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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.29 Lisboa mar. 2011

 

O lado incómodo da República Popular da China

 

Helena Ferreira Santos Lopes

Licenciada em História pela FCSH – UNL e mestre em Estudos Chineses pela School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres.

 

Raquel Vaz-Pinto

A Grande Muralha e o Legado de Tiananmen. A China e os Direitos Humanos

Lisboa, Tinta-da-China, 2010, 239 páginas

 

 

Obras académicas centradas em aspectos da China contemporânea não abundam em Portugal, muito menos obras da autoria de investigadores portugueses. A Grande Muralha e o Legado de Tiananmen de Raquel Vaz-Pinto é uma excepção a ter em conta. A autora é professora auxiliar e investigadora do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e tem estudado a relação entre a política e os direitos humanos e a religião. É em torno destes temas que se centra este livro, dedicado ao caso da República Popular da China (RPC).

Publicado pouco depois do anúncio da atribuição do Prémio Nobel da Paz a Liu Xiaobo, A Grande Muralha e o Legado de Tiananmen não poderia ter surgido em altura mais apropriada. A autora pretende «dar a conhecer a evolução dos direitos humanos na China» a partir da abertura económica em finais dos anos 1970 (p. 33), tornando públicas «vozes dissonantes da melodia colectiva regida pelo PCC [Partido Comunista Chinês]» (p. 34).

Com um título idêntico ao de um artigo da autora publicado em 20091, A Grande Muralha e o Legado de Tiananmen expande algumas das ideias desse ensaio. Baseado em várias fontes primárias e secundárias, das quais se destacam traduções dos ensaios escritos pelos activistas focados no livro, documentos das Nações Unidas, relatórios de organizações como a Amnistia Internacional, vários artigos publicados na imprensa, livros e artigos académicos, este é um trabalho que se debruça sobre uma das facetas mais referidas quando se discute a China nos media e na academia e uma das que reacções mais extremadas suscita. Como a autora observa na introdução do livro, «o futuro de um quinto da população mundial e as suas “opções” em matéria de direitos humanos e de democracia liberal terão, como em muitas outras áreas, consequências globais» (p. 43).

Os cinco capítulos do livro são dedicados a algumas questões-chave em torno dos direitos humanos na China sendo a análise, em quatro dos cinco capítulos, feita a partir de estudos de caso específicos. No que toca a algumas personalidades, como Wei Jingsheng ou Liu Xiaobo, a autora analisa o conteúdo de alguns dos seus ensaios mais relevantes, do seu alcance e das consequências que se seguiram para os seus autores. Raquel Vaz-Pinto aborda também em cada capítulo não só assuntos relacionados com o tema específico do mesmo mas também outros que têm uma relevância geral e transversal a todo o debate em torno dos direitos humanos na RPC. Por exemplo, no primeiro capítulo é abordada a questão da compatibilidade da democracia com os ditos «valores asiáticos»; no capítulo dedicado à liberdade religiosa é referida a política do filho único; no capítulo sobre liberdade de expressão e de associação é focado o papel da internet e do sistema de registo residencial hukou; no capítulo sobre tortura e julgamento justo é feita referência a problemas do meio ambiente; e no capítulo sobre a pena de morte é feita uma reflexão em torno da questão da «ascensão da China» na comunidade internacional.

 

OS HERDEIROS DE WEI JINGSHENG

Sendo esta obra referente ao «legado de Tiananmen», o primeiro capítulo procura traçar as origens do activismo autóctone que culminou no massacre de 1989 e do qual a luta pelos direitos humanos na RPC do presente será descendente. Tal é feito através da figura de Wei Jingsheng e do chamado «Movimento do Muro da Democracia». Wei é certamente dos dissidentes chineses mais conhecidos internacionalmente e com uma história de vida digna de romance. Antigo guarda vermelho que se começou a questionar sobre a aplicabilidade das ideias radicais maoístas quando viajou pelo país durante a Revolução Cultural, Wei foi depois soldado e jardineiro até que, nos anos que se seguiram à morte de Mao Zedong e em que Deng Xiaoping pôs em marcha a «Reforma e Abertura», se tornou uma figura de proa do «Movimento do Muro da Democracia». Wei assinou o influente ensaio «A Quinta Modernização: a Democracia», em 1978, onde afirmava que sem essa «modernização» todas as outras (tecnologia, agricultura, indústria e defesa) seriam inúteis. Após criticar abertamente Deng Xiaoping e a sua abertura limitada do regime, Wei seria preso e condenado a quinze anos de prisão, sendo depois transferido para um laogai («campo de reforma através do trabalho»), onde continuou as suas críticas, antes, durante e depois das manifestações de Maio e Junho de 1989 que culminaram no massacre de Tiananmen. Após a sua libertação, foi novamente preso e condenado, acabando por ser conduzido ao exílio nos Estados Unidos na sequência de intensas pressões internacionais para a sua libertação.

O caso de Wei Jingsheng dá o mote para outros relatos do livro que apresentam vários paralelos com o seu percurso: activismo, prisão, julgamento em condições duvidosas, condenação e, em alguns casos, exílio nos Estados Unidos. É precisamente Liu Xiaobo que a autora considera «o “herdeiro” de Wei Jingsheng que melhor soube articular o discurso crítico em relação ao PCC» (p. 128). Se Wei se notabilizou pelo apelo à «Quinta Modernização», Liu destacou-se por ter sido um dos redactores da Carta 08, documento online com centenas de signatários residentes na China que pede abertamente a democratização do regime. Tal como Wei, Liu foi detido, julgado e condenado por incitamento à subversão do Estado. A condenação de Liu foi noticiada na imprensa ocidental e se Wei havia sido agraciado com o Prémio Sakharov após a sua segunda detenção, Liu recebeu o Prémio PEN/Barbara Goldsmith Freedom to Write no mesmo ano em que foi preso, sendo depois o vencedor do Prémio Nobel da Paz. Figura de proa das manifestações de Tiananmen em 1989, Han Dongfang é o nome escolhido para ilustrar a luta pela liberdade de associação. Também um veterano de Tiananmen, foi preso e no cárcere a sua saúde foi duramente afectada. Dado o reconhecimento internacional que o seu caso alcançou, foi levado para os Estados Unidos para receber tratamento médico, mas recusou asilo, preferindo voltar à China. Novamente preso, foi levado para Hong Kong onde, em 1994, criou a China Labour Bolletin que, juntamente com o seu programa na Radio Free Asia, expõe problemas enfrentados pelos trabalhadores na RPC e presta apoio jurídico aos trabalhadores em conflitos laborais. Escreve Raquel Vaz-Pinto:

«É pela sua defesa das condições laborais que o apelidam de “Lech Walesa chinês”. E há quem defenda que chamar a atenção para a falta de condições laborais e para o número crescente de acidentes de trabalho constitui uma estratégia muito mais subversiva do que atacar frontalmente o monopólio do poder do PCC» (p. 145).

Quanto a Gao Zhisheng, uma das figuras destacadas no quarto capítulo (dedicado à tortura e julgamento justo), depois de soldado, tornou-se um advogado reputado que caiu em desgraça quando começou a aceitar defender casos como os de vítimas de despejos forçados ou de praticantes do movimento proibido Falun Gong. Na sequência de quatro cartas abertas à Assembleia Nacional, ao Presidente Hu Jintao e ao primeiro-ministro Wen Jiabao escritas em 2004 e 2005, Gao viu revogada a sua licença para exercer advocacia e, em 2006, foi preso e condenado por «incitamento à subversão do Estado». A pena foi suspensa «devido ao reconhecimento internacional de que já era alvo» (p. 164), voltando a ser detido em 2007 e 2009, sendo o seu paradeiro desconhecido desde 2010, quando deu entrevistas. É possível que Gao Zhisheng venha a repetir as pisadas de exílio nos Estados Unidos de Wei Jinhsheng, o caminho que a sua família seguiu.

Também apresentando paralelos com Wei Jingsheng encontra-se Hu Jia, a quem foi atribuído o Prémio Sakharov em 2008. Hu, activista ligado a questões do meio ambiente e da sida, é autor de numerosos artigos de que Raquel Vaz-Pinto destaca dois, de 2007, nos quais Hu «questiona seriamente a associação entre direitos humanos e a realização dos Jogos Olímpicos na China» (p. 171). Tal como outros activistas referidos acima, Hu foi condenado a prisão por incitar à subversão do Estado.

 

RELIGIÃO E PENA DE MORTE

A questão da liberdade religiosa na RPC é abordada no segundo capítulo da obra. Pese embora a autora destaque no título deste capítulo as figuras de Gendun Choekyi Nyima, o Panchen Lama, e de Su Zhimin, bispo de Baoding, o foco é mais abrangente, aludindo brevemente ao papel da religião em acontecimentos históricos de relevo na história da China, como a revolta dos Taiping (1850-1864) e fazendo referência, além do budismo e do cristianismo, ao islão. No contexto do budismo, é destacado o tibetano e referida a complexa situação política associada ao Tibete. Quanto ao islão na China, a autora não se debruça sobre os Hui, a minoria muçulmana sinizada mas sim sobre os uigures da província de Xinjiang, dando realce à líder da resistência uigure à autoridade chinesa, Rebiya Kadeer. Em relação ao cristianismo, a autora opta por analisar a situação dos católicos, defendendo que «o catolicismo coloca desafios especiais a Pequim» (p. 104) e explanando que

«há três temas importantes para uma compreensão abrangente da questão do catolicismo na China: as memórias históricas do século XIX e a associação entre o cristianismo e o mundo ocidental desenvolvido; fontes de lealdade e autonomia e a questão do “domínio estrangeiro”; e a legitimidade da liderança do PCC» (p. 104).

Talvez tivesse sido uma boa opção não isolar o catolicismo, sendo que também o protestantismo está associado à abertura imposta do século XIX «de humilhação estrangeira» ou não fosse a grande potência da época, a Grã-Bretanha, protestante tal como muitos dos missionários que se estabeleceram no país, alguns dos quais se tornaram célebres sinólogos como Robert Morrison, Walter Medhurst ou James Legge.

Raquel Vaz-Pinto faz uma exposição clara e elucidativa dos problemas inerentes à existência de duas estruturas religiosas cristãs: patrióticas e clandestinas, enumerando vários casos de vítimas de perseguições. A autora reflecte também no possível contributo da Igreja Católica para «minar moralmente o comunismo» na sequência do que aconteceu na Polónia sob jugo soviético com o Papa João Paulo II, aludindo a um possível laço entre o consolo da religião e os habitantes das zonas rurais à margem do progresso económico onde a maioria dos católicos se concentra.

O capítulo dedicado à pena de morte é mais abrangente na sua exposição e o mais solidamente alicerçado, sendo um tópico que a autora investiga desde a sua tese de doutoramento. Sendo o único que não revolve em torno de uma ou mais figuras, este capítulo traça a evolução da abolição da pena de morte no mundo e do debate em redor da questão, sendo depois referido o estado da pena de morte na RPC, «o país do mundo onde ocorre o maior número de execuções» (p. 193) apesar de as regiões administrativas especiais de Hong Kong e Macau, anteriormente sob administração britânica e portuguesa, respectivamente, serem abolicionistas. O caso de Taiwan, onde a pena de morte ainda é aplicada, teria também sido interessante de usar como termo de comparação.

Na sua exposição sobre a pena de morte na RPC a autora concentra-se em dois assuntos concretos – a abrangência da natureza dos crimes considerados capitais e a questão do transplante de órgãos dos prisioneiros que são executados. Reflecte depois na posição da China no seio da comunidade internacional e nas possíveis consequências que as suas posições face aos direitos humanos (advogando a defesa aos económicos, sociais e culturais em detrimento dos civis e políticos) possam ter à medida que o papel da China vai sendo mais relevante internacionalmente. Para a autora, a pena de morte é instrumentalizada pelo PCC para «controlar as ameaças e o desafio ao seu monopólio do poder político» (p. 215), usando esta condenação para punir casos de corrupção e outros crimes económicos.

 

CONCLUSÃO

Não pretendendo ser um estudo exaustivo, a obra de Raquel Vaz-Pinto é um trabalho conciso e fluido que traça um panorama geral de algumas questões problemáticas referentes aos direitos humanos na China e ao eco que têm no Ocidente e na política internacional. Não se espere deste livro um estudo desapaixonado e distante – a autora tem claramente um ponto de vista concreto quanto aos temas que aborda e por vezes a sua análise tem em conta apenas um dos lados da questão (por exemplo, a questão da política do filho único é mais complexa que a completa «tragédia» que a autora descreve2). A autora poderia também ter optado por referir mais concretamente o caso da República da China em Taiwan como termo de comparação, já que se trata de um caso bem-sucedido de um processo de democratização numa sociedade chinesa por um regime também ele de matriz leninista (o Guomindang) e onde actualmente questões sobre liberdade de expressão e pena de morte são motivo de aceso debate interno. Outra observação prende-se com a ausência de uma bibliografia geral, que seria certamente útil como complemento às notas que surgem no final de cada capítulo.

No conjunto, A Grande Muralha e o Legado de Tiananmen é um óptimo ponto de partida para obter uma perspectiva sobre várias questões relacionadas com o estado dos direitos civis e políticos na RPC e para conhecer algumas das figuras de maior relevo que agem activamente para que esses sejam respeitados. Em suma, este é o livro a ler em Portugal se se quer saber do que se fala quando se fala de direitos humanos na China.

 

NOTAS

1 VAZ-PINTO, Raquel – «A Grande Muralha e o legado de Tiananmen». In Relações Internacionais. N.º 23, Setembro de 2009, pp. 93-100.        [ Links ]

2 A propósito, veja-se, por exemplo, o artigo de HONG, Zhang – «From resisting to “embrancing?” the one-child rule: understanding new fertility trends in a Central China village». In The China Quarterly. Vol. 192, Dezembro de 2007, pp. 855-875.        [ Links ]