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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.30 Lisboa jun. 2011

 

A liderança em guerra

 

António Paulo Duarte

Doutor em História Institucional e Política. É assessor do Instituto de Defesa Nacional e professor auxiliar convidado do Departamento de Estudos Políticos da FCSH – UNL. É investigador do Instituto de História Contemporânea.

 

John Keegan

A Máscara do Comando

Lisboa, Tinta-da-China, 2009 [1987], 456 páginas

 

 

John Keegan é um dos mais inovadores historiadores britânicos. Alguns diriam que é um inovador historiador militar, mas tal epíteto não faria justiça à figura de investigador de John Keegan. É certo que ele tem dedicado a sua vida, enquanto historiador, aos assuntos da guerra e do poder militar, não obstante, Keegan fez desde sempre uma história que a Escola dos Annales denominou de História Total, uma história dedicada ao estudo global do homem. O autor recenseado pode ser incluído nos historiadores que estudam a realidade, interligando todas as suas facetas, de modo a compreender uma dada época. John Keegan é um estudioso do fenómeno «guerra» e é, num certo sentido, um classicista, pois dedica-se, essencialmente, à investigação daquilo que é considerado como a tradicional história militar, a história das campanhas militares, das batalhas e dos seus comandantes. Todavia, fá-lo e fê-lo de uma forma plenamente inovadora, integrando no estudo da história das campanhas, das batalhas e dos seus comandantes a dimensão económica, política e social, indo ainda mais além e considerando também as dimensões culturais e antropológicas e outras, expressão tão viva da História Total.

O presente estudo pode inserir-se nas obras mais inovadoras de John Keegan. Este autor é bastante prolífico, detendo hoje uma vastíssima obra publicada. Uma boa parte destas obras, ainda que inovadoras, podem inserir-se no universo clássico dos estudos sobre campanhas e batalhas. Há, para além dessas obras, de espírito mais classicista, outras extraordinariamente inovadoras no campo dos estudos de história militar, começando pelo notável volume A Face da Batalha que, justificadamente, deu a glória, nas letras, a este autor. A Máscara do Comando insere-se perfeitamente nesta linhagem altamente inovadora das obras de John Keegan.

A Face da Batalha procurava ler o campo de batalha através da visão que dele tinham os combatentes que nele pelejaram. Este era o rosto da batalha que o autor nos queria exibir, para lá da faceta mais ou menos gloriosa das manobras estratégicas dos grandes cabos de guerra.

A Máscara do Comando alinha-se nesta rota, contanto que os heróis da mesma tenham deixado de ser os combatentes para passarem a ser os seus chefes supremos. Como lideravam os seus homens, os impulsionavam para o combate e os faziam agir de acordo com a sua vontade? Eis a primeira questão que encaminha John Keegan na sua deambulação pelo rosto do comando. Para responder a esta interrogação, John Keegan estudou quatro líderes, na sua óptica extraordinários (e não só, pois são paradigmas clássicos), pela chefia militar (e política, em muitos casos) que exerceram: Alexandre Magno, o duque de Wellington, Ulisses Grant e Adolf Hitler. Para este autor, cada um deles é o expoente de uma forma específica de liderança.

 

As Máscaras do Comando

Os líderes que John Keegan estuda são, por isso, figuras excepcionais, fontes de inspiração e energia, capazes de redobrar a força e o espírito de quem age sob o seu comando. O que os distingue, contudo, é o estilo de liderança. Alexandre Magno é o paradigma, o arquétipo mais perfeito da liderança heróica; o duque de Wellington funciona como o seu contraste, a liderança anti-heróica; Ulisses Grant representa a liderança não heróica e Adolf Hitler, a liderança falsamente heróica. A Máscara do Comando é uma obra que, em filosofia, seria designada de metafísica, na medida em que busca a essência do acto de liderar em guerra. É o ethos e a técnica de liderança que John Keegan almeja descortinar por detrás da imagem que nos foi legada sobre cada uma destas figuras, a sua máscara de comando.

Alexandre Magno é o arquétipo mais conseguido do estilo heróico. É um chefe guerreiro que lidera uma sociedade belicosa, os macedónios. Como líder de uma sociedade de guerreiros, isto é, de homens livres, habituados a dirimir as suas quezílias pela força das armas, pondo a sua liberdade no gume das suas armas, Alexandre Magno tem um estilo de liderança que lhe impõe o comando no vértice da cunha de assalto em cada batalha, avançando à frente dos seus homens carregando sobre o ponto mais forte da linha de batalha inimiga. E fá-lo, observa John Keegan, evidenciando através de uma indumentária regiamente reluzente, a sua acção no vértice da coluna de assalto principal. «Sempre à frente!», diz John Keegan, seria o mote de Alexandre Magno.

Este estilo de liderança, autenticamente heróica, explica o autor, derivaria do contexto social de onde advinha Alexandre Magno. A capacidade de inspirar os seus soldados aos mais altos feitos, de os galvanizar para o seguir até aos confins do mundo, só poderia ser assegurada se Alexandre Magno fosse, numa sociedade de guerreiros, o mais ilustre e heróico de todos. É certo, e John Keegan refere-o amiudadamente, Alexandre Magno era um estratego e um logístico brilhante, evidenciado no facto de em uma tão vasta campanha, jamais os seus homens terem passado fome ou de ter disposto sempre dos apetrechos de cerco com os quais assaltar as urbes que a ele se opunham. O corpo macerado de cicatrizes, as marcas físicas da liderança heróica de Alexandre Magno eram a expressão última do estilo da sua chefatura, o seu pathos, o ir mais além sempre, e este despreendimento em nome de qualquer coisa que seria a «fama eterna», deixou como temível legado o «enobrecimento da barbárie em nome da glória» (p. 123).

Como um espelho, Alexandre Magno tornar-se-á o termo de comparação com todos os outros estilos de liderança, todos eles analisados em redor do conceito de herói, formas outras de heroísmo ou de falso heroísmo, e em redor da interrogação da posição do comando no campo de batalha: Sempre em Frente! Às vezes, na Frente! Jamais na Frente!

O duque de Wellington funciona como o grande contraste de Alexandre Magno. Este contraste resulta de um heroísmo retintamente não exibicionista. O duque de Wellington, tal como Alexandre Magno, tinha um estilo de liderança que o obrigava a estar perto dos pontos mais acesos de combate. Ao contrário de Alexandre Magno, o duque de Wellington não se punha no vértice da coluna de assalto, não obstante, procurava estar sempre em cima da acção principal para a supervisionar e a assistir com o seu comando em caso de extrema necessidade. Não ia na frente, mas o seu estilo de comando implicava que estivesse sempre na área de alcance eficaz do fogo inimigo, até os 450 metros para os canhões e os 50 para os mosquetes de pederneira. Ademais, por estar sempre a cavalo, de modo a ter uma visão mais aguda do que ia acontecendo, aumentava a sua exposição ao fogo inimigo.

O duque de Wellington, todavia, afirmava-se pelos seus contidos gestos, pela sua fleuma e aprumo no campo de batalha, pela sua frieza e imperturbabilidade face ao fogo. A expressão do seu comando e do seu estilo de liderança exprimia a sua cultura aristocrática e religiosa (protestante): autocontenção e autodomínio. E reflectia a sua postura ideológica conservadora hostil à excitação das multidões, algo que ele profundamente desprezava e via encarnada nos seus inimigos: Napoleão Bonaparte e a Revolução Francesa. O anti-herói é a outra face da liderança heróica, o herói que se exprime por uma postura a que se nega a espectacularidade, ironicamente, a outra face dessa mesma espectacularidade.

Como vemos, o estilo analítico de John Keegan enquadra sempre as figuras que estuda num contexto mais lato da sociedade e desenvolve a sua interpretação sobre a máscara de comando, considerando o modo como cada uma dos personagens se olhava e olhava para a sociedade que, no campo de batalha, encarnava. A máscara de comando é a íntima relação da figura do general comandante-em-chefe com aquilo que a sociedade dele espera ou que ele julga, considerando a sua realidade epocal, que a sociedade dele espera.

Em oposição ao estilo heróico, John Keegan, identifica dois outros paradigmas, o não heróico e o falso heróico, expressos nas lideranças de Ulisses Grant e de Adolf Hitler. Em ambos os casos a heroicidade do comandante-chefe dilui-se, quer por uma opção consciente, fruto da transformação da guerra e das suas novas características que implicam a modificação do estilo do comando, quer porque a representação da heroicidade pode, de algum modo, ser cenarizada, sem que os ditames que a enquadram tenham de ser aplicados.

A primeira forma é expressa por Ulisses Grant, e de algum modo, corresponde à realidade de todo o comando militar na era industrial e contemporânea. Ela remete para um líder militar gestor da coisa da guerra. A reflexão, sempre imprescindível, é certo, na arte da guerra, torna-se o expoente máximo da acção do comando. A acção heróica, o acto de liderar na frente de comando, uma impossibilidade, dadas as massas e os meios que entram na contenda e no embate e o alargamento do campo de batalha. A segunda tem em Hitler o seu máximo expoente e, ironicamente, reflecte a natureza do comando pós-heróico arquetipicamente contemporâneo. Note-se, não obstante, que John Keegan tem o cuidado de ressalvar que em qualquer dos casos não se pode observar a natureza do comando de Ulisses Grant ou de Adolf Hitler como fruto de qualquer cobardia. Ulisses Grant não se inibia de ir à frente e, por várias vezes, esteve sobre fogo dos soldados da confederação, sempre, é certo, por acaso e erro de cálculo. Era, ademais, um veterano, com provas dadas na guerra entre os Estados Unidos e o México (1846-1848). O futuro Führer tinha sido correio na Grande Guerra, uma especialidade com um alto nível de risco nessa contenda e todos os relatos indicam que foi um soldado diligente e corajoso.

A massificação da guerra e o desenvolvimento tecnológico complicaram imenso qualquer pretensão a um comando heróico da guerra e da batalha. Esta é, pelo menos, a óptica de John Keegan, realçando o autor que na era nuclear, e a obra data de 1987, ainda a Guerra Fria não terminara, o comando e a liderança militar se afastara da frente, encavernando-se em redutos altamente encarapaçados e movendo-se em redomas de segurança superprotegidas.

John Keegan vê, no comando de Adolf Hitler, a expressão deste movimento para o enfojomento da liderança e para a hiperprotecção do comando. A grande crítica que faz a Adolf Hitler deriva de este movimento de encapsulamento da liderança na guerra não corresponder à imagem que o ditador alemão fazia passar de si enquanto cabo-de-guerra. Adolf Hitler, que John Keegan vê copiar o pior dos modelos de comando da I Guerra Mundial, fechado na redoma de um Quartel-General, a milhas de distância da frente, superprotegido, fazia passar uma imagem de combatente heróico e corajoso, um Alexandre Magno contemporâneo, liderando directamente os seus soldados. Esta imagem consumara-se no uso permanente de um uniforme militar pelo ditador alemão desde Setembro de 1939 e pervertera-se, conforme a guerra se ia tornando mais desfavorável às armas alemãs, na absoluta vontade de dirigir a acção bélica, até da mais ínfima unidade na linha da frente, e com excessos de pormenorização, a partir de um Quartel-General, a milhas de distância. Esta perversão do comando e da liderança embotou as armas alemãs, que serviram abnegadamente o Führer até ao extremo limite das suas forças, evidenciando quanto este as desserviu.

O texto de John Keegan contém, de facto, uma tese: a evolução da arte da guerra e a exponencial capacidade de produzir destruição aniquilou qualquer possibilidade de uma liderança heróica da guerra. O modelo de Alexandre Magno, por muito apelativo que seja para a cultura militar, é, simplesmente, a nível de comando superior, inviável. A natureza do comando e da liderança na guerra mudou: o comando encavernou-se em redomas hiperprotegidas, a única forma de poder continuar a conduzir a contenda, numa era em que a letalidade do armamento se exponenciou desmesuradamente.

 

Comando e Estratégia: A outra máscara do comando

Se o texto é uma monumental análise da liderança em guerra e nas batalhas, a sua maior fragilidade deriva das conclusões, produto da tese que defende. E a tese de John Keegan fragiliza-se, em boa medida, na visão conceptual que a encaminha.

Não é por acaso que a introdução começa com uma crítica ao conceito de estratégia. John Keegan despreza o conceito de estratégia e este mais não é que uma palavra fetiche sem alguma substância real. Reduzir a realidade da guerra ao poder militar e à política bastava, visto aqui estarem, na essência, os actores da guerra. Esta visão reflecte as debilidades conceptuais do conceito de estratégia no mundo anglo-saxónico, assim como a redução da condução da guerra a uma dimensão estritamente militar. Colin Gray, apesar de valorizar o conceito de estratégia, não o consegue extrair, estrito senso, da guerra1. Para ambos, a questão da guerra parece reduzir-se à relação íntima entre o poder político e o poder militar. A partir desta perspectiva, toda a questão da liderança na guerra se reduz a verificar qual a posição da chefatura suprema na condução dos seus exércitos para a batalha. E a extrair as conclusões à luz deste pressuposto: sempre na frente com Alexandre Magno; jamais na frente com Adolf Hitler, eis o comando pós-heróico.

Para reforçar a sua perspectiva, John Keegan indica que todos estes líderes, como muitos outros, foram simultaneamente líderes militares e políticos. É certo que informa o leitor de que os casos do duque de Wellington e de Ulisses Grant são distintos dos de Alexandre Magno e de Adolf Hitler. Os primeiros foram em períodos distintos líderes militares e dirigentes políticos (o duque de Wellington foi membro do parlamento e primeiro-ministro, Ulisses Grant chegou à presidência dos Estados Unidos após o fim da Guerra de Secessão). Pelo contrário, Alexandre Magno e Adolf Hitler foram, em simultâneo, líderes militares e dirigentes políticos. Ora, esta, como outras diferenças, são importantes para a compreensão do quadro geral em que cada um se move e para a validação, ou não, da tese de John Keegan.

Os paradigmas da liderança em guerra de John Keegan são quatro, mas a distância temporal que separa o primeiro do segundo é multimilenária. Alexandre Magno viveu entre 356 e 323 a. C., o duque de Wellington entre 1769 e 1852, sendo que a distância que separa os feitos relatados por John Keegan, entre o segundo e o quarto, é de pouco mais de um século. Os três últimos paradigmas são quase nossos contemporâneos, o primeiro, alguém de que pouco se sabe, e o muito que se sabe está envolto na nebulosa do mito. É certo que John Keegan pode abonar em sua defesa, a profunda revulsão da forma de combater e de travar a guerra entre o duque de Wellington e Adolf Hitler. John Keegan argumenta nesse sentido, ao salientar, com razão, que o duque de Wellington se encontra no vértice de uma era em que o combate de proximidade, mesmo já não sendo tipicamente corpo-a-corpo, ainda era a forma dominante de travar qualquer batalha. Com efeito, as armas dominantes no campo de batalha napoleónico, a despeito da artilharia, eram os mosquetes que tinham um alcance letal de pouco mais de 150 metros e um alcance eficaz na ordem dos 50 metros. Os soldados ainda combatiam olhos nos olhos e os comandantes ainda podiam ver os seus congéneres adversários. Pelo contrário, lentamente, as distâncias alargaram-se e os comandos foram expulsos dos campos de batalha. Foram-no efectivamente?

Adolf Hitler suicidou-se em Berlim em Abril de 1945, sob a tormenta de fogo da artilharia soviética. John Keegan observa que ele não teve uma morte de soldado: suicidou-se, mas podia tê-la tido. O inimigo estava muito próximo dele. Tal como a proporção de generais alemães mortos em combate ou em decorrência da sua liderança em campanha evidencia que a guerra contemporânea não implica necessariamente que o comando esteja numa redoma subterrânea hiperprotegida (de 1400 oficiais generais, mais de 500 foram mortos em campanha). O próprio Alexandre Magno, assumindo todos os riscos de participar activamente na acção bélica e no combate, não estava reduzido, como os seus soldados, a ter de bastar-se a si próprio na peleja, visto ir acompanhado, como todos os reis combatentes o foram ao longo da história, por um corpo escolhidos de protectores, de guardiões, que o escudavam, em parte, do choque físico com os adversários aquando do confronto. O comando de Adolf Hitler, como o actual, não deriva apenas da evolução da guerra, mas resulta de uma escolha assumida de uma forma de comando, coisa que, curiosamente, John Keegan admite para Ulisses Grant.

Não obstante, esta escolha é fruto, igualmente, da realidade social e económica que envolve a guerra. A redução da liderança da guerra à relação entre a postura política e a acção militar oculta a complexidade da chefatura suprema na condução da guerra. A latitude das armas que se utilizam na guerra contemporânea é muito mais ampla do que o estrito armamento bélico. O bloqueio e a guerra económica, condicionando os intercâmbios entre as sociedades, a pugna ideológica, cada vez mais eficiente, graças à evolução das tecnologias da informação e comunicação, a própria tecnologia bélica, mais sofisticada e tocando em todos os espaços em que o homem habita (terrestre, marítimo, aéreo, cibernético, espacial), fazem que a liderança em guerra tenha visto evoluir o seu carácter em direcção à coordenação e gestão em detrimento da acção (como no caso citado pelo autor de Ulisses Grant e o uso do telégrafo). Isto faz que esta tenha, em parte, de se resguardar, não para fugir, em sentido estrito, às agruras do confronto bélico, mas para que possa ter maior liberdade para gerir todas as componentes que entram em jogo na contenda.

É esta complexidade na gestão da guerra, que o vocábulo e o conceito de estratégia pretende evidenciar, e que John Keegan, reduzindo a questão da liderança da guerra à relação entre a política e o poder militar, despreza, que explicita o retraimento, para a retaguarda do campo de batalha da suprema chefatura. Não obstante, o retraimento para a retaguarda da liderança de guerra não significa um menor risco. A própria tecnologia se encarregou de tornar todos, incluindo as chefaturas supremas, em alvos remuneradores. A sonhada estratégia de decapitação das chefias, como a arma mais eficiente para atingir os propósitos de uma campanha, pensada nos anos 90 do século XX pelos estrategos da força aérea norte-americana demonstra o quanto este retraimento para a retaguarda da liderança de guerra não é um fuga às consequências do embate bélico, mas resulta da evolução da liderança para uma dimensão de coordenação, no contexto em que o seu corpo é, cada vez mais, vulnerável à acção adversa.

Por último, e decorrendo da visão conceptual do autor, John Keegan não distingue entre a direcção política e a liderança militar. Este é, adicionalmente, um argumento relevante quando falamos de comando pós-heróico. O retraimento da liderança para a retaguarda não foi unânime na evolução da guerra moderna. É certo que mesmo os comandos de divisão, brigada ou regimento não comandam os seus homens no vértice da coluna de assalto como Alexandre Magno. O problema reside em saber onde está o vértice da coluna. No tempo de Alexandre, quem não estivesse na linha da frente, dificilmente defrontaria o gume do inimigo: Dário III, o rei persa que Alexandre esmagou, por exemplo, protegido pelas sucessivas linhas de soldados, no contexto da época, poderia ser visto como tendo uma liderança pós-heróica. Hoje, a frente e a retaguarda situam-se onde? O conceito de ataque em profundidade, desenvolvido lentamente nos anos 30 do século XX e hoje comum em todos os exércitos sofisticados do mundo é a expressão da nova realidade bélica. O campo de batalha, hoje, tanto pode estar a 10 metros da linha de demarcação entre dois inimigos, como a milhares de quilómetros de distância. Muitos dos comandos militares, desde a II Guerra Mundial, habituaram-se a liderar desde a frente, isto é, no sentido wellingtoniano, o mais próximo da zona de acção a que seja necessário estar para coordenar a manobra bélica e sob fogo. A hecatombe de generais alemães está aí para demonstrar o que significa um tal tipo de liderança.

Mas, a liderança política da guerra, dadas as funções essenciais de coordenação e de gestão de que está incumbida tendeu a ser mais coberta e protegida. Esta, sim, próxima do modelo pós-heróico de John Keegan. Sucede que não é, de todo, toda a chefatura suprema de guerra. A complexa e polifacetada liderança da guerra moderna, dada a complexidade da realidade social, produto da Revolução Industrial, que todos os sociólogos afirmam ser uma das características da contemporaneidade, inibe uma simplificação analítica sobre a chefatura suprema em tempo de confronto bélico.

A obra de John Keegan é um tratado monumental e uma análise penetrante sobre as características da liderança de guerra. Os arquétipos que se expõem lidam, de modos distintos, com a liderança de guerra, mas cada um representa uma forma muito própria de o fazer. Neste sentido, o texto de John Keegan é um portento de análise histórica e uma obra inovadora sobre um tema clássico militar. É pena que a tese subjacente não tenha o mesmo fulgor conceptual que a análise penetrante sobre a liderança suprema de cada um dos arquétipos expostos e caia, talvez caricaturalmente, num excesso de simplificação da realidade.

 

Nota

1 Cf. GRAY, Colin – Modern Strategy. Oxford: Oxford University Press, 1999, pp. 52 e 82.        [ Links ]