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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.29 Lisboa mar. 2011

 

Comunidades há muito imaginadas

 

Pedro Picoito

Doutorando em História Medieval. Professor no Instituto Superior de Educação e Ciências. Investigador do Instituto de Estudos Medievais.

 

Patrick Geary

O Mito das Nações. A Invenção do Nacionalismo

Lisboa, Gradiva, 2008, 204 páginas

 

 

No conjunto da obra do medievalista americano Patrick Geary, O Mito das Nações – subintitulado com mais rigor, no original de 2002, The Medieval Origins of Europe (as origens medievais da Europa) – é um livro algo exótico. Geary, professor na Universidade da Califórnia e muito próximo da escola francesa dos Annales, tem dedicado a sua investigação a temas como a memória (é autor da entrada respectiva no Dictionnnaire de l’Occident Médiéval de Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt), os rituais da morte, o culto das relíquias ou os mecanismos extrajudiciais de resolução de conflitos nas sociedades do Centro da Europa entre os séculos V e XII. Embora sempre tenha mostrado um claro interesse pelas origens «bárbaras» das actuais Alemanha, França ou Itália, só dois dos seus artigos anteriores anunciavam a tese d’O Mito das Nações1. Uma tese que Geary resume com visível sentido de urgência:

«Os povos europeus foram sempre muito mais mutáveis, complexos e dinâmicos do que os nacionalistas modernos supõem. Ao cabo de mil anos, os nomes dos povos podem parecer-nos familiares, mas as realidades sociais, culturais e políticas às quais se referiram diferem radicalmente das actuais. Por esta razão, precisamos de uma nova compreensão dos povos da Europa, sobretudo da época de formação da identidade europeia que foi o primeiro milénio» (p. 20).

É essa compreensão que Geary nos oferece.

 

O MITO DAS ORIGENS

O que é que leva um especialista em cartulários e santos medievais a intervir com tanta veemência numa das mais inflamadas questões do debate político contemporâneo? O «abuso da história» a que recorrem hoje muitos líderes, partidos ou movimentos nacionalistas da Europa para alimentar a «retórica do nacionalismo étnico» e as correspondentes políticas de exclusão. Geary cita explicitamente Jean Marie Le Pen, defensor do «povo francês que nasceu com o baptismo de Clóvis no ano de 496», e Slobodan Milosevic, que em 1989 chefiou uma gigantesca manifestação no Campo dos Melros, onde seis séculos antes se dera a mais célebre batalha entre sérvios e turcos pela posse do Kosovo. Mas os exemplos poderiam multiplicar-se, da Escócia à Grécia e do País Basco à Lituânia, até com curiosos paralelismos no Canadá francófono e na América que vocifera contra hispânicos e muçulmanos.

Esta retórica nacionalista costuma invocar um «momento da primeira posse da terra» em que os antepassados dos povos europeus, algures entre as invasões germânicas que provocaram a queda do Império Romano e as últimas grandes migrações de magiares e normandos por volta do ano 1000, teriam ocupado o seu território histórico. O pecado original de semelhante visão é procurar no passado não apenas a história, mas a essência das nações modernas. Surpreendente paradoxo, tendo em conta que a história é o estudo da mudança no passado. O «ídolo das origens», na expressão de Marc Bloch, que descobre a essência de uma identidade colectiva em acontecimentos ocorridos há mil e quinhentos anos não passa, portanto, de puro, mas nada inocente, anacronismo.

Daí que Geary analise os processos de etnogénese na Alta Idade Média, mostrando como as identidades colectivas à época, sobretudo aquelas em que os nacionalistas contemporâneos baseiam as suas «políticas de identidade», são muito mais flexíveis do que pensamos. Não só os vencedores de Roma estavam longe de constituir as unidades políticas, culturais e étnicas sugeridas pelos nomes que lhes damos por empréstimo das fontes romanas, como a identidade dos «bárbaros», pelo menos até à instalação definitiva que podia demorar séculos, era um processo de permanente composição, negociação e adaptação às circunstâncias. É esta plasticidade que explica o repentino aparecimento e o não menos repentino desaparecimento dos hunos, federação de tribos nómadas que chega ao coração da Gália e se desfaz após a derrota dos Campos Catalaúnicos em 451. Ou a divisão dos godos em dois povos, os visigodos (godos do Oeste) e os ostrogodos (godos do Este), de acordo com os diferentes rumos geográficos dos supostos irmãos desavindos. Ou a assimilação dos suevos católicos da Hispânia pelos visigodos arianos que os derrotam, no século vi, antes de estes se converterem também ao catolicismo.

 

REUNIDOS PARA PILHAR

Por outras palavras, os povos bárbaros raramente teriam uma consciência muito definida de si próprios e menos ainda uma consciência «nacional». Na maior parte dos casos, eram um melting pot de clãs, tribos e indivíduos, reunidos por um chefe militar carismático para pilhar em efémeras expedições as ricas terras do Império moribundo. O exemplo dos hunos de Átila é o mais espectacular, mas não é o único. Por vezes, chefes hábeis conseguiam criar um sentido de comunidade ocupando por tempo suficiente um território, quase sempre graças a alianças e casamentos com a aristocracia local, reclamando um nome e uma história comuns por referência a um antepassado mítico, unificando costumes pela publicação de leis escritas e pela conversão ao catolicismo (óbvias influências romanas) e, sobretudo, intitulando-se reis e transmitindo o título e o poder aos descendentes, aspirações com frequência votadas ao insucesso. Se triunfassem, porém, estas frágeis dinastias poderiam dar origem aos chamados reinos bárbaros. Alguns, como o dos suevos na Península Ibérica, o dos ostrogodos na Itália ou o dos vândalos no Norte da África, tiveram uma vida breve. Outros, mercê da sorte ou da força humana, acabaram por converter-se nas estruturas políticas dominantes dos séculos seguintes. Os reinos anglo-saxões da Grã-Bretanha durariam até à conquista normanda de 1066 e a Hispânia visigótica até à invasão árabe de 711. O mais bem-sucedido será o reino franco, que atravessa a história nas sucessivas metamorfoses de Clóvis, Carlos Magno, São Luís e Napoleão, até chegar aos comícios de Le Pen.

Geary insiste, contudo, que a continuidade étnica, cultural ou política entre os reinos medievais e as nações modernas que lhes sucedem no mesmo espaço é historicamente problemática. São os intelectuais do romantismo, os criadores da «paisagem envenenada do nacionalismo do século XIX», que projectam no passado as pátrias actuais. «A história real das nações que povoavam a Europa na Alta Idade Média não começa no século VI, mas sim no século XVIII.» Para ilustrar esta frase provocatória, Geary faz uma comparação literalmente deslocada com os zulus. Tal como os godos ou os hunos, também a história deste povo sul-africano nos é contada por observadores estrangeiros que lhes atribuem as suas próprias categorias sociais. Tal como os francos de Clóvis, também o seu apogeu se deve a um chefe triunfador que une todo o povo e vence os inimigos, Shaka-Zulu. E, tal como os sérvios de Milosevic, também o seu passado é invocado como um factor de legitimidade e identificação, antes e depois do apartheid, por uma comunidade étnico-política, o Inkhata. A ironia da comparação obriga a olhar para «os europeus como zulus» e a compreender que as nações não são essências definidas de uma vez para sempre, mas antes, para usar o conceito luminoso de Karl Popper, sociedades abertas cujo futuro não é tributário de nenhum determinismo. «A história dos povos da Europa não terminou – nunca terminará», observa Geary.

 

A PERENIDADE DAS PAIXÕES NACIONALISTAS

Contestando o valor histórico do «ídolo das origens» do nacionalismo, Geary parece compartilhar as celebérrimas teses de Benedict Anderson e Eric Hobsbawm, que vêem precisamente na modernidade a característica básica das «comunidades imaginadas» e da «invenção da tradição». No entanto, como vimos, o historiador americano não subscreve o optimismo dos britânicos quanto ao aparente declínio das paixões nacionalistas no século XX. A história das comunidades nacionais, por mais mítica que seja, é parte integrante e fundamental da imagem que têm de si próprias e, portanto, daquilo que querem ser. Com enormes implicações.

«Seria absurdo sugerir que estas comunidades devessem ser rejeitadas ou trivializadas ou insinuar que “imaginadas” é sinónimo de “imaginárias” ou “insignificantes”. Em primeiro lugar, embora as actuais formas específicas de estados-nação com base étnica possam de facto ter sido criadas pelos esforços dos românticos e nacionalistas do século XIX, isso não significa que no passado não tenha havido outras formas de inventar nações – tão poderosas como as do mundo moderno, apesar de muito diferentes. […] Em segundo lugar, estas sociedades são muito reais e poderosas, apesar do seu carácter de certa maneira imaginado: todos os fenómenos históricos importantes são em certo sentido fenómenos psicológicos e os fenómenos mentais – do extremismo religioso às ideologias políticas – custaram provavelmente a vida a mais pessoas do que qualquer outra coisa, exceptuando a Peste Negra» (pp. 24-25).

Hobsbawm e Anderson explicam-nos a criação dos nacionalismos contemporâneos, mas nada nos dizem sobre os fragmentos históricos contidos na ideia mais influente do nosso tempo. E muito menos o que fazer com eles. Uma dúvida para a qual os líderes políticos nacionalistas têm, infelizmente, resposta pronta. Ao contrário da Peste Negra, tudo indica que o mito das nações continuará a ser uma das paisagens envenenadas do século XXI.

 

NOTAS

1 «Ethnic identity as a situacional construct in the Early Middle Ages». In Mitteilungen der anthropolisgischen Gesellschaft in Wien, 113, 198), pp. 15-26; «Barbarians and ethnicity». In BROWN, Peter (ed.) – Late Antiquity. Cambridge MA, 1999.         [ Links ]