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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.29 Lisboa mar. 2011

 

O ditador fugidio

 

Stanley G. Payne

Professor emérito da Universidade de Wisconsin-Madison. Autor de numerosas obras sobre o fascismo europeu, o regime franquista e a problemática da Guerra Civil de Espanha e a II Guerra Mundial. Entre os seus livros mais recentes, destacam-se España. Una Historia Única (2008) e Hitler and Franco (2008).

 

Filipe Ribeiro de Meneses

Salazar. A Political Biography

Nova York, Enigma Books, 2010, XII + 641 páginas

 

 

António de Oliveira Salazar é um dos ditadores mais enigmáticos do século XX. Foi um dos poucos a não ter qualquer tipo de formação militar, a não desempenhar o cargo de chefe de Estado e a não liderar um grande movimento político. É certo que Mussolini também não foi chefe de Estado em Itália, mas a ditadura estabelecida em Janeiro de 1925 atribuiu-lhe poderes muito alargados, que ele mais tarde planeou reforçar através da eliminação da monarquia (embora as coisas tenham acabado por se passar ao contrário).

Salazar é frequentemente considerado um dos «ditadores ibéricos», mas qualquer pessoa com um conhecimento superficial da história de Salazar e de Franco percebe que os dois foram muito diferentes. O regime de Franco era desde o início uma ditadura militar de corpo inteiro, enquanto que Salazar desenvolveu a sua própria autoridade a partir do interior de uma ditadura militar da qual não havia sido responsável, e que transformou num novo sistema político. Pelo menos até 1961, os militares foram por vezes o seu principal problema político – o que contrasta totalmente com o apoio quase incondicional que Franco recebeu. O ditador espanhol fomentou uma relação especial com Hitler, assinando em segredo o Pacto Tripartido em 1940, enquanto que Salazar lutou arduamente para preservar uma neutralidade genuína durante a II Guerra Mundial. Ainda que os dois se tivessem apoiado mutuamente durante a Guerra Civil de Espanha e de novo a partir de 1942, este apoio não se verificou no período durante o qual o regime espanhol se deixou tentar pelo Eixo. No final de 1940, Franco ordenou que fosse preparado um plano para a invasão de Portugal, ainda que não tenham sido tomadas medidas concretas para o implementar. Em comparação com o seu homólogo espanhol, Salazar era extremamente trabalhador, talvez chegando a ultrapassar Estaline na quantidade de tempo e esforço que dedicava aos seus deveres. Embora Franco possuísse sentido de humor, a sua frieza era mais pronunciada do que a de Salazar, que, quando queria, mostrava um encanto pessoal muito mais genuíno. Finalmente, Franco tinha uma reputação de austeridade, uma qualidade que demonstrava nalgumas situações – enquanto que noutras se comprazia numa pompa que por vezes roçava a megalomania. Em comparação, a austeridade de Salazar parece ter sido absolutamente genuína.

O regime de Salazar teve uma semelhança muito ténue com o de Pilsudski na Polónia. Ambos subiram ao poder na sequência de golpes militares (no caso polaco, o golpe foi muito mais sangrento) e instauraram regimes políticos que não eram fascistas ou unipartidários, mas sim adaptações do regime republicano então existente, que introduziam um autoritarismo considerável ao mesmo tempo que mantinham um certo tipo de sistema parlamentar. Não obstante estas semelhanças, as diferenças foram mais pronunciadas. O regime de Pilsudski era mais genuinamente semiliberal e semipluralista (pelo menos enquanto Pilsudski esteve vivo), sendo que o instigador do golpe militar e o criador do novo sistema eram a mesma pessoa. Pilsudski era um ex-socialista que transitou para o centro-direita, mantendo um controlo firme sobre o Exército. Após a sua morte em 1935, o sistema foi dominado completamente pelos militares e começou a mover-se, de certa forma, na direcção do fascismo. Não fora dar-se uma invasão estrangeira, o regime poderia ter sobrevivido quase tanto tempo como o Estado Novo.

O regime mais parecido com o de Salazar foi, claro está, o de Dollfuss-Schuschnigg na Áustria, outra pequena república. Tal como o português, este regime foi instaurado através de um golpe militar sem derramamento de sangue – pseudolegal no caso austríaco – embora cedo tenha sido confrontado com insurreições graves, primeiro por mão dos socialistas e depois pelos nazis austríacos. Em comparação com o Estado Novo, este regime fez um esforço mais sustentado no sentido de alcançar uma constituição e um sistema corporativos, ainda que posteriormente tenha incorporado mais características do fascismo do que Salazar alguma vez permitiria. Tal como o regime português, teria provavelmente resistido por mais tempo, não fora a invasão alemã em Março de 1938 – uma eventualidade que Salazar muito temeu para Portugal.

A literatura académica e jornalística sobre os principais ditadores europeus é obviamente enorme. O trabalho académico mais detalhado é a grandiosa obra de Renzo de Felice sobre Mussolini, publicada em vários volumes. As abordagens apologéticas mais extensas são o estudo de Franco Nogueira sobre Salazar, em seis volumes, e o estudo ainda mais longo do conhecido medievalista Luís Suárez Fernández sobre Franco. Antes da publicação do novo livro de Meneses, a maior parte da literatura sobre Salazar em inglês e francês adoptara um tom apologético; neste contexto, o melhor trabalho é Salazar and Modern Portugal de Hugh Kay, publicado em 1970. Existem, obviamente, publicações em português que adoptam uma abordagem muito mais crítica, como a de Pedro Ramos de Almeida (1999) e a de Helena Matos (2003). No entanto, estas não são biografias sistemáticas.

Neste novo trabalho, Ribeiro de Meneses apresenta-nos a biografia política de Salazar mais exaustiva e objectiva alguma vez publicada. Este estudo baseou-se em investigação no Arquivo Oliveira Salazar e noutras colecções de dados primários, e encontra-se acompanhada de uma extensa bibliografia de trabalhos primários e secundários, tanto em português como noutras línguas. A ênfase é colocada na vida pública e na actividade política de Salazar, de tal modo que o leitor aprende muito pouco sobre a sua vida privada – ainda que esta dimensão não seja tão árida e desinteressante como algumas obras deixam transparecer. Ainda assim, continua a ser muito difícil falar com exactidão sobre os pormenores mais íntimos da vida do ditador. Meneses aborda esta dimensão de forma relativamente rápida, servindo-se criteriosamente de fontes como Máscaras de Salazar de Fernando Dacosta (1997) e Mulheres de Salazar de Felícia Cabrita (1999), bem como de outros dados e histórias.

A análise mais detalhada é dedicada à actividade diplomática de Salazar, a partir de 1936. Neste contexto, as fontes são relativamente abundantes, tanto no que diz respeito à política portuguesa como à dos outros poderes. De igual modo, a importância deste tema é óbvia, em particular no que diz respeito à década de 1936-1945 e aos anos 1960. As políticas internas também são alvo de considerável atenção, embora com menos detalhe.

Em contraste, a maior insuficiência ou limitação desta obra é a pouca atenção dada aos aspectos financeiros e económicos, uma área que deu a Salazar a sua grande oportunidade e que esteve sempre na primeira linha das suas preocupações – ainda que por vezes tenha sido deixada para segundo plano face a prioridades políticas e internacionais. A quantidade de dados apresentada é de tal maneira escassa que o leitor apenas consegue compreender de forma superficial a crise do final da década de 1920, bem como os sucessos e limitações das políticas iniciais de Salazar, que se revelariam cruciais para a criação do Estado Novo. A dada altura, Meneses defende que o imobilismo económico do Estado Novo tem sido de certa forma exagerado, e refere de passagem a ironia subjacente ao facto de ter sido necessário liberalizar a política económica e estimular um crescimento rápido na década de 1960 para pagar a guerra em África, que entretanto se tornara a questão política central – ao mesmo tempo que a insistência num orçamento equilibrado, ou quase equilibrado, tenha feito com que o esforço de guerra acabasse por ser muito contido em termos económicos.

Os pontos fortes deste livro são, em primeiro lugar, o facto de apresentar uma perspectiva política e diplomática bastante detalhada e, em segundo lugar, a objectividade do argumento e da análise. Meneses esforça-se por ser justo e, no cômputo geral, consegue-o. Em muitas situações, oferece duas ou mais interpretações de um determinado problema ou política, apresentando de seguida a sua conclusão, que quase sempre é impecavelmente perspicaz e equilibrada. Todas as outras grandes figuras do regime, bem como alguns dos seus principais opositores, recebem um tratamento biográfico completo nas notas de rodapé, notas que se revelam bastante úteis para contextualizar estas figuras, ainda que, no geral, muitas delas sejam demasiado detalhadas e algo pedantes, sendo de todo dispensáveis.

Uma das questões principais que se colocam a este tipo de obras diz respeito à novidade das informações ou interpretações disponibilizadas. Neste caso, não se pode dizer que o retrato de Salazar que emerge destas páginas seja particularmente novo, embora o livro apresente de facto uma boa quantidade de novos dados, bem como uma perspectiva cuidadosa e informada sobre os principais problemas e crises.

O Salazar que Meneses nos apresenta não é um monstro fascista nem um patriota altruísta e abnegado, mas sim um líder autoritário ambicioso com um ponto de vista muito próprio e um conjunto de princípios firmes, ainda que por vezes pudesse ser bastante pragmático na sua aplicação. Meneses mostra que o sucesso da sua carreira académica lhe deu uma grande confiança nas suas capacidades. Salazar pretendeu deixar a sua marca logo desde o início, o que é evidenciado pelo facto de ter mudado o seu nome de Salazar Oliveira para Oliveira Salazar – por lhe parecer que o nome espanhol da sua mãe era mais notório para alguém que pretendia desempenhar um cargo público.

Infelizmente, o material relativo aos anos de Salazar na democracia cristã e às primeiras fases da sua carreira no final da década de 1920 é bastante escasso, pelo que os historiadores nunca poderão seguir com exactidão a evolução do seu pensamento, desde o abandono do catolicismo político de direita até à adesão ao autoritarismo corporativo, sob a égide do novo regime republicano. (De igual modo, é difícil acompanhar as mudanças no pensamento de Franco durante o Verão de 1936, à medida que as suas preferências transitavam de uma república de direita, possivelmente ao estilo português, para uma ditadura mais radical que em pouco tempo se aproximaria do modelo italiano.)

Segundo este livro, Salazar estava convencido de que detinha a fórmula para garantir a sobrevivência e estabilidade de Portugal no século XX, preservando ao mesmo tempo a cultura tradicional, a religião, a identidade histórica e o império. Nunca foi o ditador absoluto que outros regimes tiveram, mas viu-se na necessidade de travar e manipular uma série de elites domésticas. Tal como muitos outros, a partir do momento em que enveredou pelo caminho do autoritarismo descobriu que era extremamente difícil voltar atrás, e estava verdadeiramente convencido de que só ele conseguiria manter o sistema em funcionamento. E nem sequer esta última previsão se revelou inteiramente correcta, uma vez que Caetano lhe sucedeu e governou durante seis anos, numa altura em que o Estado Novo se tornara uma espécie de sistema.

Estas conclusões não são radicalmente novas. No entanto, Ribeiro de Meneses apresenta-nos um estudo razoavelmente detalhado, justo e bem investigado, que surge como a melhor obra, num só volume, sobre um dos dois ditadores ocidentais com maior longevidade.

Tradução: João Reis Nunes