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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.29 Lisboa mar. 2011

 

História vintage

 

Alexandra Dias Santos

Licenciada em História pela FCSH – UNL e mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo ISCTE – IUL. É actualmente doutoranda no ICS – UL, onde desenvolve uma tese sobre a obra do escritor angolano Pepetela, a partir de contribuições da sociologia, da história e da ciência política, bem como dos estudos literários.

 

Douglas Wheelere René Pélissier

História de Angola

Lisboa, Tinta-da-China, 2009, 472 páginas

 

 

Editada pela Tinta-da-China em 2009, a História de Angola não constitui, no sentido próprio do termo, uma novidade. Com algumas adaptações e acrescentos, recupera um livro muito anterior, da autoria de Douglas Wheeler e René Pélissier, intitulado Angola. Tendo sido publicado em 1971 e reeditado em 1977 (sempre em inglês), este livro encontrava-se esgotado desde os anos 1980, e em grande medida esquecido. A ausência prolongada do mercado constitui desde logo motivo para saudar o reaparecimento da obra, para mais porque, graças à tradução, o texto se torna agora acessível ao público português. Mas há mais motivos para contentamento. Tendo sido escrito na segunda metade da década de 1960, em plena Luta de Libertação Nacional (ou Guerra Colonial, conforme o ponto de vista), poder-se-ia esperar de Angola que fosse um livro datado, capaz de despertar interesse apenas enquanto objecto da historiografia. Em vez disso, deparamo-nos com uma obra do seu tempo, é certo, mas ainda actual em muitos dos conteúdos. Fundamentada numa investigação minuciosa, conduzida por um pensamento rigoroso, escrita num estilo vigoroso, pode dizer-se de Angola – agora História de Angola – que em grande medida resistiu à prova do tempo.

 

EM TORNO DAS ORIGENS DO NACIONALISMO ANGOLANO

Do livro que deu origem a História de Angola mantém a divisão em partes independentes entre si, acrescentando às duas antigas uma parte nova, de muito menor dimensão. A primeira, da autoria de Douglas Wheeler, compreende seis capítulos, dos quais os três primeiros parecem destinados a justificar a ambição do livro a constituir uma história de Angola no sentido tradicional do termo. Estes capítulos abarcam um vasto arco temporal e neles se incluem, entre outros temas, referências às deslocações das primeiras populações que habitaram o espaço angolano (pp. 32-36); descrições sucintas de alguns reinos africanos (pp. 48-58), bem como de algumas das campanhas militares travadas pelos portugueses contra eles (pp. 59-76); alguns dados sobre a expansão do domínio português ao longo do século XIX (pp. 89-104) e referências às expedições científicas e comerciais dessa época. Nestes primeiros capítulos inclui-se ainda uma breve história do país colonizador (pp. 36-48), na qual pode ver-se um esforço para definir aquilo que trabalhos mais recentes chamam de «mística do Império». Esta tentativa de compreender o modo como o destino de Portugal foi simbolicamente associado ao das colónias africanas é levada a cabo, porém, de um modo que definiria como tendencioso – veja-se por exemplo a crítica ao «nacionalismo e patriotismo intensos» dos portugueses que não toma em consideração a difusão dessa mesma ideologia noutros países europeus (pp. 41-42).

Depois destes capítulos de índole generalista, Wheeler passa a uma abordagem mais especializada, procurando apreender certos aspectos da emergência do nacionalismo em Angola, com especial atenção para os sentimentos de identidade colectiva que se desenvolveram no seio da chamada elite crioula de Luanda entre finais de Oitocentos e princípios de Novecentos1. Vale a pena salientar o contributo de Wheeler, que a este respeito escreveu também alguns artigos2, para a discussão em torno da origem do nacionalismo angolano. Depois de considerar várias publicações da imprensa angolana nas quais se expressaram jornalistas como José Fontes Pereira e outros assimilados, Wheeler conclui: «Desta pungente crítica ao governo português nasceu um sentimento colectivo de nacionalismo entre a pequena intelligentsia angolana» (p. 165). As implicações desta afirmação são desvendadas num texto posterior3, no qual Wheeler afirma que se avolumam «as provas que sugerem que o nacionalismo angolano começou mais como um movimento assimilado do que como um movimento africano»4. Revela então estar, com esta asserção, a posicionar-se contra duas teses então dominantes: a de Ronald Chilcote, para quem o nacionalismo emergente seria uma extensão de anteriores movimentos regionais de resistência à dominação portuguesa; e a de James Duffy, para quem o nacionalismo angolano remontaria ao Congresso Pan-Africano de Lisboa de 1923. Saliento – a jeito de justificação pelo modo como estou a empolar este assunto – que esta discussão, que havia de se polarizar em torno de duas posições, uma defendendo a origem crioula do nacionalismo angolano, a outra a sua origem nos movimentos de resistência regionais, extravasou o âmbito da história e estendeu-se até à actualidade, em grande medida devido a implicações políticas que um estudioso da situação angolana compreenderá facilmente.

 

NACIONALISMOS E NACIONALISTAS EM COMPETIÇÃO (ANTES, DURANTE E DEPOIS DE 1961)

Da segunda parte de História de Angola, escrita por René Pélissier, vale a pena salientar que antecipa um trabalho posterior do autor, no qual a análise do nacionalismo angolano de meados do século XX será muito desenvolvida5. Já a versão condensada com que aqui nos deparamos, se perde em pormenor, possibilita por outro lado uma visão abrangente dos acontecimentos. Vale a pena chamar a atenção para o oitavo capítulo, que de forma breve, mas com suficiente detalhe e sem descurar as motivações de cada grupo de intervenientes, descreve a sucessão de acontecimentos que tornaram 1961 um ano de importância única: a sublevação da população da zona algodoeira da Baixa do Cassanje; os acontecimentos de Fevereiro em Luanda, relativamente aos quais põe em dúvida (bem, sabemo-lo agora) as reivindicações do MPLA à autoria dos ataques; a insurreição na zona noroeste a partir de Março; a repressão levada a cabo pelos colonos portugueses como resposta; finalmente, a recuperação militar dos territórios ocupados pela UPA. Um reparo relativamente ao capítulo 9: se as lutas internas da UPA//FNLA e as ameaças à liderança de Holden Roberto são descritas com algum pormenor (pp. 290, 294-296), o mesmo não acontece relativamente ao MPLA e à contestação sofrida por Agostinho Neto (que se agravaria nos anos subsequentes à escrita da obra).

 

ANGOLA PÓS-COLONIAL – A GUERRA INTERMINÁVEL E O QUE VEIO DEPOIS

O livro tem uma terceira parte, nova, escrita por Douglas Wheeler. Destinada a preencher a lacuna de quase quatro décadas que separa do livro actual a primeira edição, divide-se em dois capítulos. O primeiro compreende sobretudo reflexões em torno das possibilidades de futuro que se perspectivavam em Angola nos inícios da década de 1970. O segundo é porventura demasiado ambicioso no seu âmbito, já que pretende fazer «uma breve História de Angola entre 1971 e 2008» em apenas 20 páginas. Esta verdadeira missão impossível é levada a cabo em cinco partes, sendo as duas primeiras dedicadas ao fim da Guerra Colonial e ao período de transição pós-Alvor. Como seria de esperar, o quadro traçado é muito resumido, incidindo sobre o posicionamento político dos principais intervenientes, sobretudo de Portugal, bem como sobre a formação de redes internacionais de apoio (logístico e militar) aos movimentos armados de libertação, que transformaria a breve trecho Angola num dos principais palcos da Guerra Fria. Chama-se a atenção para a referência de Wheeler a uma polémica recente entre historiadores em torno da vitória ou derrota de Portugal em Angola (p. 356). Como bem salienta, numa advertência de ressonâncias clausewitzianas, a vitória militar pertence à esfera da táctica, e não da estratégia, de tal modo que as operações militares não determinam por si só o desfecho da guerra: «o futuro de Angola seria modelado de acordo com o que viesse a acontecer na guerra em Moçambique e na Guiné-Bissau, e depois em Lisboa» (p. 357).

Sobre a situação no pós-independência em Angola, Wheeler mais uma vez descreve o jogo de forças, local e internacional, bem como os desenvolvimentos, sobretudo diplomáticos, que levaram à breve trégua de 1991-1992 (pp. 364-366). Foca depois as eleições e o recrudescer da actividade militar que se lhes seguiu e que marcou duramente a década de 1990 (pp. 367-370). De certa forma neutro nestas passagens em que se move no terreno da diplomacia, Wheeler mostra-se menos isento quando o abandona. Assim, quanto ao regime instaurado pelo MPLA, refere que a destruição da economia angolana se deveu ao «êxodo da maior parte da população europeia» e que, «apesar da tentativa de colmatar essas lacunas com pessoal enviado por Cuba, pela União Soviética, pela Alemanha de Leste, pela Polónia e por outros estados comunistas, a economia continuava num estado desastroso» (p. 362, itálicos meus). A culpabilização dos antigos colonizadores é acompanhada de silêncio relativamente à tomada do aparelho de Estado pelo partido e à gestão neopatrimonialista dos cargos públicos. Sobre as desastrosas medidas económicas então implementadas e o seu impacto na vida da população refere abstractamente «políticas austeras do governo marxista-leninista de Luanda» (p. 365). Quanto à situação social e política, o episódio em torno de Nito Alves, que para outros analistas da situação angolana constituiu um marco fundamental na consolidação do regime autoritário do partido-Estado, consistiu para Wheeler numa «breve crise», sendo equiparado à «crise» (qual crise?) provocada pela morte de Agostinho Neto. Igual silêncio sobre o autoritarismo da UNITA, descrita como um movimento de «resistência rural» (p. 363).

Esta descrição da situação política angolana dos últimos trinta anos que não inclui palavras como «autoritário», «clientelista», «(neo)patrimonialista», «privilégio» ou «corrupção» termina com referências a «mudanças promissoras, ainda que incipientes, na frente política», decorrentes de um «esforço desenvolvido para introduzir a política multipartidária no país» (p. 375), o qual se teria concretizado nas eleições parlamentares de 2008. Como modo de equilibrar tanto wishful thinking recomendo a leitura de outro Angola, este mais recente, editado por Patrick Chabal e Nuno Vidal6.

O livro que acaba de se apresentar não constituirá a «história de referência de Angola» que a contracapa anuncia. Diria até que essa ambição, plasmada em alguns capítulos mais generalistas, dá azo aos momentos menos felizes da narrativa. Isso não impede, porém, que História de Angola constitua uma referência importante no que respeita a dois momentos marcantes do nacionalismo angolano, um situado na viragem do século XIX para o século XX, o outro em torno da data de 1961. Mais ainda, este livro apresenta-se como um sólido ponto de partida para quem quiser, a partir dele e tomando como referência a excelente bibliografia recomendada, aprofundar os seus conhecimentos sobre a história de Angola.

 

NOTAS

1 A este respeito vale a pena assinalar a tendência de Wheeler para tomar as opiniões expressas pelos jornalistas da época como representativas da posição dos assimilados, assumindo-os como um grupo. Ao tomar em consideração um trabalho (posterior) de Jill Dias, percebe-se ser necessária alguma cautela neste extrapolamento. A título de exemplo, Wheeler afirma que «os assimilados sofisticados de Luanda não tinham qualquer influência sobre os patrões portugueses nas fazendas e nas fazendas do interior os seus protestos eram largamente ignorados» (p. 169). Segundo o conhecido artigo de Dias – «Uma questão de identidade: respostas intelectuais às transformações económicas no seio da elite crioula da Angola portuguesa entre 1870 e 1930», de 1984 – muitos desses patrões seriam eles próprios assimilados, considerando a autora que este grupo foi dos mais relutantes a pôr fim às práticas de trabalho serviçal.

2 Por ordem cronológica esses textos são: «Nineteenth century African protest in Angola: Prince Nicolas of Kongo (1830?-1860)» (In African Historical Studies. Vol. I, N.o 1, 1968, pp. 40-59; «Angola is whose house? Early stirrings of Angolan nationalism and protest, 1822-1910» (In African Historical Studies. Vol. 2, N.º 1, 1969, pp. 1-22; «An early Angolan protest: the radical journalism of José de Fontes Pereira (1823-1891)» (In Protest and Power in Black Africa. Coord. R. Rotberg e A. Mazrui. Oxford, 1970, pp. 854-874); «Origins of African Nationalism in Angola: Assimilado protest writings, 1859-1929» (In Protest and Resistance in Angola and Brazil. Ed. Ronald H. Chilcote. Berkeley: University of California Press, 1972, pp. 67-87).        [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]

3 O artigo em questão é «Origins of African nationalism in Angola: Assimilado protest writings, 1859-1929», pp. 67-87.

4 Ibidem, p. 70.

5 Refiro-me a La Colonie du Minotaure. Nationalisme et Révoltes en Angola. 1926-1961, que seria publicado por Pélissier em 1977, sob a chancela das Éditions Pélissier.

6 Refiro-me ao livro publicado pela Columbia University Press em 2008, Angola. The Weight of History.