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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.29 Lisboa mar. 2011

 

Tensões e equilíbrios: a história da política de defesa salazarista

 

José Javier Olivas-Osuna

Licenciado em Economia e Técnicas de Investigação e Marketing pela Universidade de Córdoba, e Administração Pública pela London School of Economics (LSE). Doutorando no Departamento de Governo da LSE, onde desenvolve uma tese centrada na análise histórico-comparativa das relações civis-militares em Portugal e Espanha durante o período do franquismo e do salazarismo.

 

António Paulo Duarte

A Política de Defesa Nacional, 1919-1958

Lisboa, ICS, 2010, 317 páginas

 

 

O historiador António Paulo Duarte desenvolve uma análise lata e bem documentada dos condicionamentos que sofreu a política de defesa portuguesa desde o final da I Guerra Mundial até à ascensão ao comando das Forças Armadas, em 1958, de uma nova geração de oficiais fortemente influída pela NATO. Mesmo que a política de defesa do Estado Novo tenha sido já abordada por muitos outros autores1, não deixa de ser intelectualmente estimulante carrear novas provas empíricas que permitem relacionar os problemas militares com o contexto histórico-político português e europeu.

A escolha de um título genérico como é A Política de Defesa Nacional, 1919-1958 antecipa que o interesse do autor não fica circunscrito a um só aspecto ou linha argumental senão que aborda uma multiplicidade de factores intervenientes na problemática da defesa e da política militar. O livro destaca as importantes disparidades entre a teoria e a prática estratégica assim como entre os objectivos e os meios disponíveis. O autor explica as severas deficiências da política de defesa portuguesa durante este período como resultado de uma série de vários factores. Entre estes sobressaem o atraso material e de formação profissional nas Forças Armadas Portuguesas; a natureza das ameaças externas; o anacronismo do pensamento estratégico militar português e a tendência a mimetizar os modelos defensivos doutros países, nem sempre os adaptando à especificidade portuguesa; as tensões entre a Armada e o Exército e, finalmente, a agenda política de Salazar.

As tensões e os equilíbrios complexos da realidade político-militar que o autor descreve parecem ter-se trasladado para o plano analítico criando uma certa ambiguidade na exposição teórica do livro. Se, ao introduzir a obra, o autor enfatiza que a análise se enquadra principalmente na teoria geral da estratégia2, rapidamente se nota que o interesse nos aspectos estratégicos da defesa passa a um plano secundário convertendo-se o controlo político e as rivalidades no seio das Forças Armadas na principal temática. Assim, parece que a verdadeira curiosidade intelectual que motiva esta obra está bem mais ligada à compreensão das relações político-militares do Estado Novo que propriamente à estratégia militar. Prova disso é que o livro conclua com uma clara referência ao debate teórico subjacente às relações civis-militares: «a política de defesa militar …[e]ra um sintoma e um reflexo que expressavam a complexa relação entre o Estado Novo e as Forças Armadas. Um Estado Novo que, a despeito da habilidade política de Salazar, jamais deixou de pertencer às “espadas”» (p. 287).

Contudo, este eclectismo do ponto de vista do interesse teórico não ensombra o resultado do livro e parece reflectir uma realidade. Por detrás de posições aparentemente técnicas com frequência se ocultavam interesses e condicionamentos políticos, económicos e mesmo puramente pessoais dos actores implicados. Para além de Salazar o livro descreve a influência na política de defesa durante o Estado Novo de militares tais como Morais Sarmento, Miranda Cabral, Santos Costa, Barros Rodrigues, Passos e Sousa, Carmona, Botelho Moniz e Américo Thomaz entre outros.

 

NARRATIVA E ESTRUTURA

O livro está organizado por capítulos que coincidem com períodos cronológicos. No capítulo 1 o autor trata da «crise militar» dos anos 1920 que seguiu a «humilhação» sofrida na I Guerra Mundial em que a participação portuguesa foi medíocre e se saldou por uma série de derrotas. As Forças Armadas, cuja situação financeira e material era extremamente deficiente, tornaram-se hostis à I República, que acabariam por derrubar em Maio de 1926, instalando logo depois uma ditadura militar. Basicamente, o autor centra-se em fornecer dados para ilustrar as deploráveis condições de armamento no Exército e na Armada. Este capítulo também descreve o projecto de reforma proposta por Júlio Morais Sarmento que o governo militar tentou após 1926. Este plano de defesa inspirado na doutrina militar francesa introduzia o conceito de «defesa avançada». A instabilidade política e nos quartéis explica porque estas reformas não tiveram uma execução efectiva.

O capítulo 2 analisa as grandes reformas militares lançadas nos anos 1930. A implementação destas reformas, que almejavam o rearmamento e a reorganização da Armada e do Exército, ficou em grande parte alterada por considerações de índole política. Neste período, o autor analisa o programa naval iniciado em 1930; a aprovação, em 1935, das leis número 1905 e 1906 de estruturação dos comandos superiores militares; os diferentes planos gerais de defesa defendidos por Tasso de Miranda Cabral e Santos Costa, e, finalmente, a evolução das reformas em relação ao contexto internacional, em particular à aliança luso-britânica e à ameaça espanhola. Merece uma menção especial a bem documentada e profunda análise dos complexos debates em torno da reforma das Forças Armadas, em particular do Exército. Como é sugerido neste livro, as rivalidades pessoais e corporativas misturavam-se com as diferenças do ponto de vista da doutrina de defesa. Os debates sobre a defesa que suscitaram importantes tensões no seio das Forças Armadas e do Governo, como fica documentado, serviram para consolidar a liderança de Salazar que finalmente impôs o rigor orçamental e temperou as ambições maximalistas dos militares. Neste capítulo, o mais extenso do livro, o autor não deu relevância a revoltas militares importantes no processo de subordinação militar como as da Madeira (1931), Marinha Grande (1934), ou Tejo (1936); nem às reformas de 1937, tão importantes no processo de subordinação militar.

O capítulo 3 estuda a influência exercida por actores internacionais na política de defesa portuguesa na primeira fase da II Guerra Mundial (1942-1945). Destaca-se como as transformações ocorridas no plano bélico mostraram as deficiências da estratégia portuguesa e acentuaram a incapacidade do País para encarar as ameaças externas sem ajuda de aliados.

No capítulo 4, que cobre o período de 1943 a 1958, o autor explica a mudança do modelo estratégico francês para o modelo britânico e a viragem geoestratégica para o Atlântico. Com o final da II Guerra Mundial e o começo da Guerra Fria a União Soviética torna-se a principal preocupação exterior. No interior do País as chefias militares foram controladas com a ajuda de Santos Costa mas não completamente subjugadas e por tal continuaram a preocupar Salazar. Finalmente, a NATO trouxe profundas transformações no plano estratégico, organizacional, dos armamentos e da instrução. Este conjunto de mudanças teve enorme impacto na mentalidade militar. Cabe salientar a influência que o trabalho de António José Telo exerce nesta parte da obra, sobretudo no âmbito dos efeitos da II Guerra Mundial e da NATO na política militar portuguesa.

Ainda que esta obra esteja muito bem escrita e a sua narrativa seja fluída e persuasiva, devem apontar-se alguns pequenos problemas ligados a uma certa falta de equilíbrio no peso dos capítulos e na repetição de algumas análises e discussões. O autor estuda com maior profundidade alguns períodos que outros. Prova disso é que, enquanto dedica somente 16 páginas aos anos 1920, devota 41 páginas ao período 1940-1942 e 116 páginas ao período 1930-1939. O autor também dedica mais espaço a analisar Tasso de Miranda Cabral do que qualquer outra figura (incluindo Salazar e Santos Costa) e faz contínuas referências aos modelos de defesa avançada e defesa recuada ao longo do livro. Nestes casos, o grau de detalhe e reiteração podem parecer excessivos.

Embora o autor siga, fundamentalmente, uma estrutura cronológica, por vezes notam-se saltos e repetições que não ajudam à fluência narrativa da obra. Por exemplo, a descrição do golpe de Maio de 1926, em lugar de aparecer no capítulo 1 dedicado aos anos 1920, produz-se no capítulo 2, depois da análise do impacto das reformas dos órgãos superiores de defesa nacional lançadas em 1935. Também não é muito evidente a razão pela qual o autor examina as reformas de 1935 antes do plano geral de defesa de Miranda Cabral de 1933. Finalmente, os títulos das secções nem sempre contribuem à claridade do exposto. Por exemplo, surpreende que haja secções consecutivas com títulos quase idênticos tais como «A transformação das Forças Armadas e a entrada de Portugal na NATO» (p. 233) e «A transformação das Forças Armadas e a NATO» (p. 246).

 

FONTES

Um dos pontos fortes deste livro é o facto de o autor ter sido capaz de combinar informações de diversas fontes primárias, com uma apropriada e extensa bibliografia para construir uma narrativa convincente sobre um período bastante complexo da história portuguesa. Entre as fontes pesquisadas destacam-se o Arquivo Histórico Militar, o Arquivo Oliveira Salazar e os Diários das Sessões da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa. Mesmo que os arquivos pesquisados não sejam fontes inexploradas e que muitas das valiosas informações que oferecem tenham sido já examinadas por outros autores, António Paulo Duarte consegue ligar estas fontes de uma maneira especialmente hábil criando um relato claro e rigoroso. O autor mostra um profundo conhecimento da história militar contemporânea portuguesa que, sem dúvida, ajuda a relacionar dados que à primeira vista poderiam permanecer desligados. A reconstrução das negociações e tensões em torno das reformas militares dos anos 1930, realizada graças a uma série de cartas, actas e relatórios é seguramente o melhor exemplo disto.

O autor fornece, ainda, muitos dados sobre armamentos e materiais militares (por exemplo, pp. 24-27, 43-47, 78-79). Embora este nível de detalhe possa ser de grande valor para um especialista, nas questões de armamento o leitor menos especializado sentirá certamente falta de uma introdução com comparações com outros países ou períodos históricos. No mesmo sentido, teria sido interessante contar com uma análise mais exaustiva da evolução dos orçamentos militares e dos efectivos mobilizados. Isto serviria para compreender melhor o alcance das decisões finalmente tomadas no âmbito da defesa nacional.

 

ARGUMENTOS SUBJACENTES

Vale a pena sublinhar também uma série de interessantíssimos argumentos recorrentes ao longo da obra. Primeiro, a obsessão das chefias militares com o número de efectivos dos exércitos. Os debates sobre a reorganização centraram-se na capacidade de atingir uma mobilização massiva de tropas sem tomar em conta as capacidades reais do País para equipá-las e instruí-las. Segundo, o intricado dilema entre priorizar a defesa terrestre e as ameaças procedentes da Espanha, ou a defesa naval e das colónias e ilhas atlânticas. Tudo isto com a rivalidade entre a Armada e o Exército como pano de fundo. E, finalmente, a sobreposição entre objectivos militares e políticos que desde a tomada da pasta da Guerra por Salazar, em 1936, fica acentuada.

O Governo de Salazar, concentrado em subsistir num período de enorme instabilidade interna e externa, usou a política de defesa principalmente como um instrumento neste complexo jogo de equilíbrios diplomáticos e políticos. António Paulo Duarte sugere que a defesa ficava subordinada à estratégia política de controlo interno. Para o autor, o rearmamento naval dos anos 1930 tinha uma finalidade política: «legitimava o retardamento do rearmamento do Exército» devido a que este último «poderia valorizar algum oficial general que ofuscasse os lustres do ditador» (p. 46). Na mesma linha, o autor insinua, ainda, que Salazar pôde obstaculizar as reformas porque «[o] rearmamento e a reorganização do Exército feitos em nome de um ministro militar retiraria legitimidade à ideia de que só Salazar garantia de facto o reequipamento da força terrestre» (p. 57). Contudo, o livro argumenta que, a longo termo, Salazar estava muito mais preocupado com o controlo do Exército do que com o da Armada. Esta situação favoreceu a agenda de reformas do Exército para contentar as suas chefias (pp. 196-197, 279-285).

 

CONCLUSÃO

Apesar de um certo eclectismo na motivação teórica e das críticas que se possam fazer sobre o peso e organização de alguns conteúdos, é preciso reconhecer que a obra de António Paulo Duarte é um valioso contributo para a compreensão da evolução, deficiências e condicionantes da política de defesa durante o regime salazarista. A variedade de perspectivas examinadas na problemática da defesa e as abundantes fontes empíricas que usa tornam este texto um documento altamente recomendável, tanto para os estudiosos do pensamento militar-estratégico português, como para os politólogos e historiadores interessados nas relações civis-militares do Estado Novo.

 

NOTAS

1 CAEIRO, Joaquim Manuel Croca – Os Militares no Poder: Uma Análise Histórico-Política do Liberalismo à Revisão Constitucional de 1959. Lisboa: Hugin Editores, 1997; CARRILHO, Maria – Forças Armadas e Mudança Política em Portugal no Século XX. Lisboa: Imprensa Nacional, 1985; FARIA, Telmo – Debaixo de Fogo!: Salazar e as Forças Armadas (1935-41). Lisboa: Instituto da Defesa Nacional, 2000; FERREIRA, José Medeiros – O Comportamento Político dos Militares: Forças Armadas e Regimes Políticos em Portugal durante o Século XX. Lisboa: Editorial Estampa, 1992; ROSAS, Fernando – O Salazarismo e a Aliança Luso-Britânica. Lisboa: Editorial Fragmentos, 1988; TELO, José António – Portugal e a NATO: O Reencontro da Tradição Atlântica. Lisboa: Cosmos, 1996.        [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]

2 «Trata-se, no fundo, de analisar a teoria da Estratégia e as modalidades de estratégia militar produzidas no seio do Exército e da Armada, comparando-as com os planos de defesa bélica que foram definidos pelas estruturas político-militares num determinado período do Estado Novo» (pp. 18-20).