente com indicações de como aperfeiçoar o conceito estratégico para lidar com este fenómeno49. Entre as propostas mais relevantes, este documento mencionava o desenvolvimento de um modelo europeu para a recolha de informações criminais e o aperfeiçoamento da cooperação entre as instituições policiais e judiciárias dos estados-membros.

 

DA ÁREA DE SEGURANÇA, JUSTIÇA E LIBERDADE À ÁREA DE SEGURANÇA?

DO TRATADO CONSTITUCIONAL AO TRATADO DE LISBOA: APENAS UMA QUESTÃO DE NOMENCLATURA?

O tratado que estabelece uma Constituição para a Europa (daqui em diante denominado Tratado Constitucional) foi assinado em 2004 por todos os estados-membros e sujeito a ratificação. Em 2005, tanto a França como os Países Baixos votaram pela rejeição do texto, criando um efeito dominó que resultou num período de reflexão sobre o projecto europeu. O Tratado Constitucional previa a aceleração do processo de decisão na área da luta contra o crime organizado, terrorismo e migração ilegal, na medida em que planeava alterar o sistema de votação no Conselho, para a maioria das matérias, de unanimidade para maioria qualificada50. Estas provisões encontravam-se ao abrigo do capítulo IV («Área de Liberdade, Segurança e Justiça»), no contexto das políticas internas da União (título 3, parte III). De acordo com os artigos III-270 e III-271, a prioridade era aproximar a legislação dos estados-membros nesta área através do sistema de reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e produzir «regras mínimas relativas à definição das infracções e sanções penais»51.

O período de reflexão terminou oficialmente a 23 de Junho de 2007 quando os estados-membros tomaram a iniciativa de organizar uma conferência intergovernamental (CIG) para preparar um novo tratado. Este último, intitulado Tratado de Lisboa, deveria entrar em vigor a 1 de Janeiro de 2009, mas veio a sofrer um destino semelhante ao do seu antecessor. O Tratado de Lisboa, ou Tratado Reformador, tal como foi então chamado, não diferia particularmente do Tratado Constitucional no que diz respeito ao campo da justiça e assuntos internos52. Tinha como objectivo apresentar a ALSJ como mais unificada e democrática ao ampliar o escopo de acção do Parlamento Europeu, dos parlamentos nacionais e do Tribunal Europeu de Justiça. Procurava igualmente alterar certos parâmetros institucionais e de decisão que não tinham sido incluídos no Tratado Constitucional e que começavam então a ser entendidos como urgentes53. O texto previa introduzir estas alterações através da abolição da estrutura em pilares, que havia, até ao momento, separado domínios entendidos como interligados, dando-lhes um tratamento diferente relativamente ao processo de decisão. A transposição das provisões sobre cooperação policial e judicial para o capítulo dedicado à Área de Liberdade, Segurança e Justiça, já presente no Tratado Constitucional, foi mantida no texto de Lisboa (passando a ser denominada como título V). A mais importante diferença entre os dois tratados será provavelmente a possibilidade de os estados-membros poderem optar por uma cláusula de excepção em matérias de justiça e assuntos internos54. Em resultado, o Tratado de Lisboa é representativo de uma estrutura que, oficialmente, já não é caracterizada por três pilares, mas que inclui tantas derrogações, ritmos distintos e cláusulas de excepção, que se torna difícil compreender como poderá vir a contribuir para o desenvolvimento de uma ALSJ mais unificada.

Embora a maioria dos países tenha optado por ratificar o Tratado de Lisboa por votação parlamentar, tal não impediu a Irlanda de rejeitar o texto em Junho de 2008, impossibilitando a sua entrada em vigor em Janeiro de 2009. A rejeição irlandesa, assim como o ambiente geral de descontentamento da população europeia, tanto em relação à complexidade do texto como à forma como foi aprovado, não impediu, porém, a União de tentar prosseguir na mesma direcção. Um segundo referendo foi agendado neste país para Outubro de 2009 num acto que em muito faz lembrar o segundo voto irlandês do Tratado de Nice em 2001. Embora o texto tenha sido aprovado com 67 por cento dos eleitores a favor, o Tratado de Lisboa só entraria em vigor passados dois meses.

 

PARA ONDE CAMINHA A ÁREA DE JUSTIÇA E ASSUNTOS INTERNOS?

Se olharmos para a forma como as alterações institucionais e políticas introduzidas pelo Tratado de Lisboa afectaram as áreas individuais de justiça e assuntos internos, poderemos observar dois aspectos principais: por um lado, a maioria destas matérias encontra-se actualmente abrangida pelo processo de co-decisão; por outro, tem havido uma tendência para desenvolver políticas europeias comuns, como é o caso, embora com pouco sucesso, da política de asilo e imigração. A co-decisão foi aplicada a todas as disposições ligadas à imigração e ao direito de asilo, com excepção das matérias relativas à emissão de passaportes, bilhetes de identidade e autorizações de residência, as quais continuam a ser da responsabilidade do Conselho, deliberando por unanimidade (artigo 77, 3). Também excluída do processo de co-decisão ficou a capacidade de os estados-membros decidirem quanto ao número de imigrantes que pretendem autorizar dentro das suas próprias fronteiras. Embora o desenvolvimento das políticas comuns de asilo e de imigração pudesse ser previsto com relativa facilidade, é interessante notar a forma como estas se expandiram para áreas tradicionalmente consideradas como intergovernamentais. Um exemplo é o caso da luta contra o tráfico de seres humanos, que actualmente se encontra abrangido quer pela área de cooperação policial, quer pela política comum de imigração.

As matérias relacionadas com imigração e asilo surgem como os itens principais das recentes estratégias anuais da Comissão Europeia para a Área de Justiça e Assuntos Internos. Nestas últimas é dada prioridade à construção de uma UE mais segura através da limitação da imigração ilegal, de negociações com países com fortes movimentos de emigração e da aplicação de regras de asilo comuns55. Os objectivos subsequentes são a protecção dos direitos dos cidadãos europeus e a prevenção de terrorismo e crime. Embora a luta contra o crime organizado continue a ser listada como um objectivo primordial, esta parece ter dado lugar a uma mais urgente política de gestão migratória. A continuidade desta tendência parece ter sido assegurada pelas estratégias políticas de 2009, 2010 e 2011 da Comissão. Numa secção surpreendentemente curta sobre liberdade, segurança e justiça, esta instituição coloca sobre a mesa a sua intenção de aumentar o orçamento consagrado às «fronteiras externas», «política de concessão de vistos e liberdade de circulação de pessoas» e «políticas comuns de imigração e asilo». A Comissão menciona também que este aumento será na sua maioria dedicado ao desenvolvimento de sistemas informáticos de grande escala, tais como «SIS II, VIS e Eurodac»56. Desta forma, e embora a União tenha vindo a sublinhar a importância de recolocar o cidadão no centro do seu escopo de acção, podemos observar que existe uma continuidade na abordagem securitária da ALSJ: não só os direitos fundamentais são listados depois do reforço da política de imigração, mas também é reavaliada a sua importância pela prioridade atribuída a instrumentos de segurança e pela resolução de questões políticas através de soluções tecnológicas de vigilância populacional.

No que diz respeito especificamente à cooperação judiciária em matéria penal, esta área continuou a ser desenvolvida com base no princípio do reconhecimento mútuo e, excepcionalmente, através de medidas de aproximação das disposições legislativas. A aplicação destas últimas encontra-se prevista para a admissibilidade mútua de meios de prova, os direitos individuais em processo penal e os direitos das vítimas da criminalidade. Foi igualmente decidido que serão elaboradas regras mínimas comuns para a definição de infracções penais relativas ao terrorismo, corrupção, tráfico de seres humanos, contrafacção de meios de pagamento, tráfico de droga, criminalidade informática e criminalidade organizada. Contudo, o desenvolvimento de definições comuns relativas a novos tipos de crime só pode ser levado a cabo pelo Conselho, deliberando por unanimidade. Finalmente, o Tratado de Lisboa prevê ainda a criação de uma Procuradoria Europeia, baseada na Eurojust, cujo mandato abrange todo o tipo de infracções contra os interesses financeiros da União Europeia.

A área de cooperação policial seguiu uma tendência semelhante à da cooperação judiciária em matéria penal, no sentido em que a comunitarização desta área foi mais limitada do que a comunitarização das políticas de imigração e asilo. Esta interpretação deve-se essencialmente ao facto de o seu objectivo principal se ter mantido inalterado: «desenvolver uma cooperação policial que associa todas as autoridades competentes dos Estados-Membros, incluindo os serviços de polícia, das alfândegas e outros serviços responsáveis pela aplicação da lei.»57 A área de cooperação policial, tal com o seu nome indica, está portanto ainda bem longe de evoluir no sentido de uma política comum. Embora o objectivo não seja diferente do expresso no tratado anterior, não se deve, no entanto, pressupor que não houve qualquer tipo de evolução. De facto, o princípio da co-decisão passou a ser aplicável à maioria das disposições relativas à cooperação policial, o que constitui uma mudança significativa. Entre as novas disposições abrangidas encontram-se a troca de informações, a formação de pessoal e as técnicas de investigação.

As medidas relativas à cooperação operacional continuam, no entanto, a ser decididas pelo Conselho e por unanimidade. Embora este tipo de excepções persista, é expectável que as alterações introduzidas nesta área acelerem a adopção de nova legislação relativa à criminalidade organizada, aumentando igualmente o seu grau de eficácia. A ideia de eficiência deve ser entendida aqui de duas formas diferentes: em primeiro lugar, e dado que as medidas adoptadas por unanimidade representam frequentemente apenas um mínimo denominador comum, é muito provável que a introdução do princípio de co-decisão permita a adopção de instrumentos/medidas mais progressistas. Em segundo lugar, é igualmente possível que os novos instrumentos jurídicos se tornem mais eficientes, uma vez que terão efeito directo sobre as legislações nacionais. Em contraste, antes da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, cada Estado-membro era responsável pela transposição do instrumento de cooperação policial e judicial para o seu próprio sistema legal. Este mecanismo resultou inúmeras vezes em atrasos intermináveis, como foi o caso da Convenção da Europol ou do mandado de captura europeu. Considerando essas mudanças, é muito provável que venhamos a assistir a uma aceleração da produção de instrumentos jurídicos neste domínio.

 

CONCLUSÃO

Este artigo procurou ir além de uma simples reconstrução histórica do discurso da UE relativamente ao crime organizado, na medida em que tentou estabelecer uma relação entre este e um discurso mais lato sobre a criação e desenvolvimento da ALSJ. O propósito deste artigo foi, deste modo, procurar perceber criticamente como o discurso e as tecnologias de governo (entendidas no sentido foucaultiano) têm vindo a constituir o que a UE entende por crime organizado. Neste sentido, o texto começou por focar a sua atenção nas origens da cooperação policial europeia e na forma como esta última influenciou a necessidade de criar legislação relativa à criminalidade organizada. Posteriormente, procurou pôr em evidência a ligação entre o desenvolvimento da cooperação policial e a criação da ALSJ, nomeadamente a exportação de conceitos e abordagens securitárias de um domínio para o outro. O artigo salientou, em particular, a forma como os argumentos justificadores de uma cooperação mais profunda da ALSJ assentaram na necessidade de compensar pelas externalidades negativas do mercado interno e de proteger a liberdade de circulação de possíveis abusos. Esta tendência levou à gradual institucionalização da Área de Justiça e Assuntos Internos a nível europeu, caracterizada por uma luta permanente entre a intergovernamentalização e a comunitarização desta área e pela procura de um equilíbrio entre liberdade e segurança. Paralelamente, este artigo evidenciou ainda as alterações introduzidas pelos principais textos legais, com o objectivo de identificar uma tendência no sentido de uma contextualização do conceito de liberdade em termos de segurança e de uma diluição da separação entre as diferentes áreas políticas contidas dentro da ALSJ.

 

NOTAS

1 A autora gostaria de exprimir o seu profundo agradecimento a Sara Ramos Pinto, sem a qual este artigo não teria sido desenvolvido, assim como ao revisor anónimo.

2 CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA – Draft Internal Security Strategy for the European Union: «Towards a European Security Model». N.º 5842/2/10. Bruxelas, 2010.

3 BUZAN, Barry, WAEVER, Ole, e WILDE, Jaap de – Security: A New Framework for Analysis. Londres: Lynne Rienners Publisher, 1998.         [ Links ]

4 HUYSMANS, Jef – «A Foucaultian view on spill-over: freedom and security in the EU». In Journal of International Relations and Development. Vol. 7, 2004, pp. 294-318.         [ Links ]

5 OCCHIPINTI, John – The Politics of EU Police Cooperation: Towards a European FBI?. Londres: Lynne Rienner, 2003.         [ Links ]

6 WALKER, Neil – «Justice and home affairs». In The International and Comparative Law Quaterly. Vol. 47, N.º 1, 1998, pp. 231-238.         [ Links ]

7 OCCHIPINTI, John – The Politics of EU Police Cooperation: Towards a European FBI?.         [ Links ]

8 UÇARER, Emek – «Justice and home affairs». In CINI, Michelle (ed.) – European Union Politics. Oxford: Oxford University Press, 2003.         [ Links ]

9 Entre outras iniciativas semelhantes podemos igualmente listar o Grupo de Cooperação Política Europeia (1970), o CAHAR (comité de especialistas sobre os aspectos legais de asilo territorial, refugiados e indivíduos sem estado) (1978), as Consultas Informais (1985), o Grupo de Coordenadores (1988) e o Grupo Ad Hoc sobre Imigração (1986).

10 DEN BOER, Monica – Taming the Third Pillar: Improving the Management of Justice and Home Affairs in the EU. Maastricht: European Institute of Public Administration, 1998.         [ Links ]

11 BIGO, Didier – Polices en Réseaux: L’expérience européenne. Paris: Presses de Sciences Po, 1996.

12 Para efeitos do presente artigo, o funcionalismo é definido como uma corrente de pensamento teórico, que se desenvolveu no contexto da integração europeia, e que defende que a cooperação entre estados numa determinada área (económica, por exemplo) leva inevitavelmente a um efeito de spill-over noutras áreas, resultando num aprofundamento do processo de integração. Esta visão quase automática da integração europeia veio, no entanto, a ser desacreditada pela própria evolução da UE.

13 UÇARER, Emek – «Justice and home affairs».

14 DEN BOER, Monica – Police Cooperation after Maastricht. European Community Research Unit, University of Hull, 1992.         [ Links ]

15 HUYSMANS, Jef – «A Foucaultian view on spill-over: freedom and security in the EU», pp. 294-318.         [ Links ]

16 DEN BOER, Monica – Taming the Third Pillar: Improving the Management of Justice and Home Affairs in the EU. Maastricht: European Institute of Public Administration, 1998.         [ Links ]

17 O Documento de Palma pode ser considerado como o primeiro esboço da Área de Justiça e Assuntos Internos europeia tal como a conhecemos actualmente.

18 BUNYAN, Tony – «Trevi, Europol and the European State». In BUNYAN, Tony (ed.) – Statewatching the New Europe: A Handbook on the European State. Londres: Statewatch, 1997.         [ Links ]

19 Pontos 1, 2 e 3 do artigo K1.

20 Tratado de Maastricht, título VI, artigo K1.

21 DEN BOER, Monica – Justice and Home Affairs Cooperation in the European Union: Current Issues. EIPASCOPE, 1996.         [ Links ]

22 WALKER, Neil – «Justice and home affairs», pp. 231-238 e 263.

23 HUYSMANS, Jef – «A Foucaultian view on spill-over: freedom and security in the EU», p. 297.

24 Conferência Intergovernamental, 1995.

25 Tratado Consolidado da Comunidade Europeia, 2002.

26 Tratado de Amesterdão, 1997, artigo K7, 5.

27 Ibidem, artigo B.

28 Tratado de Amesterdão, 1997, artigo K.1.

29 CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA – «Plano de acção contra a criminalidade organizada, adoptado a 28 de Abril de 1997». In Jornal Oficial da União Europeia. Bruxelas, C251, 15 de Agosto de 1997, capítulo I, par. 2.         [ Links ]

30 Ibidem.

31 Ibidem, capítulo III.

32 CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA – «Resolução do Conselho de 21 de Dezembro de 1998 para a prevenção do crime organizado com vista ao estabelecimento de uma estratégia compreensiva para o seu combate». In Jornal oficial da União Europeia. Bruxelas, C 408 de 29 de Dezembro de 1998.         [ Links ]

33 «Plano de Acção para o Aperfeiçoamento das Provisões do Tratado de Amesterdão Estabelecedoras de Uma Área de Liberdade, Segurança e Justiça», parte A, parágrafo 6.

34 CONSELHO EUROPEU – Conclusões do Conselho Europeu de Tampere. 1999, parágrafo 1.

35 Ibidem, parágrafo 40.

36 Ibidem.

37 Ibidem.

38 ELVINS, Martin – Anti-Drugs Policies of the European Union: transnational Decision-Making and the Politics of Expertise. Hampshire: Palgrave MacMillan, 2003.         [ Links ]

39 Ibidem.

40 CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA – «Prevenção e controlo da criminalidade organizada: estratégia da União Europeia para o início do novo milénio». In Jornal Oficial da União Europeia. Bruxelas: C 124 de 3 de Maio de 2000.         [ Links ]

41 Ibidem, p. 3.

42 COMISSÃO EUROPEIA – Towards a European Strategy to Prevent Organised Crime, Commission Staff Working Paper: Joint Report from Commission Services and Europol. SEC (2001) 433. Bruxelas, 2001.

43 Ibidem, p. 41.

44 BIGO, Didier – «Liberty, whose liberty? The Hague Programme and the conception of freedom». In GUILD, Elspeth, e GEYER, Florian (eds.) – Security Versus Justice: Police and Judicial Cooperation in the European Union. Aldershot: Ashgate, 2006.         [ Links ]

45 CONSELHO EUROPEU – The Hague Programme: Strengthening Freedom, Security and Justice in the European Union. N.º 16054/04, JAI 559. Bruxelas, 2004.

46 BIGO, Didier – «Liberty, whose liberty? The Hague Programme and the conception of freedom».

47 CONSELHO EUROPEU – The Hague Programme: strengthening Freedom, Security and Justice in the European Union. N.º 16054/04, JAI 559. Bruxelas, 2004, p. 4.

48 COMISSÃO EUROPEIA – Plano de Acção para a Implementação do Programa da Haia. Doc 2005/ 184. Bruxelas, 2005.

49 Ibidem.

50 LANG, Richard – «Third pillar developments from a practitioner’s perspective». In GUILD, Elspeth, e GEYER, Florian (eds.) – Security Versus Justice: Police and Judicial Cooperation in the European Union. Aldershot: Ashgate, 2008.

51 Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, 2004, artigo III-271.

52 LANG, Richard – «Third pillar developments from a practitioner’s perspective».

53 CARRERA, Sergio, e GEYER, Florian (eds.) – Security versus Freedom?: a Challenge for Europe’s Future. Ashgate. Aldershot, England, 2007.

54 LANG, Richard – «Third pillar developments from a practitioner’s perspective».

55 DIRECÇÃO-GERAL DA JUSTIÇA, LIBERDADE E SEGURANÇA (DG JLS) – Directorate General Justice, Freedom and Security’s Annual management Plan 2008, Bruxelas, 2008.

56 COMISSÃO EUROPEIA – European Commission’s 2009 Policy Strategy. Bruxelas, 2008.

57 Tratado de Lisboa, 2007, artigo 275-III.