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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.31 Lisboa set. 2011

 

O 11 de Setembro e os clichés transatlânticos

 

Bernardo Pires de Lima

Investigador do IPRI – UNL. Doutorando em Relações Internacionais na FCSH – UNL, onde desenvolve uma tese sobre a NATO e o fim da Guerra Fria. Comentador de assuntos internacionais na TVI24 e Rádio Renascença. Colunista do Diário de Notícias e da Majalla Magazine. É autor de Blair, a Moral e o Poder (Guerra & Paz, 2008).

 

RESUMO

O artigo analisa algumas das frases emblemáticas usadas após os ataques a Nova York e Washington, tais como «somos todos americanos», «o mundo mudou a 11 de Setembro», «o pós-11 de Setembro» e «o 11 de Setembro de...». Embora estes clichés possam ser analisados sobre diversos ângulos, utiliza-se aqui uma dimensão transatlântica para se concluir que os acontecimentos de Setembro de 2001 alteraram algumas das premissas do sistema liberal ocidental e que outros actores entraram em cena na organização do sistema internacional.

Palavras-chave: Estados Unidos, 11 de Setembro, relações transatlânticas, sistema internacional

 

The 9/11 and the transatlantic clichés

ABSTRACT

This article analyses some expressions that spread around the world after the New York and Washington terrorist attacks, such as, "we are all Americans"; "the world changed after 9/11"; «"the post-9/11" or "the 9/11 of..."». Despite all these clichés could be analyzed with a wide range of dimensions, we use the transatlantic dimension, to conclude that the 9/11 events had changed some premises of the west liberal system and that other actors come in the international system organization.

Keywords: United States, 9/11, transatlantic relations and international system

 

Dez anos depois dos ataques em Nova York e Washington, há frases emblemáticas que fizeram escola e foram usadas demasiadas vezes sem grande critério ou rigor. E houve para todos os gostos: do «somos todos americanos» ao «o mundo mudou a 11 de Setembro», passando pela menos absoluta mas um tanto ou quanto aritmética «o pós-11 de Setembro», ou terminando na exaustiva expressão «o 11 de Setembro de...», cada vez que algum país sofria um ataque terrorista islâmico. Há, por certo, diversos ângulos para dissecar cada uma destas expressões mas este artigo vai privilegiar um só: a dimensão transatlântica. Vejamos como cada uma das quatro frases enunciadas se aplicou ao relacionamento entre norte-americanos e europeus na última década.

 

SOMOS TODOS AMERICANOS

Nem todos. À comoção do Le Monde respondeu o cinismo do Eliseu. À solidariedade europeia seguiu-se a desunião completa. As culpas de mais uma crise transatlântica foram evidentemente repartidas e já muito se escreveu sobre o tema, mas convém recordar o aproveitamento que algumas capitais fizeram da reacção militar de Washington, primeiro no Afeganistão e depois no Iraque.

Paris e Berlim formaram a dupla principal do minoritário pelotão de estados-membros que foram progressivamente descolando da narrativa do restante espaço transatlântico, até perceberem que a unipolaridade não terminava por decreto nem as vitórias eleitorais se garantiam com desprezo pela relação bilateral mais importante dos últimos cinquenta anos1. O consenso gerado pela intervenção no Afeganistão cedo deu lugar a um antiamericanismo de corredor que se alimentou e foi alimentando da contestação das ruas europeias. Hoje, muitos dirão que a intervenção no Iraque deu razão aos protestos e, por via disso, a Paris e Berlim. Em parte isto é verdade. A errática e até displicente narrativa norte-americana (com nuances nos discursos europeus) sobre a ligação de Saddam Hussein ao terrorismo jihadista e a posse de armas de destruição maciça sustenta essa visão. Só que esta linha de argumentação omite as posições da França e da Alemanha nas sucessivas conclusões dos conselhos europeus de 2002 e 2003 e até no articulado da célebre Resolução 1441 do Conselho de Segurança2. Em ambos os fora era pedido ao Iraque que «desarmasse» e «cumprisse com as exigências da comunidade internacional». Por outras palavras, tanto a França como a Alemanha jogaram num tabuleiro dissimulado: institucionalmente assinavam declarações com os aliados numa aparente sintonia; no plano político, demarcaram-se dessas mesmas declarações.

Podemos avaliar negativamente o comportamento de muitos líderes que integraram a coligação diplomático-militar contra o regime iraquiano. Podemos reconhecer sem subterfúgios (como muitos deles reconheceram ao longo desta década) que muita coisa correu profundamente mal e o risco corrido terá sido superior ao estimado. No entanto, não podemos anular as responsabilidades de Paris ou de Berlim na quebra da solidariedade transatlântica por motivos mais próximos do oportunismo político do que da responsabilidade que os vários momentos críticos da última década exigiram. Não era preciso serem «todos americanos», mas talvez não fosse preciso chegar-se ao ponto de «americanos nem vê-los».

 

O MUNDO MUDOU A 11 DE SETEMBRO

Esta expressão contém, à partida, dois elementos importantes que importa distinguir. Primeiro, a revelação de um terrorismo novo de inspiração fundamentalista islâmica e com grande capacidade de destruição humana. Segundo, um mundo assente na liderança de uma única superpotência que, com maior ou menor dificuldade, ia expandindo o seu modelo pelo resto do mundo. Ora, nem aquele tipo de terrorismo era propriamente uma novidade, nem deixou de existir uma única superpotência com dimensão e influência global nos diversos domínios do poder.

A base ideológica e metodológica do radicalismo islâmico tem fundamentos no auge da Guerra Fria e uma geometria variável de acordo com os conflitos que procurou influenciar. É profundamente contraditória e manipuladora. Nasce de uma vitimização ao jugo imperialista (ocidental, soviético) ou à acção de certos líderes árabes aliados do Ocidente, mas propõe-se impor pela força o islão, derrotar os «infiéis» e restaurar o califado. Além disso, junta uma feroz visão pan-islâmica com um profundo ódio aos valores liberais, estejam eles presentes no Ocidente ou não3. É ideologicamente totalitária e só aceita um jogo de soma nula: vitória ou morte. A 11 de Setembro de 2001 mostrou apenas até onde pode ir na busca destes objectivos. Mostrou-se de outra forma, mas não surgiu do nada.

Terá o mundo mudado a 11 de Setembro? Do ponto de vista enunciado antes, a ordem internacional não deixou de ser unipolar. Os Estados Unidos continuam a dominar no poder militar, mantêm uma influência política e económica a uma escala global ímpar, são culturalmente a nação mais atractiva e as instituições multilaterais por si criadas no pós-guerra continuam de pedra e cal no centro da arquitectura institucional. Dir-se-á que a China já contesta na prática esta hegemonia e que no domínio económico-financeiro existe um G2 equilibrado e interdependente. Reconhecer isto não implica considerar a ordem internacional solidamente multipolar, apenas admitir um outro equilíbrio que, em rigor, a década anterior ao 11 de Setembro não havia mostrado.

No plano transatlântico, a importância da Europa para a política externa americana manteve-se numa curva descendente que já havia iniciado marcha antes dos ataques, ou seja, viu perder a centralidade estratégica para Washington – equilibrando com o Pacífico –, demonstração de redução de primazia essa que começara a colocar-se (no debate académico e nas opções políticas) ao longo da década de 1990. Se, por um lado, essa era uma inevitabilidade face ao patamar de desenvolvimento e segurança que os europeus alcançaram, ela mostra, por outro, que o ritmo das decisões norte-americanas e alguns sinais vindos da Europa (desinvestimento na defesa, por exemplo) encerraram um profundo desajustamento transatlântico. Por outras palavras, a curva da perda de importância relativa dos europeus para a política externa norte-americana não começou a 11 de Setembro mas terá sido (com o intervalo inicial afegão) acelerada a partir daí.

Significa isto que o mundo mudou nessa trágica manhã de Nova York? Talvez seja exagerado dizê-lo. Em bom rigor, o mundo viu uma escalada do terrorismo islâmico como não tinha até então presenciado, um overstretch da superpotência que contribuiu para acelerar os equilíbrios internacionais nalgumas dimensões do poder e mostrar algumas das limitações da acção de Washington4. Mostrou a vulnerabilidade da segurança interna norte-americana como nunca, sublinhou um debate entre liberdades e securitarismo a que não estávamos habituados, trouxe ao de cima um approach europeu à segurança distinto da percepção vivida nos Estados Unidos, mostrou os limites do uso da força, das alianças e os dilemas financeiro e político inerentes a intervenções militares duradouras. O mundo não terá mudado a 11 de Setembro, mas com o 11 de Setembro muitas premissas do sistema liberal ocidental passaram a ser questionadas.

 

O PÓS-11 DE SETEMBRO

Haverá um antes e um depois do 11 de Setembro? É uma data de tal maneira imperativa como o fim da II Guerra Mundial ou a queda do Muro de Berlim? O que existia e deixou de existir após o 11 de Setembro que dê a esta data uma relevância digna da mudança de um paradigma internacional como aconteceu em 1945 ou 1989?

Entre o fim da Guerra Fria e os ataques às Torres Gémeas e ao Pentágono podíamos caracterizar o sistema internacional num quadro de adaptação à unipolaridade, onde a hegemonia norte-americana dispunha de argumentos suficientemente convincentes e atractivos para expandir um modelo político-económico. Os poderes económico e militar foram usados para legitimar as organizações internacionais criadas no pós-guerra, mantendo-as activas e adaptadas após o colapso da União Soviética. O uso da força passou a estar presente em acções humanitárias com uma forte componente ideológica e um quadro narrativo por concluir e sem consenso baseada numa dicotomia entre o bem e o mal. As restantes potências de dimensão média mantinham um estatuto híbrido, algumas mesmo em decadência, outras em busca de um modelo político-económico que servisse a sua ascensão. Contudo, nenhum país de grande dimensão era directamente hostil aos Estados Unidos ou criava uma ameaça aos interesses norte-americanos. Os aliados asiáticos do pós-guerra foram não só mantidos como muitos outros foram trazidos para a órbita de Washington. O mesmo aconteceu na Europa de Leste, na América Latina e no Médio Oriente. A política externa norte-americana privilegiou os alargamentos nas organizações internacionais triunfantes da Guerra Fria, fomentou o comércio internacional, expandiu a sua rede de alianças e acomodou os gigantes regionais de forma a que o seu previsível crescimento económico não fomentasse um hostil comportamento político-militar contra a superpotência.

A 11 de Setembro esta narrativa algo determinista e eufórica sofria um forte abalo. A superpotência era afinal supervulnerável no plano interno e facilmente convencida da necessidade de punir pela força todos os movimentos ou estados que patrocinassem o terrorismo. Essa vulnerabilidade acossou a resposta de Washington e, dez anos depois, é já possível perceber que uma grande fatia do défice federal se deve aos custos da duração das simultâneas guerras no Afeganistão e Iraque. Curiosamente, nenhum dos BRICS5 se empenhou ao lado das administrações norte-americanas nestas duas frentes (com excepção de algum apoio russo no Afeganistão), como que a prever uma causa-efeito entre as duas intervenções e a perda de capacidade financeira norte-americana. Sabendo que seria nesse plano que iriam concorrer directamente com o grande espaço transatlântico nas décadas seguintes, foram olhando à distância sem deixar de, aqui e ali, mostrar alguma solidariedade (por exemplo, nas renovações das resoluções do Conselho de Segurança que iam legitimando a presença internacional no Afeganistão e Iraque). O Conselho de Segurança tem sido mesmo um palco apetecível de equilíbrio entre grandes potências, como mostram as votações da China (no caso de sanções ao Paquistão), do Brasil e da Rússia (sobre o Irão ou a Líbia).

No plano transatlântico não há, em bom rigor, um mundo pós-11 de Setembro: a perda de centralidade europeia já se tinha iniciado antes e a crise transatlântica do Iraque, embora grave, não foi a primeira e não será a última. De um ângulo que vai para lá desta relação, pode dizer-se que após o 11 de Setembro – fruto de premissas geopolíticas (crescimento económico da China, Índia ou Brasil) ou de opções demasiado dispendiosas por parte de Washington e que tornaram os Estados Unidos mais interdependentes de outras potências – o mundo não transatlântico passou a ocupar um espaço central no sistema internacional como até então não acontecera. Se houve alguma coisa que mudou foi esta.

 

O 11 DE SETEMBRO DE...

Exagerou-se nesta expressão. Madrid, Londres, Istambul, Moscovo ou Bombaim foram algumas das vítimas do fanatismo jihadista na última década. Tal como Bagdade, Cabul, Casablanca ou Bali. Não é só pelo número de vítimas que a comparação com o 11 de Setembro faz pouco sentido. É pelo que o 11 de Setembro significa como acto maior de um terrorismo islâmico apocalíptico. O ataque às Torres Gémeas foi dramaticamente singular. Pela fórmula encontrada para destruir um símbolo do sucesso económico ocidental. Pela necessidade de o fazer num horário mediaticamente atractivo. Pelo pânico gerado num país considerado impenetrável à ameaça externa, fosse qual fosse. Pela alteração brusca que iria provocar numa sociedade livre de movimentos. Pela ingerência a um nível nunca visto nos assuntos domésticos e externos da maior superpotência da história. Todos os outros ataques que simbolicamente enunciámos foram réplicas do 11 de Setembro. Cada um, à sua maneira, mostraram a geografia do terrorismo islâmico, a indiscriminada vontade em destruir sociedades mais ou menos livres e reformistas, tenham estas maiorias cristã ou muçulmana. Todos eles puseram à prova a força das democracias, a resposta dos seus líderes, a coragem dos seus cidadãos. Dez anos depois do 11 de Setembro a luta continua. Uns pela defesa das liberdades, outros pela propagação do ódio, do absolutismo religioso e de uma legitimidade pré-moderna. Ainda só passou uma década.

 

NOTAS

1 Ver, por exemplo, GORDON, Philip H., e SHAPIRO, Jeremy – Allies at War: America, Europe and the Crisis over Iraq. Nova York: McGraw-Hill, 2004;         [ Links ] SZABO, Stephen F. – Parting Ways: The Crisis in German-American Relations. Washington DC: Brookings Institution Press, 2004.         [ Links ]

2 Cf. Conclusões da 2447.ª Sessão do Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas, Bruxelas, 22 de Julho de 2002, 10945/02 (Presse 210); Conclusões da 2464.ª Sessão do Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas, Bruxelas, 19 de Novembro de 2002, 14184/02 (Presse 351); Conclusões da Presidência, Conselho Europeu de Copenhaga, Bruxelas, 12 e 13 de Dezembro de 2002; Conclusões da 2482.ª Sessão do Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas, Bruxelas, 27 de Janeiro de 2003, 5396/03 (Presse 8); Conclusões do Conselho Europeu Extraordinário, Bruxelas, 17 de Fevereiro de 2003 (6466/03); Resolution 1441, United Nations Security Council, 8 de Novembro de 2002.

3 Ver, por exemplo, RIGHT, Lawrence – The Looming Tower: Al-Qaeda and the Road to 9/11. Nova York: Penguin Books, 2006;         [ Links ] BURUMA, Ian, e MARGALIT, Avishai – Occidentalism: The West in the Eyes of its Enemies. Nova York: The Penguin Press, 2004.         [ Links ]

4 Cf. LINDSAY, James M. – «George W. Bush, Barack Obama and the future of US global leadership». In International Affairs. Vol. 87, N.º 4, 2011, pp. 765-779.         [ Links ]

5 Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.