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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.30 Lisboa jun. 2011

 

Servitude et grandeur militaires: um novo olhar sobre um herói da Monarquia e do Estado Novo

 

Malyn Newitt

Foi Charles Boxer Professor de História no King’s College em Londres até à sua aposentação em 2005. Leccionou ainda na Universidade de Exeter e na Universidade da Rodésia. É autor de uma dezena de livros sobre a história de Portugal e os territórios ultramarinos portugueses, incluindo History of Mozambique (1995).

 

Paulo Jorge Fernandes

Mouzinho de Albuquerque. Um Soldado ao Serviço do Império

Lisboa, Esfera dos Livros, 2010, 423 páginas

 

 

Joaquim Mouzinho de Albuquerque continua a ser uma das figuras mais ilustres do imperialismo de finais do século XIX. Destacou-se como um símbolo de confiança, força e sucesso numa altura em que Portugal atravessava uma grave crise financeira, em que se exacerbava um conflito político acrimonioso entre republicanos e monárquicos e em que os portugueses se sentiam humilhados pelo Ultimato Britânico de Janeiro de 1890. Nas palavras de um jornalista, ele surgiu como «um raio do sol que veio de repente iluminar-nos, dar-nos vigor e esperança» (p. 305). A sua captura de Gungunhana numa arrojada incursão de cavalaria parecia provar que Portugal podia não só emular os sucessos militares britânicos na vizinha Rodésia, mas também fazê-lo com estilo e exuberância. A rainha D. Amélia recordaria mais tarde que Mouzinho era «exactamente como os cavaleiros que eu via nos livros de imagens quando era criança» (p. 305). Sem surpresas, Mouzinho tornou-se também um herói do Estado Novo. Numerosas biografias surgiram entre 1935 e 1965, e Fernandes refere-se a elas como uma «liturgia secular» e uma «hagiografia». Mouzinho e os seus oficiais mais próximos têm sido descritos como uma nova «Ínclita Geração», e as suas vitórias foram comparadas à de Aljubarrota (p. 203). Há muito que os heróis coloniais deixaram de estar na moda, e esta é a primeira grande biografia, desde a revolução de 1974, a reavaliar o homem que durante tanto tempo simbolizou a presença imperial portuguesa na África.

O livro começa com uma reconstrução detalhada da famosa incursão a Chaimite em Janeiro de 1896. Esta incursão foi levada a cabo contra as ordens dos superiores hierárquicos de Mouzinho e, como admite Fernandes, constituiu «uma jogada de alto risco» (p. 38). No entanto, a desobediência às regras faz parte da personagem heróica – basta lembrarmo-nos de Nelson, um herói nacional para tantos britânicos, que desobedeceu a ordens ao atacar com grande audácia a frota dinamarquesa em Copenhaga, no ano de 1801. A incursão foi uma operação brutal. Os elementos auxiliares de origem africana queimaram aldeias e mataram indiscriminadamente. O próprio Mouzinho levou a cabo execuções sumárias dos principais seguidores de Gungunhana e humilhou o rei ao amarrar as suas mãos atrás das costas, obrigando-o a sentar-se no chão (p. 44). Esta humilhação foi deliberada, uma vez que Mouzinho estava determinado a demonstrar a superioridade de brancos sobre negros. Mais tarde, em Angoche, Mouzinho recusou a ajuda de aliados africanos «para ter a certeza de que seriam os brancos a dominar a situação» (p. 254). Porém, em muitas ocasiões era a África a ter a última palavra a dizer. No regresso a Lourenço Marques com o prisioneiro, um dos soldados portugueses caiu no Limpopo e foi comido por um crocodilo (p. 51).

Fernandes prossegue com uma exploração do cenário destes eventos dramáticos, situando a vida de Mouzinho no contexto da sua época. Os Mouzinhos foram descritos acertadamente como «muito valentes e muito nobres, muito inteligentes e muito pobres» (p. 61), e para Joaquim a carreira militar ou a política eram escolhas óbvias. Decidiu-se pela vida militar. Cresceu no Portugal pós-guerra civil, numa altura em que as forças militares não tinham muito que fazer. Anos mais tarde, Mouzinho afirmou que foram os eventos de Chaimite a dar sentido à sua vida. No entanto, este era um período em que a política popular se encontrava em expansão, o que pode ser constatado não só pelo crescente movimento republicano, mas também pelo reavivar de um forte sentimento nacionalista, expresso maioritariamente através de uma retórica antibritânica (p. 83). O livro poderia ter reflectido um pouco mais sobre as celebrações organizadas em 1880 (a morte de Camões) e 1898 (a viagem de Vasco da Gama à Índia), nas quais republicanos e monárquicos competiram pelo protagonismo na comemoração do império.

Os capítulos centrais do livro descrevem a campanha que culminaria em Chaimite e examinam detalhadamente os debates em Portugal acerca do futuro de Moçambique. De particular importância é o relevo dado a Mariano de Carvalho na formulação da política para África; no entanto, a discussão teria beneficiado de uma perspectiva mais abrangente. Os estadistas de Lisboa tinham de preocupar-se não só com Moçambique mas também com Angola – para não falar de Timor e Goa.

Uma parte considerável do livro é dedicada à discussão de assuntos militares. Esta era uma das maiores preocupações de Mouzinho, que sempre acreditou no papel crucial da cavalaria nas campanhas africanas e que dedicou grande parte das suas energias a reorganizar o exército colonial. Ainda que nem todos os aspectos desta discussão sejam relevantes para uma compreensão histórica mais generalizada, eles demonstram claramente a fraqueza extrema da posição militar portuguesa. Para Mouzinho, a política de criação de «comandos militares» por todo o território era «puramente platónica»; o mesmo Mouzinho relembrou que uma destas unidades teve de ser abastecida de alimentos pelo próprio tio de Gungunhana, de forma a não passar fome (p. 97). Os soldados colocados na África eram frequentemente dados a «bebidas» e à «Vénus negra… os dois piores inimigos do europeu no Ultramar» (p. 147). No entanto, Mouzinho continuou a acreditar firmemente na opção militar. Afirmou mais de uma vez que não seria possível alcançar qualquer objectivo em termos de colonização e desenvolvimento até a paz e a segurança terem sido estabelecidas através de meios militares. Foi acusado de querer impor «uma autocracia militar» (p. 216). Esta política quase resultou em desastre durante a guerra no Norte de Moçambique, quando uma coluna liderada por Mouzinho, então governador-geral, caiu numa emboscada e o próprio Mouzinho foi ferido. O debate entre Mouzinho, os seus associados e homens como Júlio de Vilhena, que acreditavam no «progresso económico», é neste livro bem apresentada e explorada. Em grande medida, Mouzinho conseguiu atingir os seus objectivos; no entanto, nas palavras de Fernandes, «os louros da campanha de 1895 ficaram a dever-se mais à acção estratégica, organizativa e política de António Enes do que ao voluntarismo de Mouzinho» (p. 202).

A carreira de Mouzinho enquanto governador-geral foi, em grande parte, ocupada com campanhas militares de pacificação e com disputas infindáveis com Lisboa acerca de tácticas e meios. João de Azevedo Coutinho acabaria por ser enviado «para chamar Mouzinho de Albuquerque à razão e para o colocar sob vigilância» (p. 261). Afortunadamente, Coutinho e Mouzinho acabaram por dar-se bem, e o livro contém uma história deliciosa dos dois em campanha. Um ataque surpresa ao quartel português ocorreu numa altura em que Coutinho se encontrava a tomar banho. O bravo soldado pegou na espada e ocupou o seu lugar na linha de batalha totalmente nu, causando surpresa entre os auxiliares nativos, que nunca tinham visto um comandante vestido naquela «forma de vestir paradisíaca» (p. 272). No entanto, no cômputo geral este foi um período de amarga frustração para alguém que apreciava os resultados claros e decisivos da acção militar, e esta frustração iria consumi-lo depois de regressar a Portugal.

O que dizer acerca da importância de Mouzinho a longo prazo? Para Fernandes, Mouzinho e os seus associados tiveram o privilégio de «despertar o país para a realidade colonial» e de afirmar a posição portuguesa num contexto internacional no qual o prestígio do País «tinha conhecido melhores dias». «Os inimigos não eram as azagaias dos Vátuas, mas sim os apetites que a debilidade da presença portuguesa despertou nas potências europeias, nomeadamente na Grã-Bretanha e na rival Alemanha» (p. 203). Depois de Chaimite, entregar o império deixou de ser uma opção.

Esta é uma biografia admirável e bem fundamentada, mas é possível fazer alguns reparos. O autor poderia ter analisado em maior detalhe a obra publicada de Mouzinho e prestado maior atenção à importância política, em Portugal, da incursão de Mouzinho a Chaimite. O livro contém discussões pormenorizadas de formações militares, tipos de armas de fogo, bem como da disputa entre Mouzinho e a Marinha – passagens que nem sempre são muito relevantes. Alguns erros aparecem aqui e ali. Os leitores não reconhecerão imediatamente Sir Garnet Wolseley no general «Garnel Walsley» (p. 160), e a missão do Dr. Jameson a Lobengula é, de forma bizarra, situada no contexto dos eventos de 1896. Embora o autor esteja familiarizado com algumas das principais obras em inglês acerca deste período, a sua descrição do poder de Gungunhana não reflecte investigações recentes, que têm demonstrado que o reino de Gaza se enfraquecera acentuadamente antes da campanha portuguesa de 1895.

O último capítulo analisa as circunstâncias misteriosas que rodearam o suicídio de Mouzinho. Fernandes nota as discrepâncias nas fontes e levanta uma vez mais a possibilidade de Mouzinho ter sido assassinado por razões políticas ou num assalto falhado. No entanto, com tantos mitos a rodear esta figura emblemática, suspeito que o palco principal continuará a ser ocupado pela história romântica de um suicídio motivado por um amor frustrado pela rainha.

Tradução: João Reis Nunes