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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.30 Lisboa jun. 2011

 

Uma certa percepção das relações internacionais. Entrevista com Robert Jervis

 

Bruno Cardoso Reis

Licenciado e mestre em História (Faculdade de Letras de Lisboa). Tem o mestrado em Historical Studies pela Universidade de Cambridge (2003). É doutor em Segurança Internacional (War Studies, King’s College) desde 2008, com a tese Big Armies and Small Wars. Em 2007 publicou Salazar e o Vaticano, que recebeu os prémios Vítor de Sá e Aristides de Sousa Mendes. É actualmente investigador no ICS – UL e investigador associado do King’s College, sendo membro do cehr – UCP, do IISS e da APCP.

 

Continuamos esta série de entrevistas com uma conversa com Robert Jervis (Nova York, 1940), que tem um BA do Oberlin College e um doutoramento da Universidade da Califórnia-Berkeley; foi professor na Universidade da Califórnia e em Harvard, e é actualmente Adlai E. Stevenson Professor of International Affairs na Universidade de Columbia em Nova York. Foi presidente da Associação Americana de Ciência Política e dirige a colecção de estudos de segurança da Cornell UP, sendo membro do conselho editorial de variadas publicações de referência e autor de mais de 100 artigos e outros textos.

Entre os seus livros podem destacar-se: Why Intelligence Fails: Lessons from the Iranian Revolution and the Iraq War, Cornell UP, 2010; American Foreign Policy in a New Era, Routledge, 2005; System Effects: Complexity in Political and Social Life, Princeton, 1997; The Meaning of the Nuclear Revolution, Cornell, 1989; Perception and Misperception in International Politics, Princeton, 1976; The Logic of Images in International Relations, Columbia, 1989.

 

Bruno Cardoso Reis [BCR] > Estamos a iniciar uma série de entrevistas para procurar tornar o campo das relações internacionais (RI) mais acessível num país onde a disciplina não tem grande tradição. Se tivesse de advogar em favor das RI, qual seria a mais-valia que apontaria relativamente à história diplomática tradicional ou à análise mais corrente da política externa?

 

Robert Jervis [RJ] > Bem, de facto o estudo ao nível universitário da política internacional derivou em parte do estudo da história e em parte do estudo do direito internacional. Continuo a pensar que, sem qualquer dúvida, a história internacional é absolutamente essencial para o estudo da política internacional, pois até certo ponto a situação em que estamos, e também para onde iremos, está relacionada com o nosso passado. Por outro lado, a disciplina de política internacional não se deve limitar aos acontecimentos recentes, devendo procurar explicar padrões da política internacional ao longo da história. Mas fazêmo-lo muito bem, embora de forma relativamente diferente dos historiadores.

A força e a fraqueza dos historiadores é que na sua preocupação com as especificidades do caso histórico que estão a estudar, não se preocupam muito em ver como ele se enquadra com padrões mais genéricos, sendo que esta sua preocupação muito acentuada com uma cronologia específica tem vantagens mas também desvantagens analíticas. Os historiadores não se preocupam realmente com testar proposições, não aderem a esse tipo de rigor analítico. Não é essa a sua formação, e não é essa a sua inclinação. Nós estamos muito mais preocupados com relações de causalidade, e para o fazer temos de adoptar uma postura disciplinar de ciência social. Os historiadores não vêem as coisas dessa forma1.

Um bom exemplo desta diferença no quadro do trabalho que tenho feito é um capítulo do meu livro Perception and Misperception relativamente à forma como as pessoas aprendem lições da história, que é também o tema do livro de Ernest May, «Lessons» of the Past2.

Ora, o livro de May é muito bom, mas ele nunca tenta realmente estabelecer mecanismos de causalidade, enquanto no capítulo do meu livro tentei saber de forma tão cuidadosa quanto possível, quais eram os indícios de que as lições retiradas de eventos passados realmente eram causais e não uma simples racionalização a posteriori. Portanto os investigadores em RI estão dispostos a distanciar-se mais dos casos, a abstrair-se muito mais de casos específicos de forma a aplicar métodos de análise mais rigorosos de maneira a procurar obter generalizações. Para o fazer estamos dispostos a perder parte, na verdade muita, da rica especificidade de casos particulares. Os historiadores, por uma questão de gosto reforçada pela sua formação profissional, não estão disponíveis para aceitar essa opção. Preferem fazer a opção inversa. Não digo que isso seja ilegítimo, simplesmente afirmo que há diferenças significativas que resultam do tipo de pesquisa que se procura fazer.

Estas diferenças explicam, portanto, porque é que a política internacional é autónoma da história como disciplina, não digo que seja melhor ou pior, apenas afirmo que é diferente. Há os que preferem uma destas formas de aprender e compreender as coisas, e há os que preferem a outra.

 

BCR > Qual é do seu ponto de vista a chave para se fazer boa investigação em relações internacionais, qual é o segredo?

 

RJ > Bem, como estamos precisamente no processo de selecção dos nossos estudantes de mestrado e doutoramento é algo que tenho muito presente, não sei se é propriamente um segredo, mas uma condição importante é uma enorme curiosidade: Porque é que isto acontece assim? Porque é que se verifica este padrão? Tendencialmente vemos guerras quando há estabilidade ou instabilidade ao nível da política interna? Como se explicam certos comportamentos animais e será que têm correspondência no passado humano? Portanto, o que é indispensável é uma forte curiosidade e originalidade – estar disposto a ter em consideração o trabalho de outros, percebê-lo a fundo, mas também dizer: «Esperem lá! Toda a gente diz que é assim, mas eu penso que isto pode não estar totalmente correcto!»

Exige igualmente, diria, uma capacidade analítica de recuo, de aplicação de um nível relativamente elevado de abstracção na utilização de ferramentas de análise.

 

BCR > Tende a ser definido como sendo um realista; aceita essa etiqueta? Como é que definiria o seu trabalho?

 

RJ > Considero que termos como realista, construtivista ou liberal têm significado substantivo, categorizam tipos de abordagem e argumentos, e há quem possa ser situado claramente numa destas categorias. Mas há outros que fazem trabalhos de tipo diferente, movimentam-se, de facto, entre uma e outra categoria, e considero que é assim no caso do meu trabalho.

De facto, eu concordo com os realistas quanto ao facto de que a anarquia é um dado muito importante e que os estados são determinados por uma preocupação com a segurança (assim como, clara e frequentemente, pelo desejo de expansão); e considero o dilema da segurança como uma das explicações para muitos, mas de forma alguma para todos os conflitos internacionais.

Por outro lado, há temas pelos quais me interessei, que os realistas tendem a ignorar; por exemplo, quando trabalhei sobre a questão das percepções enganosas e estudei de forma aprofundada os processos de tomada de decisão. A psicologia política também me conduziu a temas que interessam aos construtivistas: Como é que as pessoas vêem o mundo? Como é que são socializadas? Evidentemente que este tipo de trabalho assenta na psicologia social, algo que muitos construtivistas não reconhecem. Portanto, este aspecto do meu trabalho tem a ver com o simbólico na política e a forma como as pessoas se socializam, temas a que o construtivismo dá atenção.

Assim, muito do meu trabalho é realista, mas não todo, e isso não me preocupa nada. Há quem afirme – de forma delicada em entrevistas, noutras ocasiões de forma não tão delicada – que algumas afirmações minhas contradizem outras. Contradição é talvez uma palavra demasiado forte mas há efectivamente coisas que seguem em direcções diferentes. Alguns académicos excepcionais, como o meu colega Kenneth Waltz, nem sempre fazem a mesma coisa, mas usam sempre o mesmo tipo de abordagem. No entanto, mesmo Waltz tem um dos seus primeiros livros, que tende a ser ignorado, sobre a relação entre política interna e política externa dos Estados Unidos. Portanto, não sou o único a ter livros ou artigos diferentes que podem de certa forma enquadrar-se em diferentes categorias.

 

BCR > Diria que o construtivismo constitui uma contribuição positiva para o campo das RI?

 

RJ > No seu conjunto diria claramente que sim. Gosto de provocar um pouco os construtivistas porque eles têm a pretensão de ser mais originais do que realmente são. Também gosto de os provocar um pouco porque recusam reconhecer o trabalho de algumas pessoas que lidaram com a dimensão cultural antes deles e que eram politicamente conservadores. Ignoram esses trabalhos por razões políticas ilegítimas, o que é um problema sério.

Também considero que há muito trabalho de construtivistas que não é tão claro como devia ser, ou que é mesmo algo descuidado. Portanto, e tudo ponderado, penso que o construtivismo trouxe contribuições importantes, e as críticas que eu e muitos de nós fazemos são, creio, construtivas, isto é, procuram ajudar a que este tipo de abordagem se torne mais rigorosa. Porém, por vezes, os construtivistas parecem mais interessados em atacar os realistas e a razão porque o fazem é porque pensam que muitos dos problemas do mundo derivam das ideias realistas, e de que os realistas têm ensinado aos decisores muitas lições negativas, e portanto os realistas têm causado muitos problemas com o que escreveram e ensinaram. Eu creio que esta é uma ideia disparatada, porque os decisores que assistem às nossas aulas – vários dos meus alunos têm vindo a desempenhar cargos governamentais importantes – são pessoas habituadas a pensar pela sua própria cabeça. Por isso, creio que a ideia de atribuir todos os males do mundo aos ensinamentos do realismo resulta de uma visão excessivamente optimista do poder da sala de aula. Isso leva alguns construtivistas a caminhos pouco recomendáveis.

Mas como disse, em termos genéricos o que gostaria era ver esse tipo de trabalho melhorado e mais convincente. Dou pareceres relativamente a muitos artigos que adoptam uma abordagem construtivista, e mesmo quando discordo de alguns pontos, ainda assim muitas vezes recomendo a publicação.

 

BCR > Um dos argumentos dos críticos do realismo é que mesmo em termos de segurança internacional – com o terrorismo, a guerra assimétrica – é cada vez menos relevante, os próprios estados já não são tão relevantes como antes, há outros actores.

 

RJ > Sim dizem isso. Com a guerra assimétrica os realistas podem lidar sem problemas. Ainda que a verdade seja que ninguém lidou muito bem com o tema, mas é algo de que estamos muito cientes e um antigo estudante meu que agora está no Governo escreveu sobre as estratégias assimétricas da China. É difícil, é difícil de analisar, mas não há nada que seja intrinsecamente inconsistente com o realismo. É inconsistente com um realismo simplista que diz que basta contar o número de tanques, e claro que esse é realmente um problema.

E os actores não estatais, para o bem e para o mal – ong que estão a fazer um bom trabalho no mundo, o avanço dos movimentos dos direitos humanos, e os terroristas. Aí penso que tem razão, são difíceis de ajustar no quadro do realismo, no entanto, a análise de Pape do terrorismo suicida ajusta-se bem a uma abordagem realista mesmo que seja, claro, questionável3. Mas teremos de alargar o realismo de várias maneiras. Creio, em todo o caso, que o realismo tenderá a ser relativamente céptico acerca do terrorismo e menos susceptível a exagerar o poder dos terroristas. O que está correcto. Portanto, creio que o realismo traz para esta questão um cepticismo saudável. Mas tem razão, não é claro quando se quer ir para além deste cepticismo, até que ponto as utensilagens realistas ainda são úteis.

Mas o liberalismo tem pouco a dizer a respeito do terrorismo, e o construtivismo também tem pouco a dizer. E é por isso que quando se lê a literatura sobre o terrorismo, e eu li bastante, ela tende a ser muito pouco teórica, porque nós simplesmente não lhe conseguimos aplicar nenhuma ou quase nenhuma da utensilagem teórica disponível. Temos de reflectir a respeito disto, que é um facto muito importante, mas não é apenas o realismo que tem dificuldades em lidar com o terrorismo.

 

BCR > Pensa que alguns dos conceitos fundamentais da teoria das relações internacionais como o dilema de segurança, a dissuasão, ainda são relevantes hoje?

 

RJ > Sim.

 

BCR > Por exemplo, numa guerra civil?

 

RJ > Bem, há duas coisas. Quando analiso a política internacional, em muitos casos estou interessado no que se passa hoje, mas também estou interessado em factos do passado; enquanto disciplina ainda estamos a discutir sobre a I Guerra Mundial, a Guerra Fria. Ainda recentemente a International Security trazia um artigo sobre as causas que levaram as cruzadas a durarem tanto tempo4. Portanto, enquanto campo de estudo, as RI não estão obrigadas a seguir os acontecimentos actuais, e consequentemente teriam uma função, mesmo que fosse verdade que esses conceitos já não se aplicam actualmente. Não estou a pensar em fechar as portas intelectualmente, e estou interessado em tentar perceber alguns padrões fundamentais vindos do passado. Dito isto, ainda penso que se pode aplicar, nomeadamente o dilema de segurança. Por exemplo, na questão fundamental das relações entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte e o Irão: trata-se de um dilema de segurança ou não? A Coreia do Norte quer as suas armas nucleares para quê? E esta é uma questão que coloco a amigos e antigos estudantes que se encontram no Governo ou que eram mais belicistas do que eu relativamente à Coreia do Norte: É possível convencer a Coreia do Norte a ceder a respeito das armas nucleares? Quais são as garantias de segurança necessárias? Estas são questões em aberto. Não estou certo de que o dilema de segurança se aplica, mas é com certeza uma questão crucial, é um ponto de partida para a análise e a tomada de decisões, e o mesmo se aplica ao Irão. Não estou de todo surpreendido que no Irão haja quem se preocupe que nós ou os britânicos derrubemos o regime e não cumpramos integralmente acordos firmados, pois foi algo que já fizemos no passado. Portanto, isso enquadra-se no dilema da segurança. Algumas outras coisas não se enquadram, mas com certeza que precisamos desses conceitos para construir uma argumentação.

A dissuasão continua a ser relevante nas relações entre potências como os Estados Unidos e a Europa nas suas relações com a Rússia, ela reaparece nalgumas temáticas novas e sob formas diferentes. Eu faço parte de uma comissão da National Academy of Sciences a respeito dos conflitos no ciberespaço, da guerra no ciberespaço. E o que estamos a discutir é quais são os conceitos – como o de dissuasão no campo nuclear – que podem voltar a ser utilizados de forma útil? Claramente não todos, alguns sim, outros não, mas estamos a debater-nos com isso, não temos uma resposta clara. Mas creio que alguns ainda têm relevância, mas há que ter o cuidado de não seguirmos a lei do martelo: se se dá um martelo a alguém, ele ou ela passam a ver em tudo um prego que precisa de ser martelado. Quando desenvolvemos conceitos ficamos ligados a eles; ora, há que ter o cuidado de não os utilizar porque gostamos deles, porque nos são razoavelmente familiares.

 

BCR > Estou a trabalhar sobre a melhor forma de aplicar a dissuasão à insurreição e contra-insurreição, portanto… Mas em termos dos casos específicos que mencionou, nomeadamente o Irão, a Coreia do Norte, o Afeganistão – no futuro próximo, como vê a evolução destes casos?

 

RJ > Oh, creio que é muito difícil saber. Na verdade, olhando para trás é claro que há uma ruptura menor entre Obama e Bush do que muita gente esperava. Parte da razão é que a muita gente escapou quanto Bush tinha mudado no segundo mandato, particularmente nos últimos dois ou três anos – a verdadeira ruptura é mais entre Bush, antes e depois de 2005, do que entre Bush e Obama.

Qual será a evolução futura? Depende muito do tipo de interacção, e novamente sou pessimista, mas eu sou geralmente pessimista. Não creio que a estratégia actual vá resultar no Afeganistão. Entrevejo algum potencial em conversações com os taleban, mas não sou um perito [na região]. Conheço algumas pessoas que seguem de perto a situação e mostram-se optimistas, mas eu estou pessimista, apesar de desejar um resultado positivo.

Irão e Coreia do Norte parecem becos sem saída; mas por vezes a situação parece estar parada e há coisas a acontecer nos bastidores, ou é o próprio impasse que acaba por levar a mudanças, de forma que um ou ambos os lados são forçados a movimentar-se. Portanto tenho algumas esperanças, mas não há muito que se veja que o justifique. Estou desiludido que a Administração [Obama], inclusive antigos alunos meus, não aceitasse a oferta do Irão para fazer uma troca de 20 por cento do material do reactor nuclear em fases. Creio que teria sido sensato fazê-lo, creio que as razões contrárias não eram de todo convincentes. Mas não fizemos, e entretanto a situação continuou a evoluir. Portanto, estou desiludido.

 

BCR > Olhando para o seu trabalho a respeito do dilema da segurança, a dado momento menciona o facto de que pode haver um problema se um dos lados se convencer de que o outro tem de alcançar um compromisso. Pensa que isso se aplica a Obama, parte do seu problema é que ele está politicamente obrigado a alcançar algum tipo de compromisso?

 

RJ > No concreto [das negociações] não me parece. No caso do Irão ele não cedeu muito. E creio que deveria tê-lo feito na oferta de acordo a respeito da troca [de combustível nuclear], e não consigo realmente perceber porque é que não o fez. Porém, Obama tem de parecer aberto a negociar com o outro lado, e é possível que isto fosse visto como um sinal de fraqueza pelos norte-coreanos e os iranianos. Falo disto no terceiro capítulo de Perception and Misperception, modelo de dissuasão e espiral, como é possível cair-se nisso de uma maneira ou de outra. Eu não penso que Obama tenha dado essa impressão. Mas, claro, nunca sabemos como é que o outro lado percepcionou as coisas até termos acesso à sua documentação. Portanto, é possível que sim, e sei que os falcões mais críticos [de Obama] dizem isso mesmo. Apesar de não gostar disso, eles podem ter razão.

 

BCR > Em termos das relações entre os Estados Unidos e a Europa, como é que vê o Ocidente a lidar com todas estas mudanças? Qual será o futuro da NATO e da União Europeia (UE), e faz sentido a ideia de que a Europa poderá torna-se uma grande potência…

 

RJ > Bem eu tenho uma posição céptica. Gostaria muito que a Europa se unificasse politicamente, pois do meu ponto de vista, ancorado no realismo, seria desejável que a Europa fosse um parceiro forte dos Estados Unidos, o que não acontece actualmente, e que fosse também um contrapeso dos Estados Unidos. Se a Europa estivesse unida talvez os Estados Unidos não tivessem invadido o Iraque. Portanto, gostaria muito de ver a Europa unida porque, como os bons realistas dizem, como Ken Waltz disse e como Morgenthau disse, qualquer potência que se encontra numa situação em que não encontra oposição externa vai fazer coisas tresloucadas e desbragadas. É esse o facto crucial que nos transmite o realismo. Waltz escreveu um artigo em 1991 quando toda a gente estava preocupada com um retraimento dos Estados Unidos, e em que ele afirmava que a dado momento os Estados Unidos iriam certamente fazer coisas tresloucadas e desbragadas, ele colocou a questão usando termos mais elementares, mas o argumento no essencial era o de que os Estados Unidos iriam fazer coisas tresloucadas porque não há ninguém que o possa impedir. E tinha toda a razão. Portanto, eu gostaria de ver a Europa unida. Mas não vejo sinais de que isso acontecerá no decurso da minha vida, e espero ainda viver bastante tempo!

Portanto, as relações entre os Estados Unidos e a Europa são sempre relações bilaterais com países específicos. Mas sei que há preocupações a esse respeito do lado da Europa, alguém da UE vem falar comigo proximamente por causa disso. E tenho visto as notícias, por exemplo a respeito do desapontamento com o facto de Obama não ter ido à cimeira [UE-Estados Unidos]. Por muito que simpatize com os europeus, e reconhecendo que viver com os Estados Unidos não é fácil, os europeus são impossíveis de contentar. Os Estados Unidos ou fazem de mais, ou fazem de menos.

O melhor exemplo disso é facto de que, no início da Administração Clinton, [o Presidente] enviou o [secretário de Estado Warren] Christopher para consultar os europeus a respeito da antiga Jugoslávia e Christopher disse: «Bem, estamos a pensar levantar as sanções e atacar [lift and strike] mas antes disso queremos realmente consultar-vos a respeito desta questão.» E eles disseram, «O que é que isso quer dizer, afinal o que é que vocês vão fazer?» Christopher respondeu «Estamos aqui para vos consultar!» E os europeus responderam: «Consultar? Mas o que é que isso significa?»

Penso que foram adolescentes durante tanto tempo que se esqueceram do que fazer com a sua independência, não conseguem. Os europeus estão, de certa forma – vou ser realmente rude – psicologicamente diminuídos. E isso é mau para eles, é mau para nós. E a pessoa que primeiro se apercebeu disso foi o Presidente Eisenhower, que assumiu a presidência decidido a retirar as tropas norte-americanas da Europa. E agora sabemos porque os arquivos estão abertos à consulta. É espantoso! Nada disto era conhecido, e parte da razão tinha a ver com as despesas mas tinham também muito a ver com ele achar: «Isto não é natural. Os europeus têm grandes tradições, grandes capacidades e culturas, agora estão a recuperar, não precisam de tropas norte-americanas, não deveriam precisar. Enquanto os Estados Unidos lá estiverem eles nunca poderão recuperar o seu lugar natural no mundo.» Parte da sua motivação era, portanto, altruísta, e penso que ele tinha razão. Tinha razão antes do tempo. Creio que se tivéssemos deixado, a Europa nessa altura teria tido todo o tipo de consequências negativas, muito negativas. No entanto, no essencial ele tinha razão, mas não vejo como se conseguirá avançar nesse sentido.

E portanto as relações entre os Estados Unidos e a Europa irão sempre envolver algumas tensões, mas são as tensões normais numa família. Os interesses convergentes são enormes, o nível de comunicações é enorme, e…

 

BCR > Os valores partilhados…

 

RJ > Sim, tudo isso tem um peso esmagador.

 

BCR > Os defensores de uma maior integração da UE por vezes consideram que Berlin Plus está na raiz desse problema. Os norte-americanos não nos deixavam avançar mais, dizem. Parece-lhe que faz sentido dizer isso?

 

RJ > Inicialmente é verdade. E é claro, como os documentos mostram, que [George H. W.] Bush favoreceu a unificação da Alemanha e merece muito crédito por isso. Ele e Clinton mostravam-se ambivalentes quanto a uma Europa como uma potência realmente independente. E sempre seguimos esta linha de que no essencial uma força [militar] europeia não deveria competir com e enfraquecer a NATO. Mas mesmo que não tivéssemos tomado essa [posição], como sabe a política de defesa e segurança europeia não avançou muito, e culpar os Estados Unidos por isso é um erro, uma tese desse tipo seria risível. Se os europeus quisessem realmente avançar, poderiam fazê-lo. E no contexto actual, creio que os Estados Unidos dariam espaço para isso. Não desejaríamos dissolver a NATO, mas [nos Estados Unidos] estaríamos disponíveis, creio, para apoiar uma maior independência da parte da Europa, não nos oporíamos, porém não creio que vá acontecer, mas com esta UE alargada não vejo, talvez com geometria variável mas será difícil.

 

BCR > Em Portugal, e não só em Portugal, por vezes diz-se que um problema com as RI é que se centram completamente nas grandes potências … mas e a periferia, os estados mais pequenos?

 

RJ > Sim, sim, bem, como disciplina, tem razão, pelo menos no caso da produção académica norte-americana, é dominada pelas grandes potências. Há um pequeno conjunto de livros, muito pequeno, a respeito das pequenas potências, livros que não são muito fortes analiticamente. Alguns são bons ao nível da análise histórica, mas não é uma área de estudo significativa. Há um ou dois livros [interessantes] a respeito de potências médias. O Barry Buzan está a tentar olhar para regiões e isso funciona5, e o meu antigo colega Gregory Gause III tem um livro muito bom a respeito da política internacional do golfo Pérsico6. Portanto, há alguma coisa, quer porque a maioria da produção académica das RI é feita por norte-americanos, quer porque a disciplina se desenvolveu sobretudo depois da II Guerra Mundial, assim como porque analiticamente é mais fácil criar modelos abstractos do lado A e do B, é claramente verdade que muita da construção teórica é predominantemente feita a respeito das grandes potências.

 

BCR > Teorias subalternas, parecem-lhe uma abordagem convincente, ou…

 

RJ > Bem, as teorias subalternas no campo cultural, francamente, creio que são sobreavaliadas e pouco úteis. No campo mais político creio que são úteis no sentido de que desvalorizámos ou estudámos pouco as pequenas e médias potências. Creio que isso está a mudar até certo ponto. Mas estou convencido de que devemos claramente fazer mais neste campo. Creio que a imagem que temos é distorcida pelo que as teorias [das RI] são elaboradas tendo em vista as grandes potências. E se em alguns casos podemos pegar nessas teorias e reduzir a escala e trabalhar com elas, nem sempre isso é possível, a situação pode ser muito diferente. E eu encorajaria a investigação nestas outras áreas, e o facto de eu falar de outras áreas por si só é indicativo de que creio que o trabalho realizado nelas não é significativo, nem em termos de qualidade nem em termos de quantidade.

 

BCR > Relativamente ao seu trabalho actual, creio que acabou de publicar algo a respeito do tema das falhas dos serviços de informações.

 

RJ > Sim, o livro já está impresso, e estará nas livrarias em Fevereiro ou Março de 2010, e trata do tema das falhas dos serviços de informações.

 

BCR > Christopher Andrews afirmou numa conferência algo como os serviços de informações britânicos acertaram a respeito do IRA provavelmente qualquer coisa como 90 por cento das vezes, e que, em qualquer tipo de empresa, isso seria visto como um enorme sucesso, e, no entanto, essa pequena percentagem de casos ditos de falhanço das informações geralmente tem um impacto enorme e suscitam muita recriminação.

 

RJ > Isso é realmente importante, falo um pouco disso no livro. Há aqui um problema analítico muito sério quer para os investigadores, quer para os decisores, quer para o processo de aprendizagem de lições pela própria comunidade dos serviços de informação – fazemos por regra, quer internamente, quer externamente, autópsias de falhanços. O capítulo mais longo do meu livro é uma autópsia que eu fiz para a CIA a respeito do caso do Irão [em 1979] e que pôde agora ser divulgado publicamente. E refiro-me a todas as autópsias que eles [na CIA] têm feito. Eu e várias outras pessoas fizemos estas autópsias. Ora, do ponto de vista analítico se se quer realmente perceber as razões de um fracasso só se podem perceber quando comparamos sucessos com falhanços; e isso nunca foi feito.

Algumas das coisas que as pessoas apontam como razões para o falhanço das informações a respeito do Iraque estão erradas, porque elas não comparam sucesso e falhanço, mesmo no seio da comunidade das informações, apontam para explicações em termos de teorias preconcebidas: por exemplo, porque é que a CIA não acertou a respeito do material nuclear [no Iraque]? Ora, quando se lê a documentação que agora é pública, é evidente que as pessoas que estavam em desacordo com essa ideia o faziam porque também elas tinham fortes ideias preconcebidas. Portanto, do ponto de vista analítico ambos os grupos estavam a agir da mesma maneira, um estava certo, o outro estava errado, mas não se pode atribuir esse facto a [apenas uns] estarem condicionados por preconceitos.

Nem sequer sabemos a percentagem de êxito dos serviços de informações. O seu ponto é, portanto, inteiramente válido, mas claro que do ponto de vista político são os falhanços que causam os grandes estragos…

Penso que a comunidade académica deveria estudar mais os serviços de informações em geral, e agora como sabe há uma enorme quantidade de publicações, mas ainda não a suficiente. A CIA publica livros sobre vários temas, e agora há muito mais informações nos website, muito mais informações nos arquivos nacionais, mas nada que se aproxime de uma imagem completa apesar da maior abundância de informação. E há, agora, mais artigos que comparam o que se estava a fazer ao nível da análise da informação do Estado, e o que se estava a fazer na mesma altura a nível público.

Portanto, creio que o campo académico dos estudos das informações está a crescer. O argumento do meu colega professor Betts é muito importante, e faço eco disso no meu livro, que é o de que os falhanços [das informações] são mais prováveis quando o outro lado é muito estranho7. Agora sabemos muito acerca da forma como Saddam Hussein via o mundo, e é realmente muito louco.

 

BCR > Jogando jogos de dissuasão …

 

RJ > Sim, e pensando que não iríamos atrás dele, o que é realmente espantoso. Betts sublinha que as nossas teorias são construídas como generalizações a partir dos casos normais, e os falhanços das informações acontecem quando as generalizações não se aplicam. Penso que é inteiramente verdade.

 

BCR > No caso das informações a respeito do Iraque em 2002-2003 considera que se tratou de um erro genuíno?

 

RJ > Sim, eu dei uma entrevista há alguns meses atrás à televisão pública canadiana, e eles eram mais antiguerra do que nós. O entrevistador era muito bom, muito simpático, mas insistiu: «Acredita realmente nisso?» Eu tive de afirmar para memória futura que considerava [George W.] Bush um péssimo presidente, incrivelmente mau e, se se formasse uma fila de pessoas para criticar Bush, eu ia querer estar à frente dessa fila, mas este falhanço da informação a respeito das armas de destruição maciça não pode ser atribuído à pressão por parte dele sobre a CIA.

 

BCR > Está a referir-se à questão das armas de destruição em massa, e não da alegada ligação do Iraque à Al Qaida?

 

RJ > O que torna as coisas claras quando se olha para a questão como um cientista social, é pensarmos em termos de comparações – em países que eram contra a guerra, e.g., a França, as informações eram similares. E simultaneamente a comunidade das informações nos Estados Unidos estava a dizer a Bush coisas que ele não queria ouvir a respeito do terrorismo, e a respeito da reconstrução [do Iraque] no pós-guerra. Portanto, damo-nos conta quando aplicamos um método básico das ciências sociais e comparamos os casos – tal não prova que não havia qualquer espécie de politização, mas levanta muitas dúvidas a respeito da presença desta última, pelo menos até Outubro de 2002, depois da National Intelligence Estimate ter sido apresentada, quando toda a gente percebeu que a guerra [com o Iraque] estava iminente. A minha impressão é que a partir dessa altura as informações deixaram de olhar para a questão a sério.

 

BCR > Uma das coisas interessantes a respeito das informações é que pode dizer-se que há pessoas que acreditam demasiado nelas, ou então não acreditam suficientemente nelas. Há quem acredite precisamente porque é suposto ser informação secreta, outros pensam que precisamente por ser secreta é suspeita, os homens das informações devem estar a tentar esconder alguma coisa…

 

RJ > A primeira parte do capítulo final do livro diz respeito às tensões entre informações e tomada de decisões, e eu não coloquei a questão nesses termos, mas talvez devesse tê-lo feito. Há poucos casos em que as informações realmente mudaram muito as coisas. O meu amigo Richard Immerman escreveu um artigo, o discurso como presidente [da Society for Historians of American Foreign Relations], na Diplomatic History, dizendo que as informações, na verdade, não eram assim tão importantes8. Isto causou um enorme escândalo porque na altura em que o texto foi publicado ele estava já a desempenhar a função de Assistant Deputy Director of National Intelligence for Analytical Standards and Integrity e as pessoas não gostaram do artigo. E tivemos John L. Gaddis a dizer que não foram assim tão importantes na Guerra Fria. Penso que é provavelmente um exagero dizer isso, mas é verdade que efectivamente as informações secretas têm um enorme fascínio pelo facto de serem secretas. Trabalhei como consultor em assuntos internacionais para a estrutura de informações, e quando vou rever os papers que eles produzem tenho realmente de me esforçar para combater isso! Vemos os textos cheios de selos, cheios de palavras em código, ou linguagem técnica... Meu Deus! Temos realmente que conseguir algum recuo em relação a isso, e não é fácil conseguir esse recuo, creio que esse é um problema generalizado. Só porque algo é top secret não significa que é importante, menos ainda significa que é correcto. E depois, claro, há pessoas, especialmente conservadoras, na Administração Bush, Reagan, Nixon, que consideravam as estruturas das informações demasiado à esquerda e portanto tendiam a desvalorizá-las. Portanto, este é um problema no uso e no abuso das informações.

 

BCR > E considera que há uma tendência na comunidade das informações para contrariar isso, inflacionando as ameaças por forma a jogar pelo seguro?

 

RJ > Não creio. Para provar isso havia que basear-se numa base documental enorme, há alguns livros e artigos que defendem essa tese, mas eles escolhem enviesadamente as fontes. Ora, há que olhar realmente para o conjunto das informações, e aí encontramos erros quer num sentido, quer no outro. Penso que há, isso sim, uma tendência para reagirem de forma excessiva, ou seja, se seguem uma determinada tendência durante algum tempo, depois tendem a seguir a tendência totalmente oposta, e creio que esse é um problema real.

Mas não creio que eles sistematicamente exagerem as estimativas. O que penso que eles tentam fazer é apontar aos decisores o pior cenário possível, porque é que eles precisam de fazer isso. E depois eles dizem: ok, pode ser isto, mas nós não pensamos que seja realmente tão mau como isso. Penso que são realmente muito bons nisso, muito melhores que as informações militares por uma variedade de razões, nomeadamente porque são parte das estruturas militares…

 

BCR > Inflacionam a ameaça?

 

RJ > Exacto, as ameaças são boas para o negócio!

 

BCR > Quais são os seus projectos actuais?

 

RJ > O trabalho a respeito das informações é fascinante e gosto muito disso. Depois há pequenas coisas que têm que ver com problemas teóricos gerais e a sua aplicação a questões correntes, por exemplo um artigo sobre unipolaridade num número recente da World Politics e a revisão disso para um livro, portanto continuo a seguir esse tema9.

Continuo com vários trabalhos a respeito do sistema de crenças e da psicologia política. Espero talvez ter uma nova edição do meu livro sobre percepções enganosas, não rever e actualizar tudo, seria óptimo, mas não posso fazer isso. Mas gostaria de adicionar um capítulo, focando em particular o papel das emoções e preconceitos, porque há agora trabalho excelente em ciência política a respeito do papel das emoções. Um antigo aluno meu, John Mercer, publicou um artigo na International Organization que é muito bom a respeito deste tema, que tem uma grande importância10.

E também continuo interessado no trabalho a respeito de como é que os estados cooperam, que resulta do meu interesse pelo realismo defensivo. Não tenho um artigo planeado, mas estou a reunir coisas de proveniência variada. Continuo também a focar a minha atenção no que se escreve a respeito da Guerra Fria, quer como história pura e simples, quer como é que isso afecta as explicações da dita Guerra Fria, especialmente com respeito a saber se houve oportunidades perdidas, se se tratou de um dilema de segurança, quão importante foi o papel da ideologia e um conjunto de outras coisas que considero fascinantes e que tento continuar a acompanhar.

 

BCR > Como é que reage à ideia de que a Guerra Fria mostra que as teorias das RI são imunes a um teste que na realidade as pudesse desafiar ou mudar, nomeadamente a forma como acabou a Guerra Fria?

 

RJ > É certo que o final da Guerra Fria não mudou a forma de pensar de ninguém. John Gaddis di-lo com toda a clareza, num excelente artigo em que «bate» nos meus colegas. Era um pouco injusto mas como de costume muito inteligente, interessante, e provocador no melhor sentido da palavra11.

As teorias, em qualquer disciplina, mesmo nas ciências exactas, são muito, muito difíceis de mudar porque, regressando a Kuhn, mas há outros autores a dizê-lo, as ligações entre teorias e provas empíricas envolvem muitos passos12. Mas creio que à medida que aprendemos mais acerca da Guerra Fria, não apenas é fascinante, mas sobretudo agora sabemos, não tudo, mas muito do que se estava a passar no Politburo [da URSS], e aquilo que eles estavam a pensar era extraordinariamente diferente daquilo que pensávamos na altura. Creio que isso nos ajuda pelo menos a tornar as nossas teorias mais sofisticadas. Significa para mim e tendo em conta o meu trabalho no campo da psicologia e da história, que o xadrez é uma má comparação com a política internacional, pois nesse caso as regras são fixas. Portanto, o póquer é uma comparação muito melhor por razões evidentes, mas creio que a melhor comparação é com o filme japonês Rashomon [de Akira Kurosawa], em que toda gente vê as mesmas coisas de forma diferente. Na maior parte das suas interacções os países vêem o mundo de forma muito diferente uns dos outros e não se dão conta de como é que os outros vêem as coisas. E construir teorias com base nisso é difícil! Construir teoria a respeito do fim da Guerra Fria ajuda-nos a ver como é importante tentar isso, mas é realmente verdade que é difícil convencer qualquer um de nós que estamos errados, não é uma tarefa fácil. E, provavelmente, e isso é bom, devemos ser persistentes porque uma interpretação rápida dos factos, uma interpretação apressada dos factos frequentemente está errada e aqueles que não forem persistentes e não perseverarem no desenvolvimento do seu argumento, do seu entendimento, de facto, irão sofrer por isso.

 

BCR > E relativamente à unipolaridade, como vê a evolução das coisas, são os Estados Unidos um império em declínio?

 

RJ > Bem, defendi no meu artigo, de forma algo diferente de Stephen Brooks e William Wohlforth no seu livro, que é muito bom, que a unipolaridade americana durará bastante mais tempo13. Não porque os Estados Unidos são melhores ou encontraram o segredo de alguma coisa, mas porque a Europa não se irá unir e o crescimento da China terá de ser projectado muito, muito no futuro, e ainda assim será preciso muito tempo antes de se transformar numa superpotência global. Poderá projectar-se…

 

BCR > E será necessário que a China não enfrente problemas na sua ascensão…

 

RJ > Sim. E parece-me que acreditar que não haverá problemas é bizarro, certo? Não é assim que a história funciona; creio que a China irá ter enormes problemas apenas porque muitos países os têm.

Mas mesmo que isso não aconteça, podem haver conflitos, mesmo conflitos militares no Extremo Oriente. Esta mudança será muito importante mas não irá fazer da China um rival global dos Estados Unidos; claro que a dívida e défice dos Estados Unidos são terríveis, mas os economistas não vêem outra moeda de reserva [internacional] no horizonte.

Talvez a crise financeira seja culpa dos Estados Unidos. Não creio que isso seja rigoroso mas estou preparado para aceitar, ou admitir que sim. Porém, isso não alteraria os factos fundamentais da geografia e da política económica. Portanto, creio que teremos de viver com a unipolaridade, mas a unipolaridade não nos diz exactamente o que os Estados Unidos irão fazer. Os Estados Unidos são mais ou menos assertivos dependendo das circunstâncias e a maioria dos norte-americanos não se importa muito com as relações internacionais, e portanto a maioria dos líderes norte-americanos não presta muita atenção a estas temáticas. Logo, temos uma situação em que a única superpotência tem uma visão introvertida, o que é algo estranho, mas creio que é assim e que continuará a ser por um futuro indefinido.

 

BCR > Crê que aplicar a analogia do império aos Estados Unidos actuais é pertinente?

 

RJ > Bem, em primeiro lugar, considero pólo único uma terminologia estranha, ou mesmo potência hegemónica, que é um exagero, creio.

Pólo único soa estranho, e, efectivamente, quando organizámos conferências para preparar um número especial da World Politics, uma coisa que tivemos que decidir foi como designar os Estados Unidos... Acabámos por usar «única superpotência». Creio que potência hegemónica seria errado porque implicitamente aponta para uma assertividade da parte dos Estados Unidos que seria verdade com [George W.] Bush, mas não é uma característica estrutural, ora avança ora recua. Eu creio que foi a Martha Finnemore quem avançou com o termo argumentando: «Olhem, única superpotência é estranho, mas é rigoroso.»

Império tem uma evidente carga pejorativa e se eu fosse um polemista utilizaria o termo, mas não sou, eu escrevo poucas coisas que são opinativas, mas não utilizaria o termo.

Para além disso, é evidente que não é formalmente um império. Bem, dirão que é um império informal, mas devemos ter uma definição para um determinado significado e um império tem de ter algum grau de formalidade, caso contrário é como «água seca», não serve de nada.

 

BCR > Mas a comparação com os impérios é útil?

 

RJ > Sim, creio que comparar os Estados Unidos com um império é útil, mas considero que chamar-lhe um império, mesmo um império informal é o que um antigo aluno meu designou de retórica coerciva. Implica convocar imagens que não sejam rigorosas, ou pelo menos deveriam ser tema de discussão; portanto não creio que seja uma designação apropriada. Ou colocando as coisas de outra forma, talvez possa ser o último ponto a ser discutido; mas não é assim que a maior parte das pessoas utiliza o termo, certo? Não, não afirmam que os Estados Unidos são um império informal, e a seguir relatam todas as coisas terríveis que estão a fazer. Bem, isso não está correcto – é possível fazer muitas coisas terríveis sem se ser um império. Empire by Invitation, de Geir Lundstand, foi um conceito pertinente porque nos levou a pensar em várias dimensões que geralmente consideramos incompatíveis mas que realmente podem não ser14. Isso foi útil, mas a maior parte das utilizações do conceito de império não é realmente útil, apesar de o ter usado uma vez no título de um artigo que tinha a intenção de ser um pouco polémico e provocador15. Mas regra geral não o considero pertinente.

 

BCR > Falando então do futuro... considera que é suposto a teoria das relações internacionais ser essencialmente capaz de fazer previsões?

 

RJ > Não, não creio que seja, fui influenciado pelo livro de Stephen Toulmin, Foresight and Understanding, muito bom, que considera que o objectivo da ciência em geral é compreender, não é prever16. Por vezes é, aliás, possível prever sem compreender. Por vezes é possível compreender ou explicar (considerados aqui como sinónimos) sem prever.

Por outro lado, até certo ponto compreender ajuda de facto a prever e fazer previsões é muito útil porque nos ajuda a aperfeiçoar a nossa argumentação: se a minha teoria está certa e nada de bizarro se interpuser o que é que deveria acontecer? Foi útil, precisamente por isso, que John Mearsheimer escrevesse o seu artigo dando como provável um conflito na Europa pós-Guerra Fria17. Ocorreu-me precisamente essa ideia, e disse por piada ao editor: «Sabe que tiveram um problema terrível na composição [do artigo], deixaram de fora o último parágrafo. E o último parágrafo dizia – já viram aquilo que esta versão do realismo nos levaria a esperar, viram como é uma loucura, nunca irá acontecer. Portanto, é evidente que temos de repensar esta teoria de forma mais subtil. Porque é que vocês não publicaram esse parágrafo?» É claro que esse tal parágrafo perdido não existia. O John [Mearsheimer] não pensava assim, e é muito útil que seja assim porque ele não inclui esse último parágrafo, mas pelo contrário leva a sua teoria até ao extremo porque sabe que se estiver correcta essas são as implicações que deverão seguir-se. Portanto creio que fazer previsões é útil, mas o nosso objectivo é compreender. Pode haver quem considere que essa é uma saída fácil, porque cometemos tantos erros nas nossas previsões que [nas RI] recuámos neste campo. Não creio, sinceramente, que isso seja verdade, embora perceba que alguém com um olhar mais crítico adopte esse ponto de vista.

 

BCR > Portanto é sempre possível tentar adivinhar com base num bom instinto?

 

RJ > Sim.

 

BCR > Não significa que se tenha compreendido o que está a suceder...

 

RJ > Eu posso prever que um lápis cairá se eu o soltar da minha mão, mas isso não significa que tenha compreendido a gravidade.

 

BCR > Com esta preocupação presente, podemos agora voltar-nos para as previsões de crises futuras, ou de mudanças significativas no campo das relações internacionais…

 

RJ > Claro que há um problema, e o meu antigo colega Erik Gartzke fez referência a ele num artigo na International Organization há dez anos atrás – se eu posso prever um acontecimento e os decisores podem também prever isso porque sabem o que nós sabemos, então o acontecimento previsto pode não acontecer porque o comportamento dos actores irá mudar18. Dito isto, pode dizer-se que me considero uma pessoa que tende a preocupar-se, preocupa-me que o conflito no Iraque volte a reacender-se, especialmente em torno da linha de fractura árabe-curda mais do que entre sunita-xiita. Portanto vai haver uma ampla oportunidade de violência significativa nessa zona.

Não consigo ver como é que a campanha de contra-insurreição no Afeganistão poderá ter sucesso, a não ser que seja como prelúdio para uma negociação que será terrivelmente difícil, de forma a formar-se uma coligação de governo com os taleban. Nós nem conseguimos acordos entre os dois partidos no Congresso [dos Estados Unidos], será realista pensar que conseguimos que o mullah Omar e Karzai cheguem a um acordo? Talvez seja possível criar um sistema altamente descentralizado; talvez, talvez. Gostaria muito, espero muito que sim, mas não creio.

Portanto, antecipo muitos problemas, mas não creio que sejam problemas que levem a uma guerra nuclear.

 

BCR > Como durante a Guerra Fria…

 

RJ > Exactamente. Quem não viveu a Guerra Fria, eu agora ensino a Guerra Fria aos alunos de licenciatura, nós estávamos preocupados com…

 

BCR > A aniquilação do mundo.

 

RJ > Sim, exactamente, portanto pelo menos já não nos temos de preocupar com isso.

 

BCR > Obrigado.

 

Nova york, 13 de Fevereiro de 2010

Transcrição: Raquel Duque

Tradução: Bruno Cardoso Reis

 

NOTAS

1 Cf. JERVIS, Robert – «International politics and diplomatic history: fruitful differences». In H-Diplo/ISSF. N.º 1, 2010.         [ Links ]

2 Cf. MAY, Ernest R. – “Lessons” of the Past: The Use and Misuse of History in American Foreign Policy. Nova York: Oxford University Press, 1975. [N.B. May e Jervis estavam ambos em Harvard nesta época e trocaram ideias sobre estes temas.]         [ Links ]

3 PAPE, Robert – Dying to Win: The Strategic Logic of Suicide Terrorism. Nova York: Random House, 2005.         [ Links ]

4 HOROWITZ, Michael – «Long time going: religion and the duration of crusading». In International Security. Vol. 34, N.º 2, 2009, pp. 162–193.         [ Links ]

5 BUZAN, Barry E. G., e WAEVER, Ole – Regions and Powers: The Structure of International Security. Cambridge: cup, 2004.         [ Links ]

6 GAUSE III, Gregory – The International Relations of the Persian Gulf. Cambridge: cup, 2010.         [ Links ]

7 BETTS, Richard – Enemies of Intelligence. Nova York: Columbia University Press, 2007.         [ Links ]

8 IMMERMAN, Richard – «Intelligence and strategy: historicizing psychology, policy, and politics». In Diplomatic History. Vol. 32, N.º 1, 2008, pp. 1-23.         [ Links ]

9 JERVIS, Robert – «Unipolarity: a structural perspective». In World Politics. Vol. 61, N.º 1, 2009, pp. 188-213.         [ Links ]

10 MERCER, Jonathan – «Rationality and psychology in international politics». In International Organization. Vol. 59, N.º 1, 2005, pp.77-106.         [ Links ]

11 GADDIS, John Lewis – «International relations theory and the end of the Cold War». In International Security. Vol. 17, N.º 3, 1992-1993, pp. 5-58.         [ Links ]

12 KUHN, T. S. – The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: University of Chicago Press, 1962.         [ Links ]

13 BROOKS, Stephen G., e WOHLFORTH, William Curti – World out of Balance. Princeton: Princeton University Press, 2008.         [ Links ]

14 LUNDESTAD, Geir – «Empire by invitation? The United States and Western Europe, 1945-1952». In Journal of Peace Research. Vol. 23, N.º 3, 1986, pp. 263-277.         [ Links ]

15 JERVIS, Robert – «The compulsive empire». In Foreign Policy. N.º 137, 2003, pp. 82-87.         [ Links ]

16 TOULMIN, Stephen – Foresight and Understanding: An Enquiry into the Aims of Science. Bloomington: Indiana University Press, 1961.         [ Links ]

17 MEARSHEIMER, John J. – «Back to the future: instability in Europe after the Cold War». In International Security. Vol. 15, N.º 1, 1990, pp. 5-56.         [ Links ]

18 GARTZKE, Erik – «War is in the error term». In International Organization. Vol. 53, N.º 3, 1999, pp. 567-587.        [ Links ]