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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.30 Lisboa jun. 2011

 

Eisenhower, Portugal e o «ano da África» nas Nações Unidas

 

Daniel Marcos

Investigador do IPRI – UNL e do CEHC – IUL. Mestre em História das Relações Internacionais pelo IUL, onde prepara actualmente uma tese sobre as relações luso-americanas na década de 1950. É conferencista do Departamento de Estudos Políticos da FCSH – UNL.

 

RESUMO

O ano de 1960 revelou-se de balanço para a Administração Eisenhower perante a questão colonial africana, em particular no que afectava as relações com Portugal, cuja política colonial estava sob pressão na ONU. Washington viu-se forçada a procurar uma clarificação da sua postura tradicionalmente ambígua, sendo no seio do Departamento de Estado que esta clivagem se verificou, com o Presidente Eisenhower a desempenhar um papel decisivo na resolução da contenda.

Palavras-chave: Portugal, Estados Unidos, descolonização, Nações Unidas

 

Eisenhower, Portugal and the un «Africa Year»

ABSTRACT

In 1960 Washington was progressively forced to clarify its traditionally ambiguous position towards the colonial problem. This was the case of Portugal, whose colonial policy was under a great pressure at the UN. It was amid the State Department that this ambiguity became more evident. In the end, it was the President Eisenhower who played a decisive role solving the dilemma.

Keywords: Portugal, United States, decolonization, United Nations

 

Um dos momentos altos das relações luso-americanas em 1960 foi a visita do Presidente norte-americano Dwight D. Eisenhower a Portugal, em Maio desse ano. Publicamente, a estada deste Chefe de Estado representava a consumação da amizade que unia os dois países e era vista como uma forma de intensificar as relações bilaterais. Mas para o Presidente do Conselho português, Oliveira Salazar, a presença de Eisenhower em Lisboa era uma oportunidade para lhe demonstrar a «extrema preocupação» com que encarava a evolução política da África. Inquietado pelo que considerava ser o grande esforço de expansão comunista naquela região do globo, Salazar via com «alarme» a criação de uma enorme variedade de novas nações independentes, cujas «massas iletradas» não estavam preparadas para a autodeterminação. A seu tempo, acreditava o governante português, estas elites nacionalistas juntar-se-iam ao bloco comunista. Já Eisenhower procurou sensibilizar o governante português para a necessidade de as potências ocidentais prepararem os territórios dependentes para uma eventual transição política. Sem nunca usar a palavra «independência», o Presidente norte-americano chamou a atenção de Salazar para o facto de, em seu entender, o nacionalismo africano ser o único ideal capaz de substituir e evitar a penetração do comunismo. Assim, era fundamental que os Estados Unidos e os seus aliados procurassem «virar» estas elites para o lado ocidental, «ajudando» as populações desta região a melhorar as suas condições de vida. No fundo, tratava-se de «convencer» os africanos de que o alinhamento pelo Ocidente era a maneira mais eficaz de melhorar o seu modo de vida1.

Na verdade, o ano de 1960 acabou por colocar as relações luso-americanas em crescente tensão, no que dizia respeito à questão colonial. Da parte dos Estados Unidos, era claro que a adesão de novos estados africanos à ONU, que se previa para o Verão de 1960, pressionava Washington a iniciar uma política cada vez mais activa sobre os seus aliados europeus, no sentido de prepararem a autodeterminação dos territórios dependentes sem, contudo, pôr em causa as suas tradicionais boas relações com estes países. Esta pressão fez crescer no seio da Administração Eisenhower a clivagem entre aqueles que defendiam uma posição mais cooperante com os novos países afro-asiáticos e aqueles que davam predominância ao pendor transatlântico na política externa norte-americana.

Neste sentido, 1960 foi um ano em que se aprofundou a encruzilhada a que a Administração Eisenhower chegou no final do seu segundo mandato, no tocante à questão colonial: ou mantinha a proximidade aos seus aliados europeus e corria o risco de perder, progressivamente, o Terceiro Mundo para a União Soviética, ou se aproximava do bloco afro-asiático e fragilizava o bloco ocidental e a solidariedade entre os membros da Aliança Atlântica. Este dilema era acentuado pela clara resistência do Presidente Eisenhower em demonstrar boa vontade em relação às novas nações africanas. Apesar de compreender que a descolonização era uma inevitabilidade, Eisenhower tinha dúvidas sobre o sucesso da política de cultivar as relações com as elites nacionalistas africanas. Pelo contrário, continuava a reconhecer que as relações com os aliados europeus eram fundamentais para os interesses norte-americanos2.

O presente artigo tem como objectivo demonstrar a divisão interna da Administração Eisenhower no tocante à questão colonial portuguesa, particularmente no que diz respeito à posição a adoptar nas Nações Unidas no importante ano de 1960. Propomo-nos analisar quais as diferentes perspectivas existentes sobre este assunto no seio do Departamento de Estado, procurando perceber de que forma a encruzilhada interna da Administração Eisenhower afectou as relações com Portugal.

 

A POLÍTICA AFRICANA DA ADMINISTRAÇÃO EISENHOWER E A QUESTÃO COLONIAL PORTUGUESA

Quando Eisenhower assumiu a Presidência dos Estados Unidos em 1953, adoptou as linhas fundamentais da política africana herdada da Administração de Harry Truman. Tendo em conta que os principais constrangimentos dos Estados Unidos se prendiam com o conflito Leste-Oeste e com a necessidade de consolidar a Aliança Atlântica, o apoio aos movimentos nacionalistas e a defesa do anticolonialismo estavam condicionados pela necessidade de não danificar a relação com os aliados europeus. Era a chamada política intermédia, ou middle course policy, que procurava conciliar o apoio em relação aos seus parceiros europeus, ao mesmo tempo que defendia a promoção da autodeterminação dos povos africanos, de forma a não danificar, totalmente, as relações com os movimentos nacionalistas3.

No entanto, esta política foi sempre mais condescendente em relação aos impérios coloniais do que relativamente aos movimentos nacionalistas. Até muito tarde, as elites norte-americanas acreditaram que, «num mundo habitado por predadores soviéticos, não existia espaço para romancear acerca da imediata libertação» dos povos africanos. Desta forma, no instável mundo dos primeiros anos da Guerra Fria, a estabilidade garantida pelos impérios coloniais servia perfeitamente os interesses norte-americanos4.

Esta percepção mudou, gradualmente, após a realização da Conferência de Bandung, em 1955, e após a crise do Suez de 1956. Estes dois acontecimentos demonstraram aos Estados Unidos ser necessário reformular a sua política para com a África na medida em que a evolução do nacionalismo africano e a crescente resistência dos países colonialistas estavam a criar condições para o aumento da penetração soviética no continente africano. No entanto, essa evolução não teria, necessariamente, que passar por uma imediata concessão da independência das colónias europeias. Antes, pelo contrário, passava por uma colaboração intensa entre colonizadores e colonizados, no sentido de criarem estruturas políticas, económicas e sociais que permitissem, no futuro, a independência dos povos africanos, a salvo da penetração comunista5. Em suma, tratava-se mais de uma mudança na percepção em relação ao Terceiro Mundo e não de uma transformação de fundo na política dos Estados Unidos para a África, feita com base numa ruptura profunda.

Por essa razão se compreende que, em princípios de 1960, o National Security Council tenha aprovado um relatório sobre a política para a África da Administração, no qual defendia uma posição tendencialmente favorável aos interesses das potências coloniais, apesar de afirmar a necessidade de os países europeus iniciarem reformas que conduzissem os seus territórios não autónomos à autodeterminação6.

Particularmente em relação aos territórios portugueses, o NSC 6001 afirmava que, na «medida do possível», os Estados Unidos deviam «persuadir» os portugueses dos benefícios que teriam em iniciarem políticas mais «esclarecidas» na África. No entanto, os diplomatas norte-americanos deveriam evitar «pôr em causa» o direito à soberania de Portugal sobre os seus territórios na África, de forma a não deteriorar as relações com o Governo de Lisboa. Esta política baseava-se no facto de nem Angola nem Moçambique terem «importância estratégica, política e económica directa» para os Estados Unidos. Portanto, não havia necessidade em reformular completamente a política norte-americana para com Portugal e os seus territórios coloniais. Era apenas preciso manter uma atenção especial sobre a zona, já que a consciência política das populações africanas naqueles territórios estava a crescer, ainda que as políticas repressivas desenvolvidas por Portugal evitassem a emergência de agitação política e racial7.

No entanto, o agravamento da situação no continente africano colocava novos desafios aos Estados Unidos e a Portugal. Do ponto de vista do Governo de Lisboa, o início da violência do Congo Belga, em 1959, e a aceleração dos acontecimentos que conduziram à sua independência em Julho de 1960, reforçaram a necessidade de Portugal resistir às mudanças políticas no que considerava ser territórios ultramarinos8. Numa das poucas declarações públicas sobre a questão particular do Congo, em Maio de 1959, Oliveira Salazar declarou a preocupação de Portugal em relação ao agravamento da situação na África. Num discurso na sede da União Nacional, o Presidente do Conselho afirmou que, «literalmente, a África arde». E isto acontecia bem perto das fronteiras com os territórios portugueses. Ardia porque lhe estavam a deitar «fogo de fora», alimentando a «fatalidade de um movimento histórico», que arrastava as populações africanas para a «rebeldia, a subversão, a forçada dispersão e a independência». Nesta acção liderada pela União Soviética, Salazar acreditava que os Estados Unidos não estavam a desempenhar um papel activo para reverter a situação, mostrando-se incapazes de definir uma posição que evitasse a instabilidade naquela região9. Era por isso claro, para o Presidente do Conselho, que começava a cair um denso «nevoeiro» sobre o panorama internacional, particularmente na África. Com uma extensa fronteira comum com Angola, a preparação da independência do Congo Belga era vista com redobrada preocupação, não restando dúvidas que se aproximavam «momentos cruciais» para os territórios portugueses na África10.

Também a Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa percebia que, à medida que se aproximava a data da independência do Congo, aumentavam os «sinais de alarme» dos responsáveis políticos e militares portugueses, sobre a defesa dos seus territórios coloniais de possíveis incursões nacionalistas. Essa preocupação levava a que o Governo português se fechasse sobre si próprio, estando «razoavelmente confiante» na sua capacidade de evitar o rebentamento de instabilidade política em Angola ou Moçambique11.

Em finais de Agosto de 1960, em vésperas de se deslocar a Washington para reuniões no Departamento de Estado, o embaixador Charles Burke Elbrick acreditava ser fundamental que a Administração Eisenhower tomasse consciência de que a perda das colónias portuguesas era uma questão extremamente sensível para Portugal e, também, para os interesses norte-americanos em Portugal. Elbrick acreditava que a dissolução do império colonial podia contribuir para aumentar a instabilidade política na metrópole e, em última análise, até conduzir ao derrube do Governo pró-ocidental e ao fim do acordo dos Açores. Assim, à luz dos acontecimentos no Congo, a manutenção da estabilidade nos territórios portugueses deveria «brilhar por comparação», levando a que o Governo dos Estados Unidos «evitasse acções e declarações ofensivas para com Portugal», tais como caracterizar a política colonial portuguesa como «atrasada». Era preciso ter em atenção que, até ao momento, não havia relatos de incidentes de origem subversiva em Angola, mesmo depois da emergência da crise do Congo. Isto não queria dizer que, num futuro próximo, Portugal não pudesse sofrer com a erupção de um conflito nas suas colónias, já que a proliferação de instabilidade na África fazia crer ser «pouco provável que Portugal conseguisse escapar ao contágio nacionalista». Mas a mudança devia chegar de forma «lenta», para permitir que o regime português desenvolvesse as colónias, ao nível económico e político12.

Os desenvolvimentos na África e a crescente preocupação do Governo português tornavam evidente que se aproximava o momento em que seria necessária uma tomada de posição mais clara da parte dos Estados Unidos acerca do colonialismo português. De acordo com o secretário de Estado Christian Herter, as relações de Portugal com os Estados Unidos por causa da questão africana não tinham soluções fáceis, especialmente quando se generalizavam os ataques públicos ao colonialismo português nas Nações Unidas, vindos, sobretudo, dos países do bloco afro-asiático. Isso também se verificava na opinião pública norte-americana, onde a maioria da população via a política portuguesa na África como um «anacronismo do século XIX com pouco espaço para existir em pleno século XX». Tendo em vista a tradicional dedicação dos Estados Unidos ao conceito de autodeterminação, o secretário de Estado julgava cada vez mais difícil «evitar políticas, acções ou declarações» que não fossem ofensivas para Portugal, apesar de haver uma vontade clara da parte dos Estados Unidos em «tentar abster-se» de criar litígios com o Governo português. Por esta razão, a Administração norte-americana tinha seguido uma política que evitava a discussão pública sobre qualquer assunto que envolvesse os territórios africanos portugueses. Quando pressionados, por exemplo, os Estados Unidos procuravam realçar que, apesar das críticas à política colonial portuguesa pela sua estratégia de fazer persistir o atraso económico e político das populações africanas, a política racial portuguesa era tendencialmente tolerante, se comparada com a seguida por outras potências13.

Embora compreendendo que os objectivos portugueses na África passavam pela criação de «novos Brasis», era também preciso ter em atenção que, até ao momento, não se tinham visto «progressos perceptíveis» da parte de Portugal. Portanto, era difícil perceber como as colónias portuguesas poderiam «escapar a algum nível de contágio», a não ser que o Governo português iniciasse um programa acelerado de desenvolvimento em termos políticos e económicos, no sentido de melhorar o nível de vida das populações africanas. Além do mais, e apesar de os Estados Unidos estarem dispostos a pressionar os estados africanos a não incendiarem os territórios portugueses, Herter reconhecia que os Estados Unidos tinham uma «influência pequena» na maior parte do continente africano e, desde logo, uma margem de manobra curta para poder auxiliar Portugal14.

Contudo, a crescente incomodidade das autoridades norte-americanas em relação à capacidade portuguesa de agilizar o processo de liberalização das condições políticas e socioeconómicas nas suas colónias não invalidava que, em determinados momentos, os Estados Unidos desempenhassem um papel decisivo de auxílio aos interesses externos de Portugal. Um exemplo claro da manutenção do apoio norte-americano ao seu aliado deu-se quando o Governo português resolveu avançar com a candidatura a membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em 1960. Contando com um apoio importante de outros países ocidentais, nomeadamente da França, esta decisão acabou por se revelar, todavia, imprudente15.

Para o Departamento de Estado, apesar da crítica internacional ao colonialismo português, o apoio a Portugal seria a solução mais vantajosa para os interesses norte-americanos, por duas razões. Em primeiro lugar porque, desde a sua adesão em 1955, Portugal nunca se tinha sentado no Conselho de Segurança. Em segundo lugar, e mais importante, havia que ter em consideração a questão dos Açores, particularmente quando a diplomacia norte-americana apontava para a necessidade de iniciar o processo de renegociação do acordo de 1957, durante o ano de 196116.

Esta questão da candidatura de Portugal ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, no ano em que profundas mudanças políticas e sociais aconteciam na África, com reflexos na própria ONU, acabava por clarificar os principais factores que influenciaram as relações entre Lisboa e Washington ao longo da Administração Eisenhower. Em plena Guerra Fria, a importância do conflito bipolar na Europa ainda desempenhava um papel determinante, superando claramente a necessidade crescente de o Ocidente desenvolver uma política mais consentânea com os acontecimentos que se verificavam na África. Se dúvidas existissem, entre a África ou os Açores, o arquipélago atlântico português ainda era fundamental para os Estados Unidos e era esse o principal motor das relações luso-americanas.

Em finais de Julho de 1960, os Estados Unidos informaram Portugal de que estavam em condições de apoiar a sua candidatura ao Conselho de Segurança17. A tradicional postura do Presidente Eisenhower, favorável à manutenção de boas relações com os aliados europeus, prevalecia em Washington. No Outono de 1960, o embaixador dos Estados Unidos em Lisboa deslocou-se a Washington para reuniões no Departamento de Estado e no Departamento de Defesa. Reflectindo a necessidade de preparar com alguma antecedência a renegociação do acordo dos Açores, que terminaria a sua vigência em finais de 1962, a Administração Eisenhower queria evitar a repetição do processo tumultuoso que tinha sido a renovação levada a cabo em 1957. Recorde-se que, ao longo deste processo e devido à ocupação pela União Indiana dos enclaves de Dadrá e Nagar Aveli em 1954, Portugal tinha suspendido o processo de renovação do acordo das Lajes, de forma a garantir o apoio público norte-americano18.

Durante a sua estada, o embaixador Elbrick solicitou uma audiência ao Presidente Eisenhower, com o objectivo de «discutir a grave preocupação que o Governo português tinha em relação à evolução dos acontecimentos na África», em especial quanto à crescente crítica contra a política colonial portuguesa19. O problema de África estava a tornar-se particularmente gravoso, ainda que nenhuma «dificuldade imediata fosse expectável». Para o embaixador norte-americano, era preciso ter em atenção que os portugueses viam a questão colonial como um todo. Por exemplo, todas as possessões portuguesas, incluindo aquelas que, como Goa, mais não eram do que «uma fuga dos seus recursos», eram vistas como essenciais, na medida em que os portugueses receavam que a cedência da independência a alguns territórios «despoletasse uma reacção em cadeia» que conduzisse ao fim do império português20.

A resposta do Presidente norte-americano foi metafórica, recorrendo ao exemplo que uma anterior conversa com Winston Churchill tinha, agora, para o caso português. Há UN. anos atrás, Eisenhower tinha aconselhado os britânicos a estabelecerem um prazo limite, no final do qual os seus territórios coloniais escolheriam qual a ligação que queriam manter com Londres. Até lá, as autoridades inglesas deveriam preparar as suas colónias para o autogoverno. Na opinião do Presidente norte-americano, esta era a forma mais eficaz de as potências coloniais manterem os laços com os territórios dependentes, muito melhor do que qualquer recurso ao uso da força. Eisenhower recordava que esta proposta havia, de princípio, «abalado» Churchill, mas que, no final, tinha sido a postura adoptada por Londres. Desta forma, Eisenhower defendia a mesma solução para resolver o problema colonial português. No entanto, Charles Elbrick procurou chamar a atenção do Presidente para uma possível reacção negativa da parte do Governo português. Referindo que Oliveira Salazar estava ao corrente da posição norte-americana, o embaixador alertava para o facto de o Presidente do Conselho recear sequer mencionar a palavra independência, por acreditar que, quando essa ideia avançasse, «rapidamente os africanos esqueceriam as condições e exigiriam a independência imediata». Ainda que concordando com a perspectiva portuguesa, Eisenhower terminou a conversa instigando o embaixador a avançar, mesmo que a reacção de Salazar fosse negativa. Para o Presidente dos Estados Unidos, era dever de Washington auxiliar Portugal a «fazer da necessidade uma virtude», em relação ao problema colonial21.

Desta conversa depreendem-se as condicionantes que envolviam as relações entre os Estados Unidos e Portugal ao longo da Administração Eisenhower. Por um lado, os Estados Unidos compreendiam que, à medida que os «ventos de mudança» se estendiam a todo o continente africano, as potências coloniais eram forçadas a iniciar reformas políticas, de forma a prepararem os territórios coloniais para a autodeterminação e futura independência. Por outro lado, era preciso perceber que havia um conjunto de constrangimentos que levavam esta administração a condescender perante as características dos regimes e as políticas que moldavam os seus aliados22. No caso particular de Portugal, a sua incapacidade de transformar numa virtude a necessidade de descolonizar tinha de ser cautelosamente equilibrada com os restantes interesses norte-americanos, que passavam pela manutenção no poder de um regime pró-ocidental, aliado na NATO e disponível para autorizar, durante o tempo de paz, a utilização da Base das Lajes nos Açores. No entanto, a busca incessante por uma política equilibrada em relação ao caso português acabava por contribuir para que Washington desse sinais contraditórios em relação à questão colonial portuguesa. Não sendo a favor desta política, não era capaz de encontrar uma solução para levar o seu aliado a mudá-la.

 

O «ANO DA ÁFRICA» NAS NAÇÕES UNIDAS E O DEBATE NO DEPARTAMENTO DE ESTADO SOBRE O PROBLEMA COLONIAL PORTUGUÊS

Esta contradição acentuou-se com o agravamento da pressão internacional contra o colonialismo, que teve uma particular visibilidade no Outono de 1960, durante a XV Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova Iorque. Com a admissão dos novos países saídos da desintegração do império colonial francês, ocorrido nos primeiros meses de 1960, à qual se juntou a solidariedade dos países do bloco soviético, as reuniões da ONU transformaram-se num palco privilegiado da contestação internacional contra o colonialismo europeu. Perante este panorama, a Administração Eisenhower viu a sua posição nas Nações Unidas tornar-se progressivamente mais difícil, exigindo uma robusta e eficaz campanha diplomática, a fim de evitar o afastamento entre os Estados Unidos e o Terceiro Mundo23.

O agravamento da tensão em torno do colonialismo teve consequências claras para a resistência portuguesa ao movimento descolonizador. Em Dezembro de 1960, e depois de vários anos em que Portugal tinha conseguido evitar a aprovação de resoluções que punham em causa a sua política colonial, foi levado ao debate um conjunto de propostas que visavam directamente a tradicional postura portuguesa na organização. Desde a adesão de Portugal às Nações Unidas em 1955 que o Governo português se recusava a ceder informações no âmbito do artigo 73.º da Carta, com base no argumento de que não possuía colónias mas sim Províncias Ultramarinas, integradas plenamente no Estado português24.

Sendo Portugal um dos principais alvos da crítica do bloco afro-asiático e soviético, o Departamento de Estado viu-se obrigado a ponderar, cautelosamente, as vantagens e desvantagens de uma eventual mudança da sua política para com Portugal, relativamente à questão colonial. Os acontecimentos nas Nações Unidas tornaram clara a existência de uma crescente clivagem no seio das instituições envolvidas pelo estabelecimento da política norte-americana para a África. Ao longo de 1960, foi ficando perceptível que o Bureau de Assuntos Europeus, responsável pelas questões relacionadas com Portugal, defendia a manutenção das relações com Portugal, tal como elas existiam até então. Aqui contava com o apoio decisivo, por um lado, do Presidente Eisenhower, que não via com bons olhos a possibilidade de cedência norte-americana aos interesses do bloco afro-asiático que pudesse pôr em causa os interesses dos aliados europeus; e, por outro, com a empenhada acção da embaixada norte-americana em Lisboa, que evitava a todo o custo ficar com o ónus da degradação das relações luso-americanas. No entanto, o Bureau de Assuntos Europeus estava cada vez mais isolado dentro do Departamento de Estado, já que a maioria dos serviços diplomáticos, em particular a missão norte-americana nas Nações Unidas e o Bureau dos Assuntos Africanos, apoiavam o estabelecimento de uma nova abordagem de Washington em relação ao continente africano25.

Isto tornou-se visível durante a preparação da XV Assembleia Geral da ONU. Num memorando do Bureau de Assuntos Africanos, o secretário de Estado era alertado para o facto de cada vez ser mais óbvio que havia «chegado o tempo de ter uma discussão franca» com o Governo português em relação ao problema colonial, em particular sobre a posição portuguesa nas Nações Unidas. De acordo com um dos principais responsáveis deste serviço, James Frederik Green, era preciso ter em conta que, ao longo da Assembleia Geral daquele ano, a questão dos territórios coloniais portugueses seria um dos principais pontos em discussão, não só nos vários grupos de trabalho encarregados de acompanhar a evolução dos territórios dependentes como também no plenário geral da organização. Embora não defendesse, ainda, a implementação de uma mudança radical na tradicional posição de Washington, era convicção deste diplomata que Portugal, um dos poucos países que se recusavam a dar informações sobre os seus territórios26, ia tornar-se «alvo de um ataque concertado» do bloco soviético e afro-asiático. Isto numa altura em que era cada vez mais fácil a aprovação de moções contra os estados coloniais, devido à adesão de novos estados africanos27.

Para James Green, era inevitável que Portugal ia ser «especialmente condenado» devido à essência marcadamente colonial dos seus territórios ultramarinos e pela falta de desenvolvimento político, económico, social e educacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Com a autodeterminação a ser «rapidamente instituída» naquele continente, Portugal devia ter em conta, como demonstravam os acontecimentos ocorridos no Congo, que o perigo residia na impreparação dos territórios para alcançar a independência. Sendo impossível evitar que Angola e Moçambique fossem afectados por este movimento, tornava-se essencial que o Governo de Lisboa pudesse, durante a Assembleia Geral que se avizinhava, indicar os seus «planos para o futuro desenvolvimento das suas províncias». Só esta atitude poderia «melhorar bastante» a posição portuguesa nas Nações Unidas, permitindo, também, que os Estados Unidos pudessem auxiliar o Governo português mais eficazmente, de forma a evitar o progressivo isolamento deste país28.

Em defesa desta abordagem, o Bureau de Assuntos Africanos chamava a atenção para a necessidade de o Departamento de Estado desenvolver uma progressiva aproximação aos movimentos de libertação das colónias portuguesas, em particular de Angola. Em finais de 1960, aquilo que tinha começado por ser um progressivo interesse norte-americano sobre o nascimento dos movimentos nacionalistas nos territórios portugueses, transformou-se num contacto directo com o principal membro da União dos Povos de Angola (UPA), Holden Roberto. Aproveitando o facto de este se encontrar nos Estados Unidos para assistir às reuniões da ONU, o Departamento de Estado aceitou receber Roberto, com o objectivo de melhorar o seu conhecimento sobre os grupos nacionalistas angolanos29. Conversando com William Wight, do Bureau de Assuntos Africanos, Holden Roberto apresentou a UPA, garantindo ter um apoio generalizado no interior de Angola, ainda que muitos dos seus correligionários fossem apenas «simpatizantes que tinham receio de tomar atitudes». Apesar do esforço do líder da upa para que os Estados Unidos apoiassem a sua causa, Wight informou-o que a política norte-americana, assente na defesa do princípio da autodeterminação, se recusava a ingerir-se nos assuntos internos de outros estados, principalmente quando estes eram aliados no seio da NATO30.

A reunião com este nacionalista africano acabou por fomentar o paradoxo da política africana dos Estados Unidos. Ainda que este tivesse causado boa impressão, na medida em que as suas ideias pareciam «relativamente conservadoras» e afastadas da influência soviética, tinha ficado claro que os nacionalistas em Angola e Moçambique não estavam, ainda, preparados para a independência31. No entanto, nada invalidava que, no futuro, estes contactos pudessem ser estreitados e que a aparente frieza do diplomata norte-americano se transformasse numa progressiva aproximação com o objectivo de preparar estas elites para o poder. Porém, o momento ainda não tinha chegado.

A representação dos Estados Unidos na ONU passou a ser uma das principais defensoras da política defendida pelo Bureau de Assuntos Africanos. Sobretudo a partir do Outono de 1960, altura em que começou a ganhar forma um conjunto de resoluções contra o colonialismo que o bloco afro-asiático, com o apoio da União Soviética, pretendia fazer aprovar32. De facto, nas sessões de 14 e 15 de Dezembro de 1960, a Assembleia Geral aprovou três resoluções com um impacto directo na política colonial portuguesa. A Resolução 1514 reafirmava os princípios fundamentais dos Direitos do Homem para condenar todas as formas de colonialismo e declarar o direito dos povos à autodeterminação. Mas, acima de tudo, referia que a falta de preparação política, económica, social e educacional não podia ser um argumento para retardar a transição para a independência dos territórios dependentes. Já a Resolução 1541 reforçava os princípios básicos definidos no artigo 73.º da Carta, ao mesmo tempo que estabelecia os casos em que um território não autónomo poderia associar-se ou ser integrado num estado soberano. Finalmente, a Resolução 1542 enumerava os territórios dependentes sob administração portuguesa, apelando ao Governo português a comunicação, o mais rapidamente possível, das informações exigidas nos termos da Carta33.

Com os desenvolvimentos a que se assistiam na Assembleia Geral das Nações Unidas, o grande debate sobre o futuro da postura norte-americana em relação à política colonial portuguesa tornou-se mais intenso na segunda metade de 1960. Não se tratava, apenas, de definir qual a postura futura em relação a Portugal e aos países africanos. Era necessário tomar decisões concretas quanto às propostas de resolução que seriam votadas na ONU. Neste sentido, e de acordo com William Nunley, do Bureau de Assuntos Europeus do Departamento de Estado, a evolução a que se assistia nas Nações Unidas, sobretudo o «golpe de teatro emotivo» na luta contra o colonialismo, colocava riscos para a participação dos países ocidentais na ONU. Esta organização estava a caminhar no sentido de se constituir como «pouco mais do que a extensão do grupo de Bandung»34. Na verdade, a crescente postura do bloco afro-asiático punha em causa as tentativas de diversificação da política norte-americana para com Portugal, competindo directamente com a abordagem proposta pelo Bureau de Assuntos Africanos.

A posição de Nunley era secundada por Charles Elbrick, embaixador dos Estados Unidos em Lisboa. Na sequência da sua conversa com o Presidente Eisenhower, Elbrick escreveu um memorando a Foy Kohler, subsecretário de Estado para os Assuntos Europeus, onde expôs a sua preocupação em relação ao futuro da política norte-americana para com Portugal. Elbrick queixava-se de que o Bureau de Assuntos Africanos desejava que, quando regressasse a Lisboa, informasse os portugueses que a sua posição «era politicamente irrealista», ainda que fizesse sentido do ponto de vista legal. Assim, o embaixador deveria solicitar que o Governo de Lisboa iniciasse uma política de preparação dos seus territórios para a autodeterminação, começando por fornecer informações à ONU no âmbito do artigo 73.º da Carta. Para o embaixador, esta estratégia era bastante arriscada. Era preciso ter em consideração que Portugal tinha não só uma relação constitucional com as suas colónias, mas também uma relação económica. Era evidente que, sem o rendimento das colónias, principalmente de Angola, os portugueses julgavam que o País não tinha viabilidade económica. Neste sentido, pôr em causa a sua ligação aos territórios coloniais era visto como uma «ameaça directa à sua segurança nacional» e, inclusivamente, à sua «própria existência» enquanto país independente. Paralelamente, era preciso ter em consideração que a defesa dos territórios coloniais era o «objectivo principal» para Portugal e que, por exemplo, era claro que os compromissos na NATO eram, neste sentido, secundários. Assim, quaisquer iniciativas seguindo as linhas propostas pelos Assuntos Africanos «iriam não só falhar nos seus objectivos, como iriam pôr em perigo» as relações de proximidade dos Estados Unidos com Portugal, «incluindo a manutenção de facilidades nos Açores». A questão das colónias era de tal forma importante para o Governo português que qualquer acção «imprudente» podia colocar «seriamente em risco as relações globais» dos Estados Unidos com Portugal, o que, em última análise, podia conduzir ao fim da cooperação na NATO. No tocante ao problema colonial, era preciso ter em atenção que os «portugueses se consideravam os melhores juízes dos seus interesses»35.

Perante estas indicações, o próprio Foy Kohler acabou por se envolver na disputa, de forma a defender-se dos ataques que, na sua opinião, o Bureau de Assuntos Europeus sofria dentro do Departamento. Comentando a proposta de Resolução 1514, Kohler propôs-se a assumir a «tarefa solitária de tentar introduzir uma nota de sanidade mental» na discussão que dividia cada vez mais o Departamento de Estado. O responsável pelos Assuntos Europeus descrevia que quase todos os bureaus em Foggy Bottom se «inclinavam naturalmente» para que os Estados Unidos aprovassem esta resolução. No entanto, Kohler, enquanto responsável pelas relações com a Europa Ocidental, acreditava que os Estados Unidos se deveriam opor, uma vez que a proposta era «intrinsecamente má», já que condenava o colonialismo europeu e deixava de fora, por exemplo, o imperialismo soviético, praticado nos estados da Europa de Leste. Com uma linguagem «extrema em todos os sentidos», era óbvio que o principal objectivo desta resolução era «dificultar o mais possível a vida das potências europeias», por estas serem aliadas dos Estados Unidos. Além do mais, a resolução continha um conjunto de princípios aos quais os Estados Unidos se tinham sempre oposto, nomeadamente quando defendia a ideia de que a falta de preparação dos territórios dependentes para a autodeterminação não deveria ser impeditiva dessa transição política36.

Este responsável do Departamento de Estado acreditava que o pior que os Estados Unidos podiam fazer era votar a favor desta proposta em troca de ganhar alguma influência junto do bloco afro-asiático, isto porque iniciar uma política de cedências para com estes países não iria fazer diminuir a pressão sobre os Estados Unidos e os seus aliados. Assim, era preciso que o bloco ocidental estabelecesse até onde estava disposto a ir, não dando a imagem de que os países do Terceiro Mundo podiam «passar o rolo compressor» sobre os estados ocidentais. Pelo contrário, deviam compreender que as Nações Unidas e os países ocidentais apoiavam as suas «aspirações» e estavam preparados para patrocinar propostas «razoáveis», com o objectivo de acabar com todas as formas de colonialismo. Particularmente em relação à posição norte-americana, Kohler chamava a atenção para o facto de os Estados Unidos não poderem dar a sensação de condescender na aprovação de resoluções «absurdas» apenas porque esses «disparates» eram «amplamente apoiados». Assim, Foy Kohler julgava que o Governo de Washington deveria abster-se, seguindo, por uma questão de solidariedade com as potências ocidentais, a posição «corajosa» do Reino Unido37.

Perante a divisão crescente dentro do Departamento de Estado, em que nenhuma das partes em contenda tinha força suficiente para impor o seu ponto de vista, a Administração Eisenhower acabou por tomar a decisão de se abster em todas as resoluções sobre o colonialismo, votadas durante a XV Assembleia Geral das Nações Unidas. Com o Presidente Eisenhower a servir de fiel da balança e a assumir um papel decisivo na tomada desta decisão, os Estados Unidos não foram capazes de clarificar a ambiguidade da sua política africana, cada vez mais disputada, mesmo no seio da Administração. O sentido de voto dos Estados Unidos na ONU reflectiu, claramente, o dilema tradicional da posição em relação ao colonialismo, com atitudes que, em última análise, eram mais próximas das potências coloniais do que do bloco afro-asiático.

Exemplo claro disto foi a abstenção em relação à Resolução 1514. Até bem perto do dia da votação, tudo fazia crer que os Estados Unidos iam optar por votar a favor. Mas como a divisão era tão grande em Foggy Bottom, o secretário de Estado Christian Herter optou por consultar o Presidente sobre qual a posição a adoptar. Conhecendo as idiossincrasias do Chefe de Estado norte-americano em relação à questão colonial, a 8 de Dezembro de 1960, Herter enviou o rascunho da moção a Eisenhower, realçando que compreendia que a linguagem da proposta podia levar o Presidente norte-americano a abster-se. No entanto, avisava-o que a abstenção podia trazer consequências graves para os Estados Unidos, nomeadamente em termos da sua capacidade de moderação das resoluções afro-asiáticas. Herter acrescentava que, à excepção dos Assuntos Europeus, todos no Departamento de Estado apoiavam fortemente o voto favorável dos Estados Unidos e ele próprio, apesar de não concordar com as afirmações constantes na resolução, acreditava que se devia «fechar os olhos e votar a favor»38.

No entanto, e por decisão pessoal, o Presidente Eisenhower acabou por ordenar a abstenção do representante norte-americano nas Nações Unidas39. A difícil decisão dos Estados Unidos tinha sido tomada à última hora, acedendo a um pedido particular do primeiro-ministro britânico Harold Macmillan40. Mas esta decisão do Presidente norte-americano acabava por reflectir o seu desejo de evitar que a ONU se transformasse num verdadeiro monstro, onde Washington se permitisse ficar condicionada pelas jovens nações africanas, tornando-se incapaz de se mostrar solidária com os seus tradicionais aliados europeus41. No entanto, esta posição tinha colocado os Estados Unidos contra 89 estados-membros das Nações Unidas, o que deixou a missão norte-americana na organização «furiosa», temendo as consequências negativas para a posição global dos Estados Unidos42.

Já em relação à Resolução 1542, os Estados Unidos, após terem pesado cautelosamente os prós e os contras da sua posição, optaram por se abster, numa decisão tomada pelo Departamento de Estado. Ainda que Portugal tenha tentado até ao último momento que os Estados Unidos mudassem o seu sentido de voto para votar contra a resolução, Herter acabou por defender a posição intermédia, acreditando ser a menos onerosa para os interesses norte-americanos. Consciente de que os Estados Unidos tinham que «medir cuidadosamente as suas responsabilidades globais» e que não podiam «ficar indiferentes às consequências das acções nas Nações Unidas», a abstenção era considerada a melhor solução para o problema que a votação desta resolução colocava. Se, por um lado, era preciso evitar que as nações africanas apenas olhassem para o lado soviético quando procuravam apoio para fazer aprovar resoluções que julgavam vitais para os seus interesses, por outro, os Estados Unidos não podiam «apoiar uma resolução que isolava um determinado país, enumerando a lista dos seus territórios dependentes», e exigindo apenas a este o cumprimento dos preceitos do artigo 73.º da Carta43.

 

PORTUGAL E OS ESTADOS UNIDOS NO FINAL DA ADMINISTRAÇÃO EISENHOWER

Do lado português, a aprovação das resoluções nas Nações Unidas foi recebida com um profundo mal-estar. Dias antes da votação em Nova York, Salazar reafirmara a posição portuguesa, numa atitude entendida pela embaixada norte-americana como um sinal claro da sua rigidez, o que traria claras consequências para as relações entre os dois países. Analisando a campanha anticolonialista que punha em causa o trabalho desenvolvido por Portugal ao longo de quatrocentos anos, Oliveira Salazar reafirmava o carácter compósito, «euro-africano e euro-asiático» de Portugal. Para o Presidente do Conselho, as políticas seguidas pelos governos de Lisboa, ao longo de vários regimes, tinham permitido construir um sistema de unidade nacional, baseado na igualdade dos vários povos que compunham a nação portuguesa. Tratava-se de uma «realidade social e histórica traduzida nas Constituições» e que, por essa razão, não comportava «alienações, cedências ou abandonos», nem sequer a possibilidade da autodeterminação. Quanto à «campanha contra Portugal» levada a cabo nas Nações Unidas, ela era considerada, no mínimo, «aventurosa», já que ressuscitava um carácter «parlamentarista, excessivamente intervencionista e internacionalizante», que era contrário ao «espírito que presidiu» à criação da ONU. Na verdade, abria caminho à «intervenção abusiva» de países terceiros na política interna de cada Estado, o que, de acordo com Salazar, era «ilegítimo» e «discriminatório». Desta forma, a Portugal apenas restava continuar a «defender o que muitos vêem ameaçado e alguns julgam mesmo perdido», num processo que, para o Presidente do Conselho, exigiria «grandes sacrifícios, a mais absoluta dedicação e, se necessário, também o sangue das nossas veias». No fundo, tratava-se de resistir contra os «ventos da história»44.

Em face da posição oficial do Governo português perante os acontecimentos nas Nações Unidas, a representação diplomática dos Estados Unidos em Lisboa acreditava veementemente que Portugal ia, daí em diante, colocar num dos pratos da balança os acordos e compromissos internacionais, ao mesmo tempo que, no outro prato, colocaria o eventual apoio que os seus aliados estivessem na disposição de dar à política colonial portuguesa. Assim, esperava-se que Portugal iniciasse uma política de quid pro quo em relação aos seus aliados mais «recalcitrantes». No caso particular dos Estados Unidos, era claro que a renegociação da Base das Lajes estaria dependente do apoio norte-americano à presença portuguesa na África45.

Ao longo de oito anos de administração, a política externa norte-americana em relação a Portugal acabou por adoptar uma postura de condescendência, de forma a não criar riscos para os interesses de Washington em Portugal metropolitano, tendo a utilização da Base das Lajes nos Açores sempre como pano de fundo. Constrangida pela Guerra Fria, a Administração Eisenhower deixou alimentar o dilema da sua política em relação ao problema colonial, numa evolução ambígua que não foi capaz de evitar a tomada de decisões contraditórias entre aquilo que era a competição interna do Departamento de Estado e as posições políticas finais. Daí não ser surpreendente que, à margem de um relatório acerca da evolução política de Angola, produzido em Janeiro de 1961, e que apoiava a manutenção da política norte-americana seguida até então, se realçasse a ideia de que eram bastantes remotas as possibilidades de ali ocorrerem distúrbios políticos e sociais. Contudo, fruto de uma leitura posterior, estava a seguinte afirmação manuscrita, demonstradora de uma certa perplexidade: «Mas aconteceu!»46 Em conclusão, a manutenção da política de apoio ao colonialismo português deveu-se sobretudo à idiossincrasia do Presidente norte-americano Dwight Eisenhower. Caberia à Administração Kennedy aplicar a política pela qual a maioria do Departamento de Estado ansiava.

 

NOTAS

1 Memorando de conversa entre o Presidente Eisenhower e o Presidente do Conselho Oliveira Salazar, 19 de Maio de 1960. Dwight D. Eisenhower Presidential Library, Abilene, KS – White House Office, Office of the Staff Secretary, Records, 1952-61, International Trips and Meetings Series, Cx. 12.

2 MERIWETHER, James H. – «Africa and the Eisenhower Administration», in STATLER, Kathryn C., e ANDREW I. Johns – The Eisenhower Administration, The Third World, and the Globalization of the Cold War. Nova York: Rowman & Littlefield Publishers, 2006, pp. 191-192.        [ Links ]

3 MERIWETHER, James H. – «Africa and the Eisenhower Administration», p. 176.        [ Links ]

4 BORSTELMANN, Thomas – The Cold War and the Color Line. Cambridge: Harvard University Press, 2001, p. 117.        [ Links ]

5 MERIWETHER, James H. – «Africa and the Eisenhower Administration».        [ Links ]

6 KENT, John – «United States reactions to empire, colonialism, and the Cold War in Black Africa, 1949-1957». In The Journal of Imperial and Commonwealth History. Vol. 33, N.º 2, 2005, pp. 195-220.        [ Links ]

7 Memorando 6001 do National Security Council, 19 de Janeiro de 1960. Dwight D. Eisenhower Presidential Library, Abilene, KS – White House Office, Office of the Special Assistant for National security Affairs: records, 1952-61, NSC Series, Policy Papers subseries, Cx. 28.

8 ALEXANDRE, Valentim – «A descolonização portuguesa em perspectiva comparada». In Franco, Manuela (ed.) – Portugal, os Estados Unidos e a África AustraI. Lisboa: flad, 2006, pp. 31-59.        [ Links ]

9 «A posição portuguesa em face da Europa, da América e da África», 23 de Maio de 1959. SALAZAR, A. Oliveira – Discursos e Notas Políticas. Vol. vi. Coimbra: Coimbra Editora, 1967, pp. 55-74.        [ Links ]

10 NOGUEIRA, A. Franco – Salazar. A Resistência (1958-1964). Porto: Livraria Civilização Editora, 2000, pp. 113 e 103.        [ Links ]

11 Telegrama da Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, 23 de Junho de 1960. NARA, RG 84, US Legation Lisbon, Cx. 52.

12 Telegrama da Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, 15 de Julho de 1960. NARA, RG 84, US Legation Lisbon, Cx. 52.

13 Despacho do Departamento de Estado, 7 de Julho de 1960. NARA, RG 84, US Legation Lisbon, Cx. 52.

14 Despacho do Departamento de Estado, 7 de Julho de 1960. NARA, RG 84, US Legation Lisbon, Cx. 52.

15 MARCOS, Daniel – Salazar e de Gaulle: a França e a Questão Colonial Portuguesa (1958-1968). Lisboa: Instituto Diplomático, 2007, pp. 49-57.        [ Links ]

16 Memorando do Bureau de Assuntos Europeus, 8 de Março de 1960. NARA, RG 84, US Legation Lisbon, Cx. 51.

17 Despacho do secretário de Estado Christian Herter para a Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, 24 de Julho de 1960. NARA, RG 84, US Legation Lisbon, Cx. 51.

18 Conferir MARCOS, Daniel – «Uma relação conturbada: os americanos nos Açores e a questão colonial portuguesa nos anos 50». In OLIVEIRA, Pedro, e REZOLA, Maria Inácia (coord.) – O Longo Curso. Estudos de Homenagem a José Medeiros Ferreira. Lisboa: Edições Tinta-da-China, 2010, pp. 387-410.        [ Links ]

19 Memorando para o Presidente Eisenhower do secretário de Estado Christian Herter, 1 de Novembro de 1960. Dwight D. Eisenhower Presidential Library, Abilene, KS – White House Office, Office of the Staff Secretary, Records, 1952-61, International Series, Cx. 13.

20 Memorando de Conversa entre o Presidente Eisenhower e o Embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, 9 de Novembro de 1960. Dwight D. Eisenhower Presidential Library, Abilene, KS – White House Office, Office of the Staff Secretary, Records, 1952-61, International Series, Cx. 13.

21 Memorando de Conversa entre o Presidente Eisenhower e o Embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, 9 de Novembro de 1960. Dwight D. Eisenhower Presidential Library, Abilene, KS – White House Office, Office of the Staff Secretary, Records, 1952-61, International Series, Cx. 13.

22 SCHMITZ, David F. – Thank God They’re on Our Side. The United States and Right Wing Dictatorships, 1921-1965. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1999.        [ Links ]

23 SCHNEIDMAN, Witney W. – Confronto em África. Washington e a Queda do Império Colonial Português. Lisboa: Tribuna da História, 2005, p. 34.        [ Links ]

24 MAGALHÃES, José Calvet – Portugal e as Nações Unidas. A Questão Colonial (1955-1974). Lisboa: Cadernos do Lumiar/ /Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais, 1996.        [ Links ]

25 RODRIGUES, Luís Nuno – Salazar e Kennedy: A Crise de Uma Aliança. Lisboa: Editorial Notícias, 2002.        [ Links ]

26 O outro país era a Espanha.

27 Draft Position Paper from the Department of State de 24 de Agosto de 1960. NARA, RG59, Bureau African Affairs, Country Files, 1955-1963, Cx. 10.

28 Draft Position Paper from the Department of State de 24 de Agosto de 1960. NARA, RG59, Bureau African Affairs, Country Files, 1955-1963, Cx. 10.

29 Desde 1959 que Holden Roberto se deslocava com alguma regularidade aos Estados Unidos com o objectivo de ganhar apoio junto da elite política, académica e diplomática deste país. Conferir N’GANGA, João Paulo – O Pai do Nacionalismo Angolano. As Memórias de Holden Roberto. São Paulo: Editora Parma, 2008.        [ Links ]

30 Memorando de Conversa, 2 de Dezembro de 1960. NARA, RG 84, US Legation Lisbon, Cx. 52.

31 Ibidem.

32 PRUDEN, Caroline – Conditional Partners. Eisenhower, the United Nations, and the Search for a Permanent Peace. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1998.        [ Links ]

33 UN Yearbook 1960, pp. 44-50 e 511-513.        [ Links ]

34 Memorando de William Nunley para o Subsecretário de Estado para os Assuntos Europeus, 16 de Novembro de 1960. NARA, RG 84, US Legation Lisbon, Cx. 51.

35 Memorando de Burke Elbrick para Roy Kohler, 1 de Novembro de 1960. NARA, RG 59, European Affairs Lot File 69D23, Cx. 9.

36 Memorando do Subsecretário de Estado dos Assuntos Europeus para William T. Nunley, 7 de Dezembro de 1960. NARA, RG 84, US Legation Lisbon, Cx. 51.

37 Memorando do Subsecretário de Estado dos Assuntos Europeus para William T. Nunley, Responsável por questões de Informação e Serviços Secretos, 7 de Dezembro de 1960. NARA, RG 84, US Legation Lisbon, Cx. 51.

38 Memorando do Secretário de Estado Christian Herter para o Assessor da Presidência Andrew Goodpaster, 8 de Dezembro de 1960. Dwight D. Eisenhower Presidential Library, Abilene, KS – Ann Whitman File, Dulles-Herter Series, Cx. 13.

39 Telegrama da Casa Branca para a Embaixada dos Estados Unidos em Londres, 10 de Dezembro de 1960. Dwight D. Eisenhower Presidential Library, Abilene, KS – Christian Herter Papers, Chronological File, Cx. 9.

40 Carta de Dean Brown para Burke Elbrick, 15 de Dezembro de 1960. NARA, RG 84, US Legation Lisbon, Cx. 51.

41 A expressão de Eisenhower referia o desejo de evitar que a ONU se transformasse «num verdadeiro Frankenstein». Conferir o Memorando de Conversa entre o Presidente Eisenhower e o embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, 9 de Novembro de 1960. Dwight D. Eisenhower Presidential Library, Abilene, KS – White House Office, Office of the Staff Secretary, Records, 1952-61, International Series, Box 13.

42 Carta de Dean Brown para Burke Elbrick, 15 de Dezembro de 1960. NARA, RG 84, US Legation Lisbon, Cx. 51.

43 Telegrama do Departamento de Estado para a Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, 15 de Dezembro de 1960. NARA, RG 84, US Legation Lisbon, Cx. 51.

44 «Portugal e a campanha anti-colonialista», 30 de Novembro de 1960. Salazar, A. Oliveira – Discursos e Notas Políticas. Vol. VI. Coimbra: Coimbra Editora, 1967, pp. 83-112.        [ Links ]

45 Telegrama da Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, 15 de Dezembro de 1960. NARA, RG 84, US Legation Lisbon, Cx. 53.

46 «Portuguese policy in Angola – An appraisal», 4 de Janeiro de 1961. NARA, RG 84, US Legation Lisbon, Cx. 51.