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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.31 Lisboa set. 2011

 

The West and the rest - reflexões sobre uma década de guerra contra o terror

 

Daniel Pinéu

Investigador do IPRI – UNL. Research associate e docente no Instituto de Ciência Política da Universidade de Marburgo, Alemanha. Doutorado em Estudos Críticos de Segurança pela Universidade de Gales, Aberystwyth.

 

RESUMO

As análises mediáticas, e uma larga maioria das análises académicas, nas capitais europeias e norte-americanas, focam-se quase exclusivamente nos terroristas ou nos indivíduos e organizações envolvidos na Guerra contra o Terror, e caracterizam regularmente os cidadãos e países do Sul global como incapazes de resistir ou lutar contra o extremismo e o terrorismo nos seus próprios termos. Este artigo pretende complexificar a narrativa do 11 de Setembro, alargando-a no tempo e no espaço, e tentar pensar a década pós-11 de Setembro de uma perspectiva descentrada – isto é, uma perspectiva diferente das narrativas dominantes nos centros de poder do mundo ocidental.

Palavras-chave: Estados Unidos, 11 de Setembro, terrorismo, Ásia do Sul

 

The West and the Rest – reflections about a decade of War on Terror

ABSTRACT

Mainstream media analyses and a large majority of scholarly accounts in European capitals and the US focus disproportionately on the terrorists, or the individuals and organizations involved in the War on Terror. Such mainstream analyses of 9/11 and its aftermath regularly portray citizens and countries in the global South as incapable of resisting or fighting against extremism in their own terms. This article aims to complexify the narrative of Sept. 11, extending it in time and space, and tires to think the post-11 September decade from a de-centered/postcolonial perspective – that is, a different perspective of the dominant narratives prevalent in the power centers of the global North/West.

Keywords: United States, 9/11, terrorism, South Asia

 

Os fatídicos acontecimentos do 11 de Setembro assumiram um estatuto icónico na narrativa da modernidade ocidental: a sua presença não pode ser negada, nem ignorada. No entanto, mais do que falar dessa presença óbvia, ou do impacto do 11 de Setembro na política externa americana, o objectivo deste breve artigo é chamar a atenção para as ausências e silêncios da última década no que toca ao 11 de Setembro e às suas consequências políticas. Especificamente, o objectivo destas breves linhas é complexificar a narrativa do 11 de Setembro, alargando-a no tempo e no espaço, e tentar pensar a década pós-11 de Setembro de uma perspectiva descentrada – isto é, uma perspectiva diferente das narrativas dominantes nos centros de poder do mundo ocidental.

Uma das narrativas dominantes é precisamente a de que o 11 de Setembro pertence ao cânone histórico americano, e – secundariamente – ao cânone histórico do «Ocidente». Deste ponto de vista, os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 inserem-se na memória colectiva dos cidadãos do «Norte global» dentro de uma linha de acontecimentos extraordinários que afectaram o curso da história americana, como o ataque a Pearl Harbour em 1941. Esta singularização e «americanização» dos ataques tornou-se uma narrativa de tal forma dominante nos discursos políticos e mediáticos da última década que efectivamente «apagou» outros pontos de referência históricos, geográficos e políticos1. Toda a narrativa sobre os ataques do 11 de Setembro se tornou um momento mediático – a destruição das Torres Gémeas. Esta tendência reduz um processo extraordinariamente complexo, longo e global aos terríveis eventos de um dia; e elide uma série de acontecimentos politicamente salientes – como o assassinato de Ahmed Shah Massoud, as várias mensagens de Osama bin Laden, ou a promulgação do Patriot Act – numa só imagem2.

Mas as consequências dos ataques vão muito para além da tragédia nova-yorkina, ou americana. Efectivamente, a esmagadora maioria das vítimas do 11 de Setembro provém da Ásia do Sul, mas países como o Afeganistão e o Paquistão foram desde o início caracterizados como os pontos de origem da violência terrorista, e não como as suas maiores vítimas. Infelizmente, e ao contrário dos números das vítimas dos atentados em si – 30663 – não há estatísticas confiáveis e sistemáticas para o número de civis mortos no Afeganistão e no Paquistão como resultado das operações americanas e da NATO em resposta ao 11 de Setembro. No entanto, as estatísticas de que dispomos sugerem um número não inferior a três mil vítimas civis por ano no conjunto destes países4. Isto significa, portanto, mais de 30 mil civis mortos nesta região, como resultado do 11 de Setembro, das estratégias regionais da Al-Qaida, e da Guerra contra o Terror desencadeada pelos Estados Unidos. Em resposta a pressões americanas, em 2009 e 2010 o Governo do Paquistão lançou várias ofensivas militares na região fronteiriça com o Afeganistão5, resultando em mais de 2,7 milhões de deslocados internos (IDP)6. Onde estão os memoriais – as estátuas, os documentários, os discursos sentidos de políticos europeus, as peças de teatro e filmes – dedicados a essas outras vítimas de uma mesma catástrofe?

 

AS OUTRAS CONSEQUÊNCIAS DO 11 DE SETEMBRO

Os acontecimentos do 11 de Setembro tiveram, no entanto, outras consequências, eventualmente tão nefastas como a trágica perda de vidas de civis «apanhados» entre as estratégias dos Estados Unidos e de uma série de grupos extremistas, incluindo a Al-Qaida. Uma dessas consequências foi o (re)aparecimento de um discurso de confrontação entre o «Ocidente» e o mundo islâmico7, e uma série de narrativas sobre os perigos do islão político – se quisermos, a ideologização ou culturalização da guerra contra o terrorismo. Visto desta perspectiva, os factores que mais cabalmente explicam os atentados, e actos terroristas mais geralmente, não são os percursos biográficos dos seus autores, nem dinâmicas de grupo que levaram à radicalização e eventualmente ao uso de violência, nem agravos políticos legítimos, e sim factores «culturais» como a ideologia – muitas vezes entendida de forma simplista8. Esta perspectiva – que resultou numa verdadeira indústria académica de «peritos», muitas vezes de credenciais intelectuais duvidosas, sobre o islão político e/ou terrorismo9 – teve várias consequências funestas, entre elas a indelével associação entre terrorismo e islão político10.

Outra grave consequência, a longo prazo, dos ataques do 11 de Setembro e da Guerra contra o Terror, global mas sentida desproporcionalmente por muçulmanos, foi o que poderíamos chamar o reordenamento legal global, baseado num ethos excepcionalista – a ideia de que medidas extraordinárias e porventura ilegais são necessárias e justificadas para garantir a segurança de estados ocidentais, ainda que às expensas das liberdades civis dos cidadãos11. A última década trouxe-nos um triste número de episódios específicos que ilustram esta tendência excepcionalista, como os abusos dos direitos humanos e o uso de tortura em Guantánamo e Abu Ghraib, uma série de assassinatos extrajudiciais, e números indeterminados de «rendições extraordinárias». Significativamente, os dez anos de Guerra contra o Terror evidenciaram também a tendência crescente para qualificar a soberania de estados, em particular estados de maioria muçulmana (Iraque, Afeganistão, Paquistão, Iémen, Somália) – empregando conceitos como estados frágeis ou falhados – legitimando assim uma série de pressões e intervenções, muitas vezes violentas, por parte de estados liberais ocidentais, liderados pelos Estados Unidos.

No Paquistão, por exemplo, os Estados Unidos implementaram desde 2004 uma política de ataques a alvos da Al-Qaida e dos taleban paquistaneses (Tehrik-e-Talieban ou TTP) através de veículos aéreos não tripulados (drones), sob a liderança da CIA12. Até agora ocorreram mais de 260 ataques, que resultaram num número de vítimas estimado entre 1600 e 250013. O impacto destes ataques na opinião pública e na segurança da população paquistanesa, bem como no comportamento e estabilidade do governo democraticamente eleito do Paquistão, não pode nem deve ser descontado. O Governo de Asif Ali Zardari encontra-se numa posição extremamente precária – entre as pressões do estabelecimento militar, afastado do poder pela primeira vez em décadas; dos sectores políticos e religiosos mais radicais; e as pressões americanas derivadas da estratégia da guerra contra o terror. E se, por um lado, não pode simplesmente virar costas aos aliados americanos, por outro também não pode ignorar violações egrégias da sua soberania, nem o crescente descontentamento popular com as notícias diárias de mortes de civis nas regiões fronteiriças. Mais recentemente, o assassinato de bin Laden em solo paquistanês por elementos das forças especiais americanas levantou novamente questões sobre a legalidade e as consequências a longo prazo de tais acções. Do ponto de vista americano, estas iniciativas foram cruciais para a prossecução da Guerra contra o Terror, e os seus qualificados sucessos contra a Al-Qaida justificam não só os custos humanos, mas também a inexorável deterioração da relação com o Paquistão, o aliado mais crucial na região. A perspectiva paquistanesa sobre a «guerra contra o terrorismo» nunca é portanto levada seriamente em conta, ou sequer estudada, sobretudo a perspectiva dos cidadãos do Paquistão – que, contra todas as probabilidades conseguiram uma democratização pacífica do seu país, e genericamente tem demonstrado uma notável moderação no seu comportamentos eleitoral.

Outro exemplo desta separação radical de perspectivas, e de ignorância relativamente ao contexto local foi o pânico evidenciado pelos media e pela liderança política e militar americano em 2009, relativamente a uma putativa tomada de poder dos taleban no Paquistão, uma fantasia absolutamente implausível e arredada das realidades daquele país. Como observa astutamente Manan Ahmed, este medo americano/ocidental está baseado numa «versão comicamente exagerada da realidade»:

«Existem aproximadamente 400 a 500 guerrilheiros taleban paquistaneses na região de Buner [...] e 15 000 a 20 000 a operar na região entre Peshawar e as fronteiras noroeste do Paquistão. Entretanto, o número de pessoal do Exército paquistanês no activo atinge cerca de 500 000 efectivos, apoiados por um orçamento anual a rondar os 4 biliões de dólares. [...] O Paquistão não é a Somália nem o Sudão, nem mesmo o Iraque ou o Afeganistão. É um Estado completamente moderno com vastas infra-estruturas; uma imprensa ferozmente crítica e distinta; uma economia activa e global; e laços fortes com as potências regionais como a China e o Irão. Não é um "Estado falhado". [...] Possui uma burocracia civil profundamente enraizada. A retórica do "Estado falhado" obscurece estas realidades. Esconde o facto de que partidos de base religiosa nunca obtiveram mais do que 10 por cento dos lugares em qualquer eleição.»14

As análises mediáticas, e uma larga maioria das análises académicas, nas capitais europeias e norte-americanas caem no mesmo erro, apenas reconhecendo agência aos terroristas ou aos indivíduos e organizações envolvidos na Guerra contra o Terror, e caracterizando regularmente os cidadãos e países no Sul global como incapazes de resistir ou lutar contra o extremismo e o terrorismo nos seus próprios termos. Se os acontecimentos da última década demonstram alguma coisa, é que esta perspectiva eurocêntrica dominante e a subalternização dos conhecimentos, práticas, aspirações e projectos do Outro que ela implica, ainda que eventualmente apelativa pela simplicidade, limita severamente o nosso entendimento do complexo contexto político da Guerra contra o Terror, e da segurança internacional genericamente. A nossa responsabilidade – enquanto analistas políticos, mas também enquanto cidadãos – passa por desenvolver um espírito mais crítico, por desenvolver narrativas mais descentradas e menos estereotípicas.

 

NOTAS

1 Um claro exemplo desta tendência é a forma como a própria expressão «11 de Setembro» ou 11/9 se tornou unívoca, apagando qualquer referência histórica a qualquer outro 11 de Setembro, como por exemplo a data do golpe de Estado no Chile que derrubou o Governo democraticamente eleito de Salvador Allende e instalou a ditadura do general Augusto Pinochet com o apoio cúmplice do Governo de Nixon (MAXWELL, Kenneth – «The other 9/11 – The United States and Chile, 1973». In Foreign Affairs. N.º 82, p. 147, 2003).         [ Links ]

2 Uma imagem de tal forma poderosa que efectivamente secundarizou ou apagou na memória colectiva outros aspectos do 11 de Setembro, incluindo o ataque contra o Pentágono, e o ataque falhado devido à coragem dos passageiros do voo da United Airlines 93, que se despenhou num descampado da Pensilvânia.

3 Conforme as estatísticas oficiais apresentadas no relatório final da Comissão do 11 de Setembro.

4 Por exemplo, e segundo dados das Nações Unidas, só em 2009 e só no Afeganistão foram mortos ou feridos 5978 civis (2412 mortos confirmados, dos quais um quarto – 596 – foram mortos por forças da NATO ou do governo afegão). Em 2010 foram mortos 2770 civis, 440 dos quais (16 por cento) por forças governamentais ou da NATO, e 2080 (75 por cento) por forças antigovernamentais. No Paquistão, as estimativas de civis mortos por atentados terroristas em 2009 oscilam entre os 2123 e os 2670 (CIVIC – Civilian Harm and Conflict in Northwest Pakistan, p. 13. [Consultado em 20 de Julho de 2011]. Disponível em: http://www.civicworldwide.org/storage/civicdev/documents/civic%20pakistan%202010%20final.pdf).

5 ROGGIO, Bill – «Taliban and Pakistan military battle in Swat». In Long War Journal. [Consultado em: 20 de Julho de 2011]. Disponível em: http://www.longwarjournal.org/archives/2009/05/taliban_and_pakistan.php.         [ Links ] Cf. também PANDE, Aparna – Explaining Pakistan’s Foreign Policy: Escaping India. Londres: Routledge, 2011, p. 79.

6 HRCP (Human Rights Commission of Pakistan) – Internal Displacaement in Pakistan: Contemporary Challenges, p. 5. [Consultado em 20 de Julho de 2011]. Disponível em:www.hrcp-web.org/pdf/Internal%20Displacement%20in%20Pakistan.pdf        [ Links ]

7 BAWER, Bruce – While Europe Slept: How Radical Islam is Destroying the West from within. Nova York: Doubleday, 2006.         [ Links ] PHILLIPS, Melanie – Londonistan. Nova York: Encounter Books, 2007.         [ Links ]Mas, para análises críticas que desconstroem esta narrativa, cf. HALLIDAY, Fred – Islam and the Myth of Confrontation: Religion and Politics in the Middle East. I. B. Tauris, 2002,         [ Links ] e DABASHI, Hamid – Islamic Liberation Theology: Resisting the Empire. Londres/Nova York: Routledge, 2008.         [ Links ]

8 MARRANCI, Gabriele – Understanding Muslim Identity: Rethinking Fundamentalism. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2009, pp. 2-4.         [ Links ]

9 MUELLER, John – Overblown: How Politicians and the Terrorism Industry Inflate National Security Threats, and Why We Believe Them. Nova York: Free Press, 2006;         [ Links ] JACKSON, Richard; SMYTH, Marie Breen, GUNNING, Jeroen, e JARVIS, Lee – Terrorism: A Critical Introduction. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2011, pp. 11-14.         [ Links ]

10 Cf. JACKSON, Richard – «Constructing enemies: "Islamic terrorism" in political and academic discourse». In Government and Opposition. Vol. 42, N.º 3, pp. 394-426, 2007.         [ Links ] STEUTER, Erin, e WILLS, Deborah – «Making the Muslim enemy: the social construction on the enemy in the War on Terror». In CARLTON-FORD, Stephen, e ENDER, Morton G. (coord.) – The Routledge Handbook of War and Society. Nova York: Routledge, 2010.         [ Links ]

11 ARADAU, Claudia, e MUNSTER, Rens van – «Exceptionalism and the "War on Terror"». In British Journal of Criminology. Vol. 49, N.º 5, 2009, pp. 686-701;         [ Links ] FOOT, Rosemary – «Exceptionalism again: the Bush Administration, the global war on terror and human rights». In Law and History Review. Vol. 26, N.º 3, 2008, pp. 707-725;         [ Links ] NEAL, Andrew W. – Exceptionalism and the politics of counter-terrorism: liberty, security, and the War on Terror. Londres: Taylor & Francis, 2010.         [ Links ]

12 WILLIAMS, Brian Glyn – «The CIA’s Covert Predator Drone War in Pakistan, 2004-2010: The History of an Assassination Campaign». In Studies in Conflict & Terrorism. Vol. 33, N.º 10, Setembro de 2010, pp. 871-892.

13 Conforme as estimativas apresentadas pela New America Foundation e considerando que as estatísticas são de Julho de 2011. NEW AMERICA FOUNDATION – The Year of the Drone - an analysis of U.S. drone strikes in Pakistan 2004-2011. [Consultado em 20 Julho 2011]. Disponível em: http://counterterrorism.newamerica.net/drones

14 AHMED, Manan – Where the Wild Frontiers Are: Pakistan and the American Imagination. Charlottesville, VA: Just World Books, 2011, p. 251.         [ Links ]