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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.31 Lisboa set. 2011

 

Os gaps da União Europeia

 

Ana Paula Brandão1

Professora de Relações Internacionais da Universidade do Minho.

 

RESUMO

O artigo analisa alguns dos gaps da União Europeia (UE) no que se refere às questões securitárias, tendo como pano de fundo as transformações exigidas pelos acontecimentos do 11 de Setembro. Depois de traçar a evolução das estratégias desenvolvidas pela UE e dos principais instrumentos de luta contra o terrorismo, a autora conclui que a luta antiterrorista da UE evidencia um gap entre capacidade e expectativas.

Palavras-chave: União Europeia, segurança, terrorismo, 11/9

 

The European Union’s gaps

ABSTRACT

Regarding the transformations that 9/11 required, this article examines the European Union’s gaps concerning the security policy. After enunciates the evolution of the EU strategies and the main tools used against terrorism, the article concludes on the existence of a gap between capacity and expectations.

Keywords: European Union, security policies, terrorism, 9/11

 

Oprojecto monnetiano nasceu para dar resposta a uma preocupação securitária vestefaliana – a conflitualidade entre estados europeus – através de um meio pós-vestefaliano não securitário. Criado em plena Guerra Fria, num quadro em que a ameaça era clara, de fonte estadual e de natureza predominantemente político-militar, o actor europeu enfrenta hoje um ambiente complexo marcado pela intensificação de desafios multidimensionais, de fonte não estadual e de natureza transnacional. Um ambiente exigente para uma organização internacional que já não se restringe ao domínio económico e que pretende projectar-se como actor global.

O que mudou após o 11 de Setembro? A profusão política, legislativa e orgânica da União Europeia (UE) surpreende pelo contraste com duas décadas de inércia no domínio do contraterrorismo. No entanto, um olhar mais atento confirma os gaps de um actor constrangido pela tradicional tensão entre solidariedade colectiva e soberania estadual2.

 

DO ÍMPETO INICIAL À INÉRCIA

Na década de 1970, o crescendo da actividade terrorista (de incidência internacional) na Europa Ocidental evidenciou os limites dos meios nacionais para lutar de forma eficaz contra a ameaça, o que impulsionou a cooperação entre os estados-membros da Comunidade Económica Europeia (CEE) no domínio da justiça e assuntos internos (JAI). Tratou-se de uma cooperação informal, fora do quadro do Tratado de Roma e das instituições comunitárias.

O primeiro encontro dos ministros JAI realizou-se em Roma, no dia 1 de Dezembro de 1975. Em Junho de 1976, os ministros reunidos no Luxemburgo estabeleceram uma estrutura informal de cooperação (TREVI) que «funcionou fora do quadro das Comunidades Europeias, numa base puramente intergovernamental, como parte do processo de cooperação no domínio da política externa»3. A estrutura consistiu inicialmente em dois grupos – TREVI I, dedicado ao terrorismo internacional, e TREVI II, orientado para assuntos relativos à ordem pública, à organização e à formação de forças policiais. Na década de 1980, a agenda da cooperação passou a prioritarizar o combate ao tráfico de droga e ao crime organizado, o que levou à criação do grupo TREVI III. O objectivo 1993 – concretização do mercado interno – intensificou as preocupações securitárias associadas à criação de um espaço europeu sem fronteiras internas, conduzindo à implementação de novos mecanismos de cooperação, entre os quais TREVI 1992 focado na cooperação policial e nas matérias de segurança interna. De referir, nesta evolução, o contributo do Acordo de Schengen e da subsequente Convenção de Aplicação, ainda que fora do quadro do direito comunitário. Schengen, que antecipou a livre circulação de pessoas entre os estados signatários, também previa medidas compensatórias ao nível da segurança.

A segunda fase da cooperação foi iniciada pelo Tratado de Maastricht que introduziu a cooperação JAI no âmbito do Tratado da União Europeia (TUE), a qual integrava questões de segurança interna. Estas foram assim «trazidas pela primeira vez para o mainstream do processo de integração»4. Cumprindo a tradição europeia de considerar o terrorismo um crime que deve ser prevenido e combatido através de meios judiciários e policiais, esta matéria é inserida no terceiro pilar da UE5.

Se os primeiros esforços no sentido de promover a cooperação no domínio da segurança interna foram impulsionados pela questão terrorista, esta deixou de ser uma prioridade nos anos 1980. Até Setembro de 2001, foi manifesto o silêncio colectivo apenas interrompido por iniciativas dispersas, predominantemente de natureza declarativa e/ou não vinculativa, algumas das quais por influência da Espanha e/ou da França interessadas em mobilizar a vontade dos estados-membros em prol do agendamento do assunto e da acção colectiva. De referir a adopção da Declaração de La Gomera sobre o terrorismo na qual os estados-membros reconheciam que a natureza transnacional da ameaça exigia a coordenação colectiva dos meios judiciários e policiais nacionais6; a Acção Comum 96/10/610/JAI que visava a criação de um repertório comum de competências, conhecimentos e técnicas7; a extensão do mandato da Europol aprovada pelo Conselho da UE em Dezembro de 19988, e posterior criação da Unidade Europol Contraterrorismo9; a recomendação do Parlamento Europeu sobre o papel da UE na luta contra o terrorismo10, que, dias antes dos acontecimentos de 11 de Setembro, chamava a atenção para a alteração da natureza do terrorismo e consequente insuficiência dos meios clássicos de cooperação judiciária e policial para o combater, exortando a um maior empenho das instituições (Conselho da UE e Comissão Europeia) nesse combate, concluindo com uma série de sugestões que seriam incorporadas na legislação adoptada após os ataques.

Identifica-se aqui o primeiro gap europeu – o gap entre ímpeto e continuidade. A história da construção europeia demonstra que a decisão e a acção colectivas no domínio da segurança (e não só) são geralmente desencadeadas como reacção a crises e/ou ameaças. No entanto, a presença, a capacidade e o reconhecimento do actor passam pela continuidade consistente (estrutural) não dependente de reacções epidérmicas (conjunturais) aos acontecimentos do sistema. Um dos factores explicativos prende-se com o dado soberanista. Os estados, enquanto actores racionais, pesam os custos e benefícios da acção colectiva. Mesmo que esta não implique transferência de soberania, é sempre limitadora da actuação estadual. O receio da ameaça tende a valorizar a importância da dimensão colectiva.

Na linha da Escola de Copenhaga, pode afirmar-se que a percepção de uma ameaça existencial leva à prioritarização da mesma, imprimindo um carácter de urgência na adopção de medidas excepcionais. No entanto, esse receio pode não ser suficiente para sustentar uma mudança continuada de alcance estrutural, até porque o nível de ameaça não se mantém constante e a percepção da mesma é diferenciada entre os estados- -membros. Isto explica a desaceleração uma vez passado o momento crítico11. Daí a importância da análise do impacto das alterações (políticas, legislativas, orgânicas) reactivas ao momentum para perceber se as mesmas têm um valor acrescentado, gerando um processo de path dependence12 com efeito transformativo de longo prazo.

 

HIPERACTIVISMO REACTIVO

A resposta à ameaça terrorista, embora tenha suscitado a criação de novos instrumentos, catalisou, sobretudo, a adopção de instrumentos (estagnados) previstos, designadamente, pelo Programa de Tampere (1999) e actualizou/expandiu a aplicação de instrumentos preexistentes.

Em seguida, apresenta-se uma síntese dos principais progressos organizados em quatro categorias: conceptuais, político-estratégicos, legislativos e orgânicos.

 

CONCEPTUAIS

Sendo o terrorismo um conceito contestado, com fortes implicações políticas, e considerando a diversidade de experiências nacionais nesta matéria, é significativo o esforço no sentido de harmonizar a definição de infracção terrorista e de grupo terrorista.

De acordo com a Decisão-Quadro 2002/475/JAI, entende-se por «"grupo terrorista" a associação estruturada de duas ou mais pessoas, que se mantém ao longo do tempo e actua de forma concertada, com o objectivo de cometer infracções terroristas»13. O n.º 1 do artigo 11.º da decisão-quadro estabelece que os estados-membros aprovariam, o mais tardar até 31 de Dezembro de 2002, as medidas necessárias para dar cumprimento à mesma. Em Junho de 2004, no relatório de monitorização, a Comissão identificava falhas na respectiva transposição, convidando os estados-membros em falta a actuar «com rapidez e de forma completa»14. Seis anos mais tarde, apesar dos avanços, alguns estados-membros não tinham transposto correctamente os artigos 1.º, 5.3 e 7 da referida decisão-quadro. «A transposição lenta e imperfeita da legislação europeia afecta a cooperação policial e judiciária operacional sendo uma fonte de incerteza legal e subsequentemente de confusão e frustração para os profissionais.»15 Estas deficiências evidenciam um segundo gap da União – o gap entre decisão colectiva e implementação nacional. Vários aspectos concorrem para explicar o défice de implementação: falta de vontade política dos estados16, diferenciada percepção da ameaça, diversidade de culturas jurídicas e administrativas nacionais17, défice de poder da Comissão no âmbito do então terceiro pilar18.

 

POLÍTICO-ESTRATÉGICOS

O facto de a Europa ser «simultaneamente um alvo e uma base para o terrorismo»19 explica que este seja considerado pelos documentos estratégicos comuns20 como uma das principais ameaças à União21. A gravidade do terrorismo decorre do seu «desprezo absoluto pela vida humana e pelos valores democráticos», da sua dimensão global, da sua determinação em «fazer uso da máxima violência» e da sua capacidade de recrutamento. A ameaça é percebida como dinâmica, interligada com outras ameaças, pelo que exige modelos de resposta flexíveis e integrados22.

A evolução dos acontecimentos influenciou a percepção colectiva da ameaça terrorista. Após os ataques de 11/09, foi considerada uma ameaça global, externa, às sociedades democráticas, atentando contra os valores e princípios que as regem. Dois anos mais tarde, na «Estratégia Europeia de Segurança», reconhece-se a dimensão externa e interna da ameaça. Após os ataques de Londres, a estratégia antiterrorista «coloca uma ênfase ainda maior na ameaça do terrorismo interno através de radicalização e recrutamento no seio da UE»23.

Para dar resposta à ameaça, as estratégias pugnam por uma abordagem abrangente que conjugue «serviços de informações, meios policiais, judiciais, militares e outros». Nesta linha, o Conselho Europeu extraordinário de Setembro de 2001 adoptou um plano de acção de amplo alcance, o qual «constituiu o embrião da política antiterrorista da UE, estabeleceu um quadro para políticas dispersas e tornou-se um mecanismo de coordenação interna fornecendo objectivos, prazos e competências de implementação»24. Após os ataques de Madrid, o plano de acção revisto25 definiu sete objectivos estratégicos cuja consecução exigia instrumentos dos três pilares, e reforçou os mecanismos de monitorização com vista a melhorar a implementação das decisões por parte dos estados-membros.

Em resposta aos ataques de Londres, foi adoptada a Estratégia Antiterrorista da União Europeia (2005) que reorganizou os objectivos estratégicos em torno de quatro eixos: prevenção, protecção, perseguição, resposta26. O primeiro eixo privilegia a prevenção da radicalização e do recrutamento27, incluindo a utilização da internet para esses fins, bem como a prevenção do financiamento do terrorismo. As medidas adoptadas no segundo eixo têm por objectivo a protecção das infra-estruturas críticas e das fronteiras externas da UE, bem como a segurança dos transportes (segurança marítima, segurança da aviação civil) e da cadeia de abastecimento, a promoção da actividade de I&D no domínio da segurança28 e a avaliação conjunta de ameaças. O quarto eixo visa agilizar a perseguição através das fronteiras dos estados-membros, bem como reforçar o intercâmbio de informações. Para responder de forma eficaz em caso de ataque, tendo em vista a minimização das consequências dos mesmos, a União propõe-se melhorar a cooperação nas áreas da gestão civil de crises, da prevenção civil e da preparação para situações de emergência, bem como apoiar as vítimas dos ataques.

O terceiro nível estratégico incide sobre domínios mais específicos, sendo de destacar a «Estratégia da UE para o Combate à Radicalização e Recrutamento para o Terrorismo»29 e respectivos Plano de Acção e Plano de Actuação.

 

LEGISLATIVOS

Os ataques terroristas de 2001 e subsequentes tiveram um efeito mobilizador da vontade política dos estados-membros superadora da histórica resistência dos mesmos em adoptar actos legislativos comuns num domínio sensível da soberania nacional. Por outro lado, a multidimensionalidade da ameaça implicou uma abordagem compreensiva afirmada pelo Conselho Europeu Extraordinário de 21 de Setembro de 2001, a qual exigia a coordenação de instrumentos dos então três pilares da União (transpilarização).

É possível identificar três períodos de intensificação legislativa (2002, 2004-2005, 2008), sendo que os dois primeiros são sintomáticos do comportamento reactivo da UE aos ataques terroristas, e o último resultante do activismo da Comissão, quer em termos de iniciativa (política e legislativa) após os ataques em solo europeu, quer em termos de monitorização da qual resultou a revisão de actos legislativos adoptados em 2002.

Logo após o 11/9, a prioridade foi dada à definição comum de infracção terrorista e harmonização mínima de penas a aplicar, à aprovação do Mandado de Captura Europeu e ao congelamento de activos de grupos terroristas.

A actividade legislativa subsequente privilegiou o combate ao financiamento do terrorismo, considerado um crime, passando-se a distinguir o branqueamento de capitais associado ao crime organizado e transacções com vista a financiar organizações terroristas e ataques terroristas30. A segurança dos transportes, particularmente da aviação civil, é também área que se destaca. Outros actos legislativos, nos diferentes eixos da estratégia antiterrorista, incidem sobre a prevenção de uso de explosivos, a prevenção do radicalismo e recrutamento, a protecção de infra-estruturas críticas, designadamente informáticas, o controlo biométrico e a criação de um programa de prevenção, preparação e gestão das consequências.

A recente experiência da União na luta contra o terrorismo influenciou algumas das disposições introduzidas pelo Tratado de Lisboa. De referir a inclusão do terrorismo na lista dos domínios de criminalidade; a introdução da cláusula de solidariedade31 (artigo 222.º) no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que prevê a mobilização de todos os instrumentos (comuns e/ou disponibilizados pelos estados-membros) da União para dar assistência a um Estado-membro, bem como para proteger as instituições democráticas e a população civil, em caso de ataque terrorista; o artigo 75.º do TFUE que cria a base jurídica para medidas administrativas relativas ao congelamento de fundos; o contributo das missões da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD) para a luta contra o terrorismo, incluindo o apoio a países terceiros. Outra categoria prende-se com alterações do Tratado de Lisboa que poderão ser facilitadoras da actuação antiterrorista da União. Assim, a consagração da UE como organização internacional dota-a de poderes antes restritos à Comunidade Europeia (que não incluía o domínio da segurança); o fim dos pilares favorece a abordagem compreensiva adoptada em 2001; o alto-representante para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança e o Serviço Europeu de Acção Externa potenciam a coordenação entre instrumentos externos e internos do actor europeu; a transferência da cooperação policial e judiciária em matéria penal para o TFUE permite a aplicação (ainda que parcial) do método comunitário; as disposições relativas à Europol, à criação do Comité Permanente para a Cooperação Operacional em Matéria de Segurança Interna (COSI)32 e às formas graves de criminalidade, reforçam o papel da União no domínio da «segurança interna».

 

ORGÂNICOS

A resposta institucional foi predominantemente de adequação, através da criação ou da expansão de organismos especializados no seio das instituições e agências da UE.

No seio do Conselho, o Grupo de Trabalho sobre Terrorismo (TWG) e o Working Party on Terrorism (COTER) foram dotados de mais recursos humanos e materiais. Após os ataques em espaço europeu, foi criado o cargo de coordenador da luta antiterrorismo cuja holística tarefa de coordenação não é acompanhada por poderes efectivos para responder ao principal desafio da sua função: «ajudar os estados-membros a fazerem as coisas que eles disseram que fariam»33. Criado em 1999 para apoiar o alto-representante, no âmbito estrito da pesc (dimensão externa), o Centro de Situação (SitCen) conheceu uma extensão de mandato após os ataques de Madrid, passando a providenciar análise estratégica sobre a ameaça terrorista dentro e fora da UE, tendo sido criada uma célula contraterrorismo que também contempla a dimensão interna da segurança34. A Comissão Europeia, no âmbito da então Direcção-Geral de Justiça, Liberdade e Segurança, criou um grupo de trabalho sobre a dimensão interna e (em articulação com a Direcção-Geral das Relações Externas) externa do terrorismo.

No domínio da cooperação policial, foram reforçados os poderes operacionais da Europol35, e no domínio da cooperação judiciária, foi instituída a Eurojust36. Cinco anos após a criação desta última, a Comissão37 identificava os obstáculos à cooperação judiciária: défice de poderes dos membros nacionais (em relação às suas autoridades nacionais) e do Colégio da Eurojust, insuficiência de actividades de informação proactivas da unidade, incumprimento das suas obrigações em termos de partilha de informação por parte de alguns estados-membros.

De referir ainda grupos e redes de especialistas nacionais, tais como o grupo ad hoc dos responsáveis pelas unidades antiterroristas nacionais e a rede de Police Counter Terrorism Liaison Officers (CTLO), no âmbito do Police Working Group on Terrorism (PWGT)38, que promove o intercâmbio de informação operacional sobre actividade terrorista.

Se, por um lado, a especialização orgânica reforça o papel da União na luta contra o terrorismo, por outro, não tem sido acompanhada pela necessária coordenação (horizontal e vertical), o que prejudica a coerência e consistência da actuação europeia.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

«A principal vantagem de ter uma Estratégia Antiterrorista é o facto de permitir a implementação equilibrada e coesa da política antiterrorismo, em vez de uma resposta provocada pela crise.»39 Diferentemente do impulso inicial de cooperação informal, pode afirmar-se que os progressos da UE pós-11/9 criaram uma cooperação institucionalizada continuada configurando um processo de path-dependence. «A luta contra o terrorismo fomentou uma cooperação de grande alcance e destacou a crescente racionalidade securitária por trás de muitas das políticas da UE, induzindo, futuramente, uma maior integração europeia.»40 A estratégia é ambiciosa, sucedendo a décadas de inacção colectiva, pelo que suscitadora de expectativas (internas e externas) num domínio político em que os recursos dependem dos estados-membros. À semelhança da acção externa41, a luta antiterrorista da UE evidencia um gap entre capacidade e expectativas.

A reacção à ameaça funcionou como um policy-catalyst42 no domínio da «segurança interna» bem como para a construção da UE como actor de segurança. A este nível é possível identificar quatro tendências conexas. Antes de mais, a abordagem transpilares (até à entrada do Tratado de Lisboa)/compreensiva que utiliza instrumentos de diversas políticas e que pugna pelo nexus entre a «segurança interna» e a segurança externa da União, na resposta a uma ameaça multidimensional e transnacional. De notar que a UE é «a única organização onde os governos europeus podem juntar colectivamente as componentes de contraterrorismo das suas políticas externas, de implementação da lei e da defesa»43. Uma segunda dinâmica prende-se com a externalização da luta contra o terrorismo44 que compreende aspectos como o diálogo político e a cooperação (da UE e das respectivas agências) com organizações internacionais e com países terceiros, entre os quais se destacam os Estados Unidos, a promoção das convenções das Nações Unidas, a incorporação de cláusulas antiterroristas nos acordos com países terceiros, a assistência a estes na luta antiterrorista, a possibilidade de recolha de informações associada a missões da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD). Finalmente, de notar a declarada internalização de uma política de incidência externa através da utilização dos meios (civis e militares) da PCSD para defender as populações civis contra ataques terroristas.

O progresso contrastante com a inércia do período anterior aos ataques de 11 de Setembro é evidente. Também é evidente que apesar de se assistir a uma europeização da governação do terrorismo45, esta tem passado mais pela coordenação do que pela integração46. Os estados-membros, embora reconheçam discursivamente os limites da acção nacional na luta contra uma ameaça transnacional e afirmem a necessidade da acção colectiva, na prática resistem a transferir competências para a União, a dotar a União dos recursos humanos e materiais necessários, a valorizar o multilateral face ao bilateral, a partilhar informações, o que explica um quarto gap europeu – o gap entre declaração e implementação. Mas o dado soberanista (associado a um domínio político sensível) não esgota a explicação dos gaps do actor europeu. A complexidade política (de um sistema de governação multinível) e institucional (de um espaço superpovoado por uma multiplicidade de organismos que nem sempre comunicam entre si) da UE cria constrangimentos de coordenação inibidores da eficácia do quadro multilateral.

 

NOTAS

1 A autora agradece o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projecto «A Coordenação Europeia Multinível no Combate ao Terrorismo Transnacional: Os Casos de Portugal e Espanha» (PTDC/CPO/64365/2006), co-financiado pelo FEDER/COMPETE (Programa Operacional Factores de Competitividade) – QREN (Quadro de Referência Estratégico Nacional).

2 KIRCHNER, Emil, e SPERLING, James – EU Security Governance. Manchester: Manchester University Press, 2007.         [ Links ]

3 MITSILEGAS, Valsamis, MONAR, Jörg, e REES, Wyn. – The European Union and Internal Security: Guardian of the People? Houndmills: Palgrave Macmillan, 2003.         [ Links ] A Cooperação Política Europeia (CPE) começou também por ser um processo de cooperação informal, tendo sido formalizada pelo Acto Único Europeu que entrou em vigor a 1 de Julho de 1987.

4 MITSILEGAS, Valsamis, MONAR, Jörg, e REES, Wyn. – The European Union and Internal Security: Guardian of the People?, p. 32.         [ Links ]

5 O Tratado de Amesterdão restringiu o terceiro pilar à cooperação policial e judiciária em matéria penal, transferindo as restantes matérias JAI para o primeiro pilar.

6 EUROPEAN COUNCIL – «Annex 3: Terrorism: La Gomera Declaration. Madrid European Council: 15 and 16 December 1995: Presidency Conclusions». Disponível em: http://www.europarl.europa.eu/summits/mad2_en.htm#annex3.

7 CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA – «Acção Comum de 15 de Outubro de 1996 adoptada pelo Conselho, com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, relativa à criação e actualização de um repertório de competências, técnicas e conhecimentos específicos em matéria de luta contra o terrorismo para facilitar a cooperação entre os estados-membros da União Europeia neste domínio (96/610/ /JAI)». In Jornal Oficial. N.º L 273, 25 de Outubro de 1996, pp. 1-2.

8 CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA – «Decisão do Conselho de 3 de Dezembro de 1998 que confere poderes à Europol para tratar das infracções cometidas, ou susceptíveis de serem cometidas, no âmbito de actividades de terrorismo que atentem contra a vida, a integridade física, a liberdade das pessoas e os bens (1999/ /C 26/06)». In Jornal Oficial. N.º C 26, 30 de Janeiro de 1999, p. 22.

9 Na sequência da reestruturação interna da Europol, em 2001, os três departamentos operacionais (Apoio à Investigação, Análise de Informações, Crime Organizado) foram fundidos num departamento único dedicado ao Crime Grave. Actualmente, a estrutura compreende três departamentos (Operações, Governação, Capacidades), estando a unidade de contraterrorismo integrada no Departamento de Operações (O4 - Contraterrorismo).

10 Parlamento Europeu – «Recomendação do Parlamento Europeu sobre o papel da União na luta contra o terrorismo de 5 de Setembro de 2001 (2001-2016)». In Jornal Oficial. N.º C 72, 21 de Março de 2002, pp. 135-141.         [ Links ]

11 ARGOMANIZ, Javier – «Post-9/11 Institutionalisation of European Union Counter-terrorism: emergence, acceleration and inertia». In European Security. Vol. 18, N.º 2, 2009, pp. 151-172;         [ Links ] BURES, Oldrich – «EU counterterrorism policy: a paper tiger?». In Terrorism and Political Violence. Vol. 18, N.º 1, 2006, pp. 57-78;         [ Links ] ZIMMERMANN, Doron – «The European Union and Post-9/11 Counterterrorism: a reappraisal». In Studies in Conflict and Terrorism. Vol. 29, 2006, pp. 123-145;         [ Links ] BOER, Monica den – 9/11 and the Europeanisation of Anti-Terrorism Policy: A Critical Assessment. Policy Papers N.° 6, 2003.         [ Links ]

12 No sentido de que «the path of previous outcomes matters». Cf. PAGE, Scott E. – «Essay: path dependence». In Quarterly Journal of Political Science. N.º 1, 2006, p. 89.         [ Links ]

13 CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA – «Decisão-Quadro do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa à luta contra o terrorismo (2002/475/JAI)». In Jornal Oficial. N.º L 164, 22 de Junho de 2002, pp. 3-7. A Decisão-Quadro 2002/475/JAI foi alterada pela «Decisão-Quadro 2008/919/JAI do Conselho, de 28 de Novembro de 2008». In Jornal Oficial. N.º L 330, 9 de Dezembro de 2008, pp. 21-23.

14 COMISSÃO EUROPEIA – «Relatório da Comissão apresentado nos termos do artigo 11.º da decisão-quadro do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa à luta contra o terrorismo (COM (2004) 409 final)». Bruxelas, 6 de Novembro de 2007.

15 ARGOMANIZ, Javier – «Before and after Lisbon: legal implementation as the "Achilles Heel" in EU counter-terrorism?». In European Security. Vol. 19, 2010, p. 297.         [ Links ]

16 ZIMMERMANN, Doron – «The European Union and post-9/11 counterterrorism: a reappraisal».

17 ARGOMANIZ, Javier – «Before and after Lisbon: legal implementation as the "Achilles Heel" in EU counter-terrorism?».

18 MONAR, Jörg. – «Common Threat and Common response? The European Union’s counterterrorism strategy and its problems». In Government and Opposition. Vol. 42, N.º 3, 2007, pp. 292-313.

19 De notar que a UE é também utilizada como «plataforma para preparar e iniciar ataques em outros lugares». Cf. CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA – «First main assessment and description report for internal debate (M.A.D.R.I.D. Report) (10203/10)». Bruxelas, 26 de Maio de 2010.

20 Estratégia Europeia de Segurança (2003) e Estratégia de Segurança Interna da União Europeia (2010).

21 Segundo o primeiro relatório sobre as ameaças e os desafios à segurança interna da UE, «o terrorismo islâmico continua a representar uma ameaça grave para os cidadãos da UE».

22 M.A.D.R.I.D. Report.

23 MONAR, Jörg – «The European Union as a collective actor in the fight against post-9/11 terrorism: progress and problems of a primarily cooperative approach». In GANI, Miriam, e MATHEW, Penelope (eds.) – Fresh Perspectives on the «War on Terror». Camberra: ANU Epress, 2008. Disponível em: http://epress.anu.edu.au/war_terror/mobile_devices/ch11.html        [ Links ]

24 ARGOMANIZ, Javier – «Post-9/11 institutionalisation of European Union counter-terrorism: emergence, acceleration and inertia», p. 154.

25 CONSELHO EUROPEU – «Declaração sobre a luta contra o terrorismo», 25 de Abril de 2005. Disponível em http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cms_data/docs/pressdata/pt/ec/79644.pdf.

26 Para informação mais detalhada sobre a legislação e medidas adoptadas, consultar os documentos de avaliação elaborados pela Comissão Europeia em Julho 2010 [COM (2010) 386 e SEC (2010) 911].

27 O principal objectivo é a aproximação às disposições nacionais no que respeita a «incitamento público à prática de crimes terroristas; recrutamento para fins terroristas; treino para fins terroristas» [COM (2010)386].

28 Para o período 2007-2013 foram atribuídos 1,4 mil milhões de euros ao programa global de investigação em matéria de segurança (7.° Programa-Quadro de Investigação e Desenvolvimento Tecnológico).

29 Aprovada em 2005 e revista em 2008.

30 COM (2004) 700. FRATANGELO, Pierpaolo – «L’Union Européenne face à la lutte contre le financement du terrorisme». In Revue du Droit de l’Union Européenne. N.º 4, 2006, pp. 815-840.

31 Prevista no artigo 42.º do projecto de Tratado Constitucional e aprovada pelo Conselho Europeu que se realizou após os ataques de Madrid («Declaração sobre a Luta contra o Terrorismo», 25 de Março de 2004).

32 Sobre a actividade dos primeiros seis meses de funcionamento do COJSI, consultar: «Draft Report to the European Parliament and national Parliaments on the proceedings of the Standing Committee on operational cooperation on internal security for the period January 2010 – June 2011» (12980/11), 18 de Julho de 2011. Disponível em: http://www.statewatch.org/news/2011/aug/eu-council-cosi-annual-report-jan-10-jun-11-12980-11.pdf.

33 VRIES, Gijs de – «Summary Transcript of Joint Press Briefing Javier Solana, EU High Representative for the CFSP, Gijs de Vries, Counter-terrorism Co-ordinator» (S0090/04). 30 de Março de 2004. Disponível em: http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cmsUpload/Transcript.pdf

34 WAHL, Thomas – «The European Union as an actor in the fight against terrorism». In WADE, Marianne, e MALJEVIC, Almir (eds.) – A War on Terror?: The European Stance on a New Threat, Changing Laws and Human Rights Implications. Nova York: Primavera de 2010, p. 152.         [ Links ]

35 A Counter-Terrorism Task Force (CTTF) entrou em funcionamento em Novembro de 2001. Em Novembro de 2002, numa reunião de alto nível de especialistas foi decidido integrá-la plenamente na Europol. Foi descontinuada, tendo as respectivas tarefas sido transferidas para a Unidade de Contraterrorismo da Europol. Foi reactivada após os ataques de Madrid (CTTF2) e, posteriormente, transferida para a First Response Network.

36 Foi precedida pela pró-Eurojust. Os ataques do 11/9 «serviram da catalisador do estabelecimento de uma unidade de coordenação judiciária» («The history of Eurojust». Disponível em: http://www.eurojust.europa.eu/about.htm). Em cumprimento da Decisão 2002/187/JAI, os estados-membros designaram correspondentes nacionais para as questões relativas ao terrorismo. Após os ataques de Madrid, foi criado um grupo de trabalho para as questões relativas ao terrorismo no sentido de organizar reuniões de coordenação, promover a troca de informação e estabelecer uma base de dados de documentos legais (Eurojuts. Relatório Anual 2004. Disponível em http://www.eurojust.europa.eu/press_releases/annual_reports/2004/Annual_Report_2004_PT.pdf).

37 COMISSÃO EUROPEIA – «Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu relativa ao papel da Eurojust e da Rede Judiciária Europeia no âmbito da luta contra a criminalidade organizada e o terrorismo na União Europeia» (COM (2007) 644). Bruxelas, 23 de Outubro de 2007.

38 Criado em 1979 no âmbito da cooperação TREVI.

39 EUROPEAN UNION, Counter-Terrorism Coordinator. «EU Counter-Terrorism Strategy – Discussion Paper». 17 de Junho de 2011». Disponível em: http://register.consilium.europa.eu/pdf/en/11/st10/st10622-re01.en11.pdf.

40 SPENCE, David – «Introduction: International Terrorism: the quest for a coherent EU response». In The European Union and Terrorism. Londres: John Harper, 2007, p. 26.         [ Links ]

41 HILL, Christopher – «The capability-expectations gap, or conceptualizing Europe’s international role». In Journal of Common Market Studies. Vol. 31, N.º 3, 1993, pp. 305-328.

42 BOER, Monica den – «9/11 and the Europeanisation of Anti-Terrorism Policy: A Critical Assessmen», Policy Paper n.º 6, Notre Europe, Setembro de 2003.         [ Links ]

43 KEOHANE, Daniel – The EU and Counterterrorism. Centre for European Reform Working Paper, London: CER, 2005, p. 15. Disponível em: http://www.cer.org.uk/pdf/wp629_terrorism_counter_keohane.pdf        [ Links ]

44 Sobre este tema, cf. KAUNERT, Christian – «The external dimension of EU counter-terrorism relations: competences, Interests, and institutions». In Terrorism and Political Violence. Vol. 22, N.º 1, pp. 41-61.         [ Links ]

45 BOER, Monica den – «9/11 and the Europeanisation of Anti-Terrorism Policy: A Critical Assessmen».

46 MONAR, Jörg – «The European Union as a collective actor in the fight against post-9/11 terrorism: progress and problems of a primarily cooperative approach».