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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.31 Lisboa set. 2011

 

Nota introdutória

 

Alexandra Magnólia Dias

Investigadora auxiliar no Centro de Estudos Africanos do Instituto Universitário de Lisboa onde é investigadora responsável pelo projecto «Monitorização de Conflitos no Corno de África» financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Doutorada em Relações Internacionais pela London School of Economics and Political Science com uma tese sobre Uma Guerra Inter-Estatal no pós-Guerra Fria: Eritreia-Etiópia 1998-2000, que recebeu uma menção honrosa pelo júri da 2.ª edição do Prémio da Associação Portuguesa de Ciência Política.

 

A 3 de Junho de 2011 a Comissão da União Africana (UA) constituiu o Grupo de Acção Interdepartamental com a incumbência de desenvolver a «Estratégia Africana Marítima Integrada – 2050»1. A aprovação da EAMI-2050 está planeada para 2012 e visa colmatar a lacuna relativamente à visão a longo prazo da UA para os desafios, oportunidades e ameaças que se colocam aos seus estados-membros no domínio marítimo.

Diversos autores convergem na caracterização da abordagem da predecessora Organização da Unidade Africana (OUA) e da UA como eminentemente territorial e fixada nos espaços terrestres2.

François Vrey, em particular, defende que a organização continental se caracteriza por uma «cegueira» marítima3. Se, por um lado, a ausência de uma estratégia conjunta e de políticas dos estados-membros da UA para os espaços marítimos de plena soberania e sob sua jurisdição deva ser compreendida à luz da natureza dos padrões de conflito em África, predominantemente marcados por guerras civis, frequentemente, com ramificações regionais para os estados vizinhos, por outro, o exercício e projecção da soberania dos estados costeiros e insulares ao longo da extensão dos espaços marítimos sob sua jurisdição requer meios para além dos recursos da maioria dos estados em questão.

Os espaços marítimos, tal como alguns dos espaços terrestres fronteiriços, em África Subsariana, tendem a caracterizar-se pela ingovernabilidade4. A limitada presença das instituições e dos agentes dos estados nestes espaços traduz a ausência de mecanismos que permitam mediar as pressões entre as arenas interna/internacional e regional/transnacional tornando os espaços marítimos mais permeáveis a actividades de actores não estatais. A ausência e/ou limitada capacidade de exercício de soberania por parte da maioria dos estados sobre os espaços marítimos torna-os, por um lado, periféricos, e, por outro, centros nevrálgicos ou de encruzilhada entre as dinâmicas internas, internacionais e transnacionais, onde convergem diversos actores regionais e extra-regionais.

O dossiê que integra o presente número da revista Relações Internacionais, resultado da conferência realizada em Maio de 2010 organizada pelo Centro de Estudos Africanos do ISCTE, centra-se na problematização do fenómeno da pirataria marítima na Somália e na Nigéria tendo em conta as suas diversas manifestações e a pluralidade de perspectivas e estratégias de actores locais e internacionais. Os artigos oferecem uma pluralidade de perspectivas relativamente à intensificação do fenómeno ao largo da Somália e no golfo de Adem, nomeadamente os artigos de Mateus Kowalski, de Gilberto Carvalho de Oliveira e o artigo sob co-autoria de Pierre-Michel Joana e Luís Eduardo Saraiva. O artigo de Marc-Antoine Pérouse de Montclos tem por estudo de caso os ataques de pirataria na Nigéria e problematiza, simultaneamente, o conjunto de causas comummente associado ao fenómeno, assim como a relação estabelecida entre pirataria, estados falhados e pobreza. Destaca também outras co-relações que são tomadas como ponto de partida em muitas das análises do fenómeno sem que os pressupostos teóricos que sustentam as ditas conclusões sejam analisados à luz de dados empíricos produzidos por estudos de casos.

Nesse sentido comecemos por problematizar a definição do fenómeno da pirataria marítima, entendido, na presente conjuntura da agenda internacional, como uma das principais ameaças no domínio marítimo. Tratando-se de um fenómeno contemporâneo, o objectivo principal do presente dossiê ficará cumprido se as reflexões apresentadas pelos autores permitirem ao leitor reequacionar a problemática para além de assunções imediatistas ou pressupostos teóricos erróneos.

A intensificação da pirataria em África, que ocupa um lugar central na agenda internacional, é, de acordo com alguns autores, um fenómeno recente5. As condições geográficas do Atlântico e do Índico ao largo dos estados costeiros e insulares da África Subsariana, em contraste com o Sudeste Asiático, não propiciaram a emergência do fenómeno em períodos anteriores. De acordo com esta linha de análise, acresce o facto de a supremacia europeia naval até ao fim do período colonial ter constituído um factor de dissuasão6. Em contradição com este enquadramento histórico do fenómeno da pirataria em África enquanto algo recente, Marc-Antoine Pérouse de Montclos avança a tese contrária. Com efeito, o seu artigo intitula-se, precisamente, «A pirataria marítima na Nigéria: um fenómeno antigo em vias de modernização». O autor sublinha que os exploradores mencionam a pirataria marítima ao largo de África antes do início do período colonial. Com efeito, Pérouse de Montclos argumenta que os italianos embarcaram na ocupação da Somália sob o pretexto de garantirem desta forma o restabelecimento da liberdade de navegação dos mares a partir da Somália. No caso da Nigéria, de acordo com o mesmo autor, os decretos coloniais do século XIX já aludiam aos grupos que espalhavam terror nas vias fluviais no interior do delta do Níger. Relativamente ao período colonial os dados são inexistentes. Finalmente, o autor critica a insuficiência e os limites na produção de dados empíricos sob monopólio do Bureau Marítimo Internacional. As análises são baseadas nos dados recolhidos de forma imediata pelos armadores ou outro pessoal envolvido na navegação marítima.

Com efeito, de acordo com Marchal, já em 1990 se verificavam ataques de pirataria na Somália, nomeadamente a partir de Puntlândia. Acresce o facto de no contexto quer, da Unosom I/II quer da Unitaf, os actores extra-regionais terem recolhido narrativas junto de somalis relativas ao depósito de lixo tóxico nas águas sob sua jurisdição, de sobrepescagem industrial por navios europeus e asiáticos, para além de outras actividades ilícitas7 conduzidas nos espaços marítimos de plena soberania e sob sua jurisdição. Esta ideia vai na linha da argumentação apresentada por Pierre-Michel Joana e Luís Eduardo Saraiva no artigo intitulado «A pirataria desarma-se em terra – o caso da Somália», que destaca que o fenómeno da pirataria marítima concentrou diversos actores extra-regionais na região. No entanto, os autores defendem a tese de que o principal problema reside nos espaços terrestres, e a solução passa pelo reforço da Missão da União Africana para a Somália (Muasom) e na reconstrução do Estado, defendendo a necessidade de formar forças de segurança e uma guarda costeira composta por agentes somalis8. Em contraste, Marchal relembra a complexidade da política interna da Somália e da tendência para o padrão volátil de formação de alianças e para a tendência de mudanças constantes de apoios aos protagonistas do conflito, alertando para o facto de uma estratégia de formação de uma guarda costeira contribuir eventualmente para a formação de mais piratas no futuro9.

Por outro lado, se a existência de estados caracterizados por uma ausência dos elementos empíricos associados ao ideal weberiano e por um exercício de soberania negativa10 é apontada como uma das causas que propiciaram a emergência do fenómeno de pirataria, este pressuposto teórico não é sustentado empiricamente. Com efeito, o aumento de actividades de pirataria organizada em duas regiões centrais ligada aos espaços marítimos da Somália e da Nigéria releva da imbricação de dinâmicas sócio-políticas locais e influências transnacionais e globais. Pérouse de Montclos identifica correctamente a falácia da tese que associa a existência de estados falhados à emergência da pirataria marítima em África. O cerne da questão reside não no falhanço do Estado mas na sua criminalização.

O enquadramento deste fenómeno no contexto das oportunidades e dos reversos oferecidos pelo posicionamento de África vis-à-vis a economia política global e a sua inserção na economia mundial permite explorar dimensões do fenómeno na sua relação com o processo de formação e com as trajectórias particulares dos estados em questão.

Mateus Kowalski, apesar de tomar como ponto de partida o falhanço do Estado na Somália como principal causa da intensificação da pirataria, revela as dimensões do fenómeno que sustentam a sua adequada definição enquanto crime organizado transnacional. O seu artigo tem como enfoque privilegiado a concepção e implementação de mecanismos e de instrumentos jurídicos para conter esta manifestação de crime organizado transnacional.

Pierre-Michel Joana e Luís Eduardo Saraiva também assentam a sua análise na premissa teórica do falhanço do Estado na Somália enquanto principal causa da pirataria marítima. Os autores reflectem acerca da intensificação dos ataques e da expansão da área de actuação dos piratas em relação ao destacamento de uma pluralidade de operações navais para a área. Concluem que os sucessos das referidas operações têm sido limitados e a sua actuação tem contribuído para tornar as actividades ligadas à pirataria marítima um negócio lucrativo e um importante sector da economia somali11.

Com efeito, a própria inserção da África Subsariana na economia capitalista globalizada tornou-a permeável ao crime organizado transnacional, considerado enquanto o reverso da medalha da globalização e marca do recuo do Estado12, sendo que alguns autores defendem que a luta contra o crime organizado transnacional constitui a preocupação predominante de segurança para o século XXI13.

Os contributos de estudiosos da África Subsariana, em contraste, revelam que a proliferação de práticas transnacionais de criminalidade ao invés de traduzirem um desmembramento ou falhanço do Estado em África apontam para novas trajectórias de formação e transformação do Estado contribuindo para uma hibridação transnacional do Estado e do crime14 que redunda em última instância na criminalização do Estado em África15. As práticas transnacionais de criminalidade denotam um novo tipo de acumulação, por vezes pelo próprio Estado e pelas redes ou grupos não estatais (mas não contra o Estado)16. Na realidade, é mais plausível considerar a hipótese de que dentro do próprio Estado subsistem elementos que enveredam numa trajectória de entendimento com grupos criminais e elementos que enveredam pela trajectória inversa da regulação ou combate aos actores envolvidos em actividades de criminalidade organizada transnacional.

Paralelamente, é importante referir também que a intensificação da pirataria marítima desencadeou uma pluralidade de respostas por parte de actores extra-regionais, nomeadamente a operação Ocean Shield da NATO, a CTF-51 que compreende uma coligação de 25 países sob comando americano sediada no Barém e conta com contribuições individuais de países que destacaram meios navais próprios sob comando nacional, a saber: China, Japão, Índia, Irão, Rússia e Arábia Saudita e a Força Naval da União Europeia Somália (Eunavfor). Apesar dos esforços destes países, os lucros associados à pirataria marítima, combinados com os constrangimentos jurídicos relativamente aos piratas capturados no decurso de ataques, não têm diminuído a incidência do fenómeno e contribuíram para a expansão exponencial da área de actuação dos mesmos.

Embora persistam dificuldades diversas, a intensificação da pirataria tem desencadeado respostas inovadoras, experimentais e não raramente conduzindo a medidas controversas. Mais recentemente, a própria organização marítima internacional emitiu princípios de orientação para a actuação de companhias privadas militares a bordo de navios que atravessam águas consideradas de alto risco17.

Gilberto Carvalho de Oliveira, no seu artigo intitulado «Intervenção contra a pirataria nas costas da Somália: naval peacekeeping?», reflecte acerca de uma característica das operações de apoio à paz das Nações Unidas, a saber, a sua concepção eminentemente terrestre. Neste sentido, o seu artigo é fulcral para o entendimento da lacuna das operações navais em curso: a ausência de articulação com a operação de apoio à paz em curso no espaço terrestre.

O tratamento da dimensão jurídica do «combate à pirataria marítima» enquadra-se na problemática mais ampla de regulação dos espaços marítimos. Mateus Kowalski propõe a formação de um tribunal híbrido para a Somália composto por elementos nacionais e internacionais. A linha de reflexão defendida pelo autor é interessante na medida em que o memorando de entendimento entre o Quénia e a União Europeia que conduziu à criação de um tribunal em Mombaça para efectuar os julgamentos de «suspeitos» de crimes de pirataria somalis tem sido pautado por obstáculos decorrentes do próprio sistema jurídico no país de acolhimento. A importância da dimensão jurídica no combate à pirataria conduziu à nomeação, pelo secretário-geral das Nações Unidas, de Jack Lang, enquanto seu assessor-conselheiro especial para as questões jurídicas da pirataria ao largo da Somália.

Em suma, a pluralidade dos ângulos de análise privilegiados pelos autores, assim como as divergências das teses avançadas pelos mesmos, apenas revelam a complexidade do fenómeno e os desafios que se colocam aos actores empenhados na contenção dos seus efeitos, a curto-médio prazo, e/ou na sua erradicação a longo prazo. A intensificação do fenómeno da pirataria marítima tem-se revelado um tubo de ensaio privilegiado para uma multiplicidade de actores estatais e não estatais, se a sua erradicação se revela complexa e inserida apenas em estratégias de longo prazo, teve o mérito de recentrar a atenção de actores extra-regionais na Somália e de actores regionais na dimensão marítima da segurança em África.

 

NOTAS

1 Press Release N. 064/2011, «Task force to lead development and implementation of 2050 Africa’s Integrated Maritime Strategy (2050 AIM-Strategy) formed», Adis Abeba, African Union, 3 de Junho de 2011.

2 «Maritime development in Africa: an independent specialists’ framework». Joanesburgo, Adis Abeba e Washington: The Brenthurst Foundation, African Union Commission, The African Center for Strategic Studies, Junho de 2010. Disponível em: http://www.thebrenthurstfoundation.org/Files/Brenthurst_Commisioned_Reports/BD1003_Maritime-Development-in-Africa.pdf.

3 VREY, François – «Bad order at sea: from the gulf of Aden to the gulf of Guinea». In African Security Review. Vol. 18, N.º 3, 2009. Disponível em: http://www.iss.co.za/uploads/18NO3VREY.PDF.         [ Links ]

4 WAMBUA, Paul Musili – «Enhancing regional maritime cooperation in Africa: the planned end state». In African Security Review. Vol. 18, N.º 3, 2009. Disponível em: http://www.iss.co.za/uploads/18NO3WAMBUA.PDF        [ Links ]

5 AMIRELL, Stefan Eklof – «La piraterie maritime en Afrique contemporaine. Ressorts locaux et internationaux des activités de piraterie au Nigeria et en Somalie». In Politique Africaine. N.º 116, Dezembro de 2009, pp. 97-119.         [ Links ]

6 Ibidem.

7 MARCHAL, Roland – «Flibustiers ou corsaires? Des enjeux de l’opération maritime internationale contre la piraterie à proximité des côtes somaliennes». In Politique Africaine. N.º 116, Dezembro de 2009, pp. 85-96.

8 Esta é a tese defendida também por um estudioso da Somália, Stig Jarle Hansen (cf. HANSEN, S., KINSEY, C., FRANKLIN, G. – «Privatising maritime security in Somalia: the rationale and its effects on Governance». In Cambridge Review of International Relations. Vol. 22, N.º 1, Março de 2009.         [ Links ]

9 MARCHAL, Roland – «Flibustiers ou corsaires? Des enjeux de l’opération maritime internationale contre la piraterie à proximité des côtes somaliennes», p. 92.

10 JACKSON, Robert – Quasi-States: Sovereignty, International Relations and the Third World. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.         [ Links ]

11 Outros autores convergem na conclusão de a pirataria marítima se ter revelado um dos sectores mais lucrativos da economia informal somali. Cf. MARCHAL, Roland – «Flibustiers ou corsaires? Des enjeux de l’opération maritime internationale contre la piraterie à proximité des côtes somaliennes»; PHAM, J. Peter – «Putting Somali piracy in context». In HESSE, Brian (ed.) – Somalia: State Collapse, Terrorism and Piracy. Londres: Routledge, 2011, pp. 77-91.         [ Links ]

12 GALEOTTI, Mark – «Underworld and upperworld: transnational organized crime and global society». In DAPHNÉ, Josselin, e WALLACE, William (eds.) – Non-State Actors in World Politics. Basingstoke: Palgrave, 2001, p. 209.         [ Links ]

13 Ibidem, p. 216.

14 BAYART, Jean-François – «Crime transnational et la formation de l’État». In Politique Africaine. N.º 93, Março de 2004, pp. 93-104.

15 BAYART, Jean-François, HIBOU, Béatrice, e ELLIS, Stephen – «The criminalization of the State in Africa». Oxford: The International African Institute, James Currey and Indiana University Press, 1999.         [ Links ]

16 BOTTE, Roger – «Vers un État illégal-légal?». In Politique Africaine. N.º 93, Março de 2004, pp. 7-20.         [ Links ]

17 Interim Guidance on Use of Privately Armed Security Personnel on Board Ships», Maritime Safety Meeting, IMO, 20 de Maio de 2011. Para uma visão mais abrangente da expansão das companhias militares privadas no domínio marítimo cf. CULLEN, Patrick – «Private security takes to the sea», ISN Security Watch. Disponível em: http://www.isn.ethz.ch/isn/Current-Affairs/Security-Watch/Detail/?id=54064&lng=en. CULLEN, Patrick, e BERUBE, Claude (eds.) – Private Maritime Security in the 21st Century: Market Responses to Piracy, Terrorism and Waterborne Security Risks. Londres: Routledge (no prelo).