SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número29A Índia e o grande jogo do poderO ditador fugidio índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.29 Lisboa mar. 2011

 

Teoria estrutural da política internacional. Entrevista com Kenneth Waltz

 

Bruno Cardoso Reis

Licenciado e mestre em História (Faculdade de Letras de Lisboa). Tem o mestrado em Historical Studies pela Universidade de Cambridge (2003). É doutor em Segurança Internacional (War Studies, King’s College) desde 2008, com uma tese sob o título Big Armies and Small Wars. Em 2007 publicou Salazar e o Vaticano que recebeu os prémios Vítor de Sá e Aristides de Sousa Mendes. É actualmente investigador no ICS – UL e investigador associado do King’s College, e membro do CEHR – UCP, do IISS e da APCP.

 

Como parte do esforço de divulgação das relações internacionais, como disciplina ainda recente no quadro académico português, a revista Relações Internacionais acolheu a iniciativa de levar a cabo uma série de entrevistas com alguns dos principais nomes no estudo e teorização sobre as Relações Internacionais (RI) nas últimas décadas, procurando incluir académicos de referência das principais correntes e temáticas que têm animado a investigação e o debate neste campo.

Iniciamos esta série com uma conversa com Kenneth Waltz (n. 1924) que é provavelmente o mais influente académico no campo das RI, seja pelos que seguem, seja pelos que se opõem à sua teoria de realismo estrutural.

Com um BA em Economia por Oberlin e um doutoramento em Ciência Política por Columbia (1957), foi Adjunct Professor de Political Science na Columbia University e é actualmente Ford Professor of Political Science Emérito na University of California, Berkeley. O professor Waltz foi presidente da American Political Science Association tendo recebido da mesma o James Madison Award for Distinguished Scholarly Contributions to Political Science. É membro da American Academy of Arts and Sciences e é autor de importantes artigos e livros, nomeadamente Man, the State, and War (Nova York: Columbia UP, 2001, ed. rev., ed. orig. 1959); Theory of International Politics (Long Grove: Waveland Inc., 2010, ed. orig. 1979); Foreign Policy and Democratic Politics (Nova York: Little Brown, 1967); em co-autoria com Scott Sagan, The Spread of Nuclear Weapons (Nova York: Norton, 2002, ed. rev.).

 

Bruno Cardoso Reis [BCR] > Posso começar por perguntar, como é que caracteriza o valor acrescentado que a teoria das RI nos traz? Especialmente em relação à história tradicional da diplomacia, ou em relação à análise da política internacional orientada pela política. De certa forma foi o fundador da teoria das relações internacionais (RI) no sentido moderno, e num país como Portugal, em que essa abordagem já é relativamente conhecida, nem sempre é muito claro qual é a diferença...

 

Kenneth Waltz [KW] > Sou claramente da opinião de que o conhecimento da história da diplomacia é importante para quem se especializar na teoria das RI. Mas uma teoria considera regularidades e repetições nas interacções entre estados e faz perguntas como esta: porque é que essas regularidades e repetições acontecem?

 

BCR > O tema do Congresso da International Studies Association este ano é teoria versus política.

 

KW > Teoria versus política?!

 

BCR > Conhecendo o seu trabalho eu diria «Sim, qual é o problema?»

 

KW > Deveria ser mais «teoria e política».

 

BCR > Mas na sua abordagem por vezes deixa bem claro que a teoria não tem de ser relevante para a política...

 

KW > Não tem de ser, mas muitas vezes é mesmo.

 

BCR > Mas qual seria a sua abordagem a este tema? Qual é a natureza da relação? Deveríamos testar a teoria na prática? Deveria ter relevância para a política?

 

KW > Tem relevância para a política porque os decisores políticos precisam de estar conscientes das repetições e das recorrências na política internacional. A política externa norte-americana estaria melhor se aqueles que a praticam estivessem conscientes, por exemplo, da nossa enorme tendência para entrar em guerra. Os Estados Unidos são um dos países mais belicistas da história moderna. Acho que a maioria das pessoas não se apercebe até que ponto os Estados Unidos são belicistas.

 

BCR > Seria provavelmente correcto caracterizá-lo hoje em dia como um patriarca da teoria das RI.

 

KW > Já tenho idade para ser um patriarca...

 

BCR > Ou então podia ser descrito como um dos pais fundadores da forma como se faz teoria das RI actualmente. Tem havido críticas, mas de certa forma as pessoas estão a tentar apresentar alternativas à sua perspectiva, especialmente depois de 1979 [e da publicação de Teoria das Relações Internacionais]. Qual é a sua opinião acerca do estado das RI hoje em dia? Por exemplo, qual é a sua opinião acerca do contributo de abordagens como o construtivismo?

 

KW > Não creio que o construtivismo tenha qualquer contributo a dar à teoria das RI. Não se trata de uma abordagem teórica à política internacional nem à política externa.

 

BCR > Portanto, não está muito optimista acerca do estado actual da teoria das RI?

 

KW > Não estou.

 

BCR > Como é que se poderia mudar isso? Qual é o segredo para fazer boa teoria das RI?

 

KW > Acho que já há algumas correcções em curso. Não há muito tempo, o realismo tinha má reputação. Muitas pessoas achavam que o realismo estava obsoleto e que se estava a tornar cada vez menos importante.

 

BCR > Por causa de 1989 [e do fim da Guerra Fria]?

 

KW > Acho que isso já foi corrigido. Acho que, mais do que nunca, o realismo está de volta. De tempos a tempos é posto de lado... Ninguém gosta de realistas. O realismo perdeu apoiantes em vários momentos, mas acaba sempre por regressar. E acho que estamos agora numa fase em que o realismo está de volta.

 

BCR > Em termos de abordagem, e pense que está a falar para os jovens investigadores de teoria das RI, qual seria o seu conselho?

 

KW > Aprendam a escrever. O meu conselho seria esse.

 

BCR > Mas de que forma é que caracterizaria a sua abordagem?

 

KW > Eu presto atenção à história e ao que se está a passar na política internacional e chego a conclusões acerca do estado actual da política internacional.

 

BCR > De certa forma parece estar a dizer que a história é um bom ponto de partida para criar boas teorias?

 

KW > Penso que quem estiver interessado em especializar-se em política internacional deve ter boas bases de história e deve ter bons conhecimentos básicos de economia.

 

BCR > Uma das coisas que se disseram acerca da teoria das RI – que como disciplina está sempre a tentar estabelecer limites e também uma abordagem diferente – levou algumas pessoas a dizer que de certa maneira a teoria das RI se foi isolando em relação à história, à economia, à sociologia ou à antropologia. Acha que são críticas justas?

 

KW > Se for verdade acho que isso não é bom.

 

BCR > Em relação à sua abordagem do realismo, já foi rotulado de neo-realista ou de realista estrutural. Sente-se bem com esse rótulo? Acha que caracteriza bem aquilo que faz?

 

KW > Gosto do rótulo «realismo estrutural». Porque «neo-realismo» não nos diz ao certo o que é. Só nos diz o que não é; que não é realismo tradicional. Realismo estrutural, pelo menos, dá-nos uma sugestão do que é novo no neo-realismo.

 

BCR > As abordagens estruturalistas estavam na moda, por assim dizer, na década de 1960. Tiveram uma influência enorme na sociologia...

 

KW > E na antropologia. Lévi-Strauss, por exemplo.

 

BCR > Possivelmente, estará agora fora de moda nalgumas dessas disciplinas. Isso é relevante enquanto crítica da abordagem estruturalista da política internacional?

 

KW > Um dos pontos fortes acerca das abordagens estruturalistas é o facto de as estruturas serem transponíveis. Onde encontrarmos as mesmas condições de base descritas pela estrutura, poderemos fazer generalizações. E essas generalizações atravessam as disciplinas. Por exemplo: a economia oligopolística e a política internacional, ou os sistemas de linhagem segmentária na antropologia e a política internacional. Para falarmos em termos de pessoas, Durkheim, e as pessoas que estudam política internacional.

 

BCR > Quando se tenta encontrar uma teoria, dá muito jeito encontrar algum tipo de estrutura.

 

KW > Sim, não sei como é que se pode ter uma teoria sem se ter algum tipo de ideia estrutural.

 

BCR > Falou em Durkheim, que, claro, é um dos fundadores da sociologia, e o construtivismo alega que está a fornecer-nos uma teoria social da política internacional. Qual é a sua reacção a isto?

 

KW > Há todo o tipo de abordagens sociológicas. Não creio que o construtivismo seja útil como abordagem à política internacional. Parece que os construtivistas pensam que o construtivismo tem, de algum modo, uma mensagem optimista a transmitir. Eu acho que o maior construtivista da história moderna foi Adolf Hitler. Pegou numa sociedade formada por pessoas com uma boa formação, pessoas cientificamente sofisticadas, pessoas culturalmente sensíveis, e transformou-as em monstros. O construtivismo é isso, é uma pessoa que pega em toda a sociedade e a vira de pernas para o ar.

 

BCR > Os regimes totalitários são um exemplo de construtivismo...

 

KW > Claro. Hitler foi o exemplo mais notório. Não vejo motivos para pensar que o construtivismo leva a bons resultados.

 

BCR > De certa forma, está já implicitamente a referir-se a outro aspecto, que também é importante, e que é o argumento «maquiavélico» acerca do realismo, segundo o qual o realismo ensina maus hábitos aos políticos. Não concorda com isso, naturalmente...

 

KW > Claro que não concordo. E um bom exemplo é a declaração de 2002 que alguns realistas foram convidados a assinar [ver anúncio no The New York Times, de 26 de Setembro de 2002]. A declaração apresentava seis bons motivos [baseados no realismo] para não se invadir o Iraque.

 

BCR > Diria que há uma dimensão normativa do realismo, visando a sobrevivência, ou até a paz?

 

KW > Penso que essas são ideias-base da maior parte dos realistas.

 

BCR > E a dimensão cultural? Não quero forçá-lo demasiado a falar de coisas das quais não quer falar, mas acha que a cultura ou a psicologia ou as percepções são dimensões importantes nas RI?

 

KW > Sim, claro que sim. Penso que as percepções, as percepções distorcidas, as não percepções, são muito importantes no dia-a-dia, na política internacional, na economia, no que se quiser. Fico muito surpreendido com a quantidade de coisas que pura e simplesmente não são percepcionadas.

 

BCR > No que se refere ao realismo, a polaridade é uma questão central, e por isso também o são a multipolaridade, a bipolaridade... Escreveu um artigo em 1991 em que usou a palavra «caprichosa» para definir a provável política externa norte-americana do futuro. Acha que de alguma maneira isso acabou por se verificar?

 

KW > Sim, infelizmente tenho de dizer que sim. Penso que George W. Bush foi um caso extremo, mas não foi só ele. A previsão é a de que um Estado que tiver um poder esmagador acabará por abusar desse poder. É uma previsão velhíssima. E penso que desde a derrocada da União Soviética os Estados Unidos têm vindo a demonstrá-lo.

 

BCR > George W. Bush é um exemplo, mas Obama poderia ser um exemplo da tensão, de certa forma, entre a estrutura e a actuação. Qual é a importância dos indivíduos nas RI?

 

KW > A estrutura não determina os resultados. Estimula alguns tipos de comportamento, desencoraja outros. Portanto, sobra bastante margem para a actuação humana. E Obama, com todas as desilusões que já tivemos, é, sem dúvida, muito diferente de George W. Bush.

 

BCR > E caracterizava-o, de certa forma, como realista?

 

KW > Não é tão realista quanto eu esperava que fosse.

 

BCR > No que respeita aos grandes desafios que hoje em dia a segurança internacional enfrenta, a agenda é basicamente dominada pelo Afeganistão, pelo Irão. Qual é a sua opinião sobre isso?

 

KW > O Irão, por exemplo...?

 

BCR > No que se refere à proliferação de armamento e à relação com os Estados Unidos.

 

KW > Parece que não conseguimos aprender o simples facto de que todas as potências nucleares se comportam tal como as anteriores. As armas nucleares tornam os países mais modestos, mais moderados, mais cautelosos. Não vejo motivos para acreditar que o Irão com armamento nuclear seja diferente dos países que antes adquiriram armamento nuclear. Só para pegarmos num exemplo: a China desenvolveu a sua capacidade militar nuclear em 1964; a Revolução Cultural esteve em curso entre 1966 e 1976, e não aconteceu nada de mal. Precisamente a meio desse período alcançámos um compromisso – Henry Kissinger, o Presidente Nixon. Penso que esse foi um precedente importante. Muita gente acredita que se o Irão obtiver armamento nuclear será diferente do que aconteceu com as potências nucleares anteriores e actuais. Eu não vejo motivos para isso.

 

BCR > E aplicaria o mesmo princípio à Coreia do Norte e ao Paquistão?

 

KW > Já se aplica à Coreia do Norte, uma vez que já têm algumas ogivas nucleares. E o seu comportamento não tem mudado muito desde que têm capacidade nuclear. Não têm tido atitudes extremistas, talvez até menos do que antes. Acho que o nosso maior erro foi deitar por terra os acordos que Robert Gallucci estabeleceu com a Coreia do Norte em 1994. Quando a Administração Bush chegou ao poder, claro está, repudiou as realizações das anteriores presidências democráticas, o que abriu as portas para que a Coreia do Norte fizesse o que bem entendesse. Mas felizmente isso não teve grande importância porque as armas nucleares da Coreia do Norte não constituem um grande perigo para ninguém.

 

BCR > Você tem aquela grande citação, muito provocadora, de que as armas nucleares são uma grande força para a paz.

 

KW > A maior força para a paz que o mundo já alguma vez viu.

 

BCR > Acha que a não proliferação faz sentido? Quero dizer, devíamos fazer com que fosse ainda mais difícil os países adquirirem armas nucleares?

 

KW > Tem de ser visto caso a caso. Parece-me que estamos sem dúvida a ter uma reacção excessiva perante a probabilidade de o Irão vir a ter armas nucleares. Mas, ao mesmo tempo, acho que não seria muito confortável vivermos num mundo em que uma enorme quantidade de países tivesse capacidade militar nuclear. Mas não vejo possibilidades de isso vir a acontecer. A palavra proliferação é uma escolha muito infeliz porque significa que se vai espalhar como um incêndio descontrolado, e as armas nucleares nunca proliferaram nem deram sinais disso. As armas nucleares têm aumentado a um ritmo extremamente lento. Há armas nucleares desde 1945 e actualmente existem nove países com armas nucleares. Sem dúvida, não se pode falar de proliferação.

 

BCR > Na sua opinião, quais deveriam ser as prioridades norte-americanas no que se refere à política externa? Quais são os grandes desafios, os grandes problemas?

 

KW > Os Estados Unidos têm um problema muito grande. A resposta encontra-se na palavra unipolaridade. Nunca houve uma grande potência que enfrentasse tão poucos desafios à sua segurança como os Estados Unidos hoje em dia. Qual é o problema? De onde vêm as ameaças? Não há qualquer possibilidade de um dado Estado ou de uma combinação de estados representarem uma ameaça militar aos Estados Unidos. E no entanto, gastamos mais nas nossas Forças Armadas do que todos os países do mundo juntos. É de loucos!

 

BCR > Então e os desafios colocados pelo terrorismo e pela rebelião? O envolvimento das forças norte-americanas no Afeganistão e, claro, a Al-Qaida?

 

KW > Esse é mais um exemplo da falta de experiência e da ingenuidade dos Estados Unidos. Entre os países ameaçados pelo terrorismo contam-se o Sri Lanka, a Índia e o Paquistão. Os Estados Unidos encontram-se numa posição em que não se sente muito os efeitos do terrorismo, com a excepção, claro está, do ataque ao World Trade Center. Isso foi um acontecimento dramático e traumático para os Estados Unidos. Mas desde então não tivemos uma tentativa de atentado significativa, ou uma ameaça. Exageramos muito a ameaça terrorista contra os Estados Unidos. Exageramos muito o que os terroristas podem fazer de um modo geral. Eles não conseguem dar continuidade a um ataque. Sabemos que eles podem fazer um ataque, mas não podem dar-lhe continuidade, não conseguem ocupar o território, não conseguem ameaçar a vida do país. O que os terroristas podem fazer é muito limitado.

 

BCR > E terroristas com armas de destruição maciça, armas biológicas, químicas, nucleares? Acha que aí o caso muda de figura?

 

KW > As armas biológicas são muito difíceis de controlar. São armas más, não são armas fáceis de usar, são as armas dos fracos. As armas químicas são menos problemáticas do que as biológicas, mas as armas químicas também são difíceis de controlar.

 

BCR > Acha que, por exemplo, no caso do Afeganistão, se trata de um teste à credibilidade dos Estados Unidos? Se os Estados Unidos fracassarem no controlo dos rebeldes, ficarão significativamente enfraquecidos?

 

KW > A importância da credibilidade é uma coisa que nós [nos Estados Unidos] exageramos imenso. Jonathan Mercer escreveu um livro [Reputation and International Politics, Cornell University Press, 1966] com um argumento convincente: os países que tentam fazer uma coisa e que falham não ficam sem credibilidade da próxima vez que surgir uma situação semelhante num país diferente. O governante do segundo país não pensa: «Ah!, aquela estratégia falhou contra outro alvo, por isso não tenho de me preocupar.» Cada caso é um caso. Os antecedentes não contam.

 

BCR > Parece que está a dizer que os Estados Unidos não se deviam preocupar demasiado. Portanto a unipolaridade veio para ficar?

 

KW > Por algum tempo, pelo menos, dependendo da ascensão da China.

 

BCR > Isso depende da velocidade e da forma como...

 

KW > Isso depende da velocidade com que a China progredir e também depende de como nós nos sairmos daqui para a frente. Nós podemos alcançar uma taxa de crescimento mais elevada. Podemos fazer as coisas de forma mais inteligente. Isso adiaria o momento em que a China emergisse como uma potência comparável. Não tem de ser uma potência igual, mas sim uma potência comparável.

 

BCR > Acha que isso também está ligado ao aspecto teórico? Faz diferença que a Índia e o Brasil sejam países democráticos e a China não? De certa maneira, as potências emergentes serão um verdadeiro teste à paz democrática. Ou isso é uma coisa mais ocidental? Por exemplo, a democracia no Médio Oriente ou no Leste asiático não significa necessariamente uma política externa pacifista pró-ocidental.

 

KW > Se chegarmos a esse tipo de teste, a tese da paz democrática vai chumbar no teste.

 

BCR > Porque no Médio Oriente, quanto mais democrático se é...

 

KW > Bem, agora que a tese da paz democrática foi mais bem definida, defende que, se um país democrático se envolver com outro país democrático semelhante, não entrarão em conflito. Portanto, se duas democracias entrarem em conflito, é porque uma delas é uma falsa democracia. Temos o exemplo da I Guerra Mundial – a Alemanha era uma falsa democracia. Os defensores da tese da paz democrática não gostam deste exemplo, mas antes da I Guerra Mundial, os cientistas políticos em geral consideravam que a Alemanha não só era um país democrático, mas que era o modelo acabado da democracia. Claro, depois descobriu-se que não era de todo um país democrático!

 

BCR > Acha que há a possibilidade de a União Europeia se tornar uma grande potência, agora que temos o Tratado de Lisboa? Antevê mais mudanças, alguns sinais de maior coerência?

 

KW > Vejo sinais de menos coerência. E acho que, infelizmente, muitos europeus concordariam comigo. Alcançar a unidade efectiva está a mostrar-se cada vez mais difícil do que o que eles pensavam.

 

BCR > No que diz respeito ao Realismo, uma das grandes questões que têm sido levantadas é a relevância da questão do Estado. Agora isto torna-a irrelevante... e antes de pelo menos 1648 [Paz da Vestefália] não havia estados no sentido moderno do termo. Portanto a sua teoria das RI está errada porque está sempre a falar de estados, que é uma expressão dos nossos dias, mas eles não existiam, ou então já não existem.

 

KW > Há dois aspectos relacionados com isso. No passado os estados eram suficientemente reais para entrarem em guerra uns contra os outros. Isso é bem real. Isso por um lado. Por outro lado, temos a noção de que o Estado se está a tornar cada vez menos importante. Este último argumento é um absurdo. Toda a gente sabe que os estados se estão a tornar cada vez mais importantes, quer se olhe para o exemplo da União Soviética, do Reino Unido ou dos Estados Unidos. O que andou a fazer a Maggie Thatcher? O que andou a fazer o Ronald Reagan? Atacaram o Estado porque o Estado, na perspectiva deles, se tinha tornado demasiado importante, demasiado presente em redor de tudo. Disseram que fazia demasiadas coisas. Se comparar o Estado dos meados do século XX com o dos meados do século XIX, torna-se obviamente verdade que as funções do Estado cresceram imensamente. Ou pense num período mais curto, entre 1900 e 1950. O poder exercido pelos estados, refiro-me a estados democráticos como o Reino Unido, a França, os Estados Unidos, aumentou imensamente.

 

BCR > Eu diria até que a reacção a estas crises recentes reforçou o poder do Estado.

 

KW > Sem dúvida. O receio do terrorismo aumentou o poder do Estado.

 

BCR > E até a recente crise económica e financeira.

 

KW > Há uma frase: «Nunca desperdice uma boa crise.» As crises dão a oportunidade de aumentar o poder do Estado.

 

BCR > Voltando atrás, então se as unidades se comportarem como estados, se tiverem algum tipo de exército ou se se empenharem na entreajuda, não vê motivos para as considerar como fundamentalmente diferentes dos estados no sentido moderno?

 

KW > Não.

 

BCR > Portanto não sente necessidade de rever o tipo de teorias que desenvolveu, já que se aplicam em diversas condições históricas?

 

KW > Claro. É isso.

 

BCR > Não encontra mudanças significativas com o passar do tempo?

 

KW > Não. Sei que há quem as veja, mas eu não as vejo. É outra maneira de dizer que o realismo talvez pareça estar fora de moda por uns tempos, mas que há-de sempre voltar. E quando regressar, vem semelhante à sua forma original. Não volta numa forma atenuada ou revista ou muito alterada. Regressa no seu sentido original.

 

BCR > A rebelião parece desafiar o realismo porque parece mostrar que os fracos podem derrotar os fortes. Tem uma excelente citação, acho que se estava a referir ao Vietname: «As diferenças de poder têm importância, mas não para todos os fins que se possa imaginar.» [Theory of International Politics, Reading ma: Addison-Wesley, 1979, pp. 189-190] Mas o facto é que temos cada vez mais este tipo de pequenas guerras, ou algum outro tipo de desafios assimétricos que de certa forma parecemos convocar para questionar a importância das capacidades do poder tradicional. Todos sabem que não podem vencer os Estados Unidos numa guerra convencional, e por isso tendem a usar outras ferramentas assimétricas. De certa maneira isso não representa um desafio ao Realismo? De que forma é que encara esta questão de os fracos ganharem contra os fortes?

 

KW > É de facto um velho problema. No auge do Império Britânico costumava-se usar a expressão «torcer a cauda do leão». O Reino Unido era o leão. E os países mais fracos gostavam, gostavam compreensivelmente, de torcer a cauda do leão. O mesmo acontece agora com os Estados Unidos. Com frequência ficamos demasiado excitados ou reagimos de forma excessiva a isso.

 

BCR > Parece estar a dizer que isto limita a capacidade do Estado mais forte para atingir os seus objectivos, embora isso não cause uma espécie de colapso no poder.

 

KW > Não proporciona grandes desafios. São mais aborrecimentos do que desafios.

 

BCR > No que se refere a esta velha questão das percepções e da sua abordagem positivista à política internacional: não sei se concorda com a ideia de que está a fazer uma espécie de abordagem racionalista positivista aos temas da política internacional. Estava a pensar se teria algum interesse por estas questões: por exemplo, António Damásio, um neurocientista que escreveu O Erro de Descartes, defende, de certa maneira, que a razão tem uma dimensão emocional.

 

KW > Parece fazer sentido.

 

BCR > Mas acha que tem implicações para o estudo das RI?

 

KW > Eu uso o positivismo no sentido antigo, como a apreensão directa da realidade sem a ajuda da teoria. Considero-me fortemente não positivista. Tenho a consciência de que o significado da palavra positivismo mudou, mas não percebo bem em que é que ele se transformou. Em todo o caso, rever teorias é uma questão muito problemática. Se uma teoria não for adequada, acho que o que faz falta é uma nova teoria e não tentar remendar a velha teoria. Mas isso é um assunto em aberto.

 

BCR > Reagiu a algumas destas preocupações com o realismo por não ser realmente possível testá-lo. Era de certa forma impossível testar os seus pontos de vista, nomeadamente por falta de mudanças sistémicas. Então, quais seriam os sinais do fracasso ou da irrelevância do realismo?

 

KW > Bem, a maior mudança imaginável, mas não possível no plano prático, seria a mudança para um governo mundial. À falta disso, todas as mudanças são de pouca monta. Não é que não tenham importância nenhuma, mas não mudam o carácter do sistema. Não alteram a sua estrutura.

 

BCR > Portanto, coisas como o G20 ou...

 

KW > Ou a globalização. Não, não alteram o sistema em aspectos basilares.

 

BCR > Porque é que diz que chegámos ao fim das grandes guerras? Na minha interpretação dos seus trabalhos, imagino que seja da opinião de que isso se deve às armas nucleares?

 

KW > Há dois motivos: o menor número de grandes potências e o armamento mais poderoso que elas têm à disposição.

 

BCR > Acha que as RI em geral estão demasiado centradas nas grandes potências? E até que ponto é que isso é um problema? Talvez não seja esse o problema. Talvez pudéssemos simplesmente reduzir a escala de análise e aplicar a mesma teoria a potências de menor dimensão. Qual é o seu ponto de vista sobre esta questão?

 

KW > Max Weber disse, antes da I Guerra Mundial, que os historiadores não se iriam perguntar o que é que a Bélgica, a Suíça e a Suécia tinham feito. Eles perguntar-se-iam antes o que é que a Inglaterra, a França, a Alemanha e a Rússia tinham feito. Portanto, a pouca importância das potências mais pequenas em grandes assuntos não quer dizer que elas não sejam importantes em certos aspectos. Mas em última análise, não são importantes na política internacional. Toda a gente sabe isso. No mundo actual, as pessoas perguntam: «Porque é que os Estados Unidos fizeram isto?» Não perguntam: «Porque é que a França fez isto?»

 

BCR > Mas precisamente para perceber a causa da I Guerra Mundial as acções da Sérvia ou da Bélgica, a reacção à invasão da Bélgica são importantes...

 

KW > Isso mostra que esses países tinham alguma importância, mas, sem dúvida, não tinham a mesma importância que as grandes potências. Eles eram os gatilhos, mas a pólvora estava lá. Quando as coisas começaram a correr mal não foi a Sérvia que cometeu um erro; foi a Áustria, com o apoio da Alemanha. A Alemanha tinha de apoiar a Áustria porque a Áustria era o único aliado importante da Alemanha. Foi isso que fez deflagrar a guerra.

 

BCR > Porque é que hoje em dia não há mais esforços para criar novos equilíbrios de poderes para contrabalançar os Estados Unidos?

 

KW > O equilíbrio de poderes é muito mais difícil do que o que as pessoas pensam. Lembre-se só de como foi difícil criar um equilíbrio de poderes antes da II Guerra Mundial. O equilíbrio só ganhou forma em 1942, três anos depois de a guerra ter começado. Criar equilíbrios de poderes tem-se mostrado muito difícil, constantemente. A maior parte dos historiadores é da opinião de que no século XVIII os países tinham muito mais flexibilidade, e eu concordo com isso. Havia um número suficiente de grandes potências para estabelecer e restabelecer os equilíbrios, e o acto de definir equilíbrios estava nas mãos de um punhado de pessoas nos países que de facto eram importantes.

 

BCR > Talvez afinal a natureza dos regimes tenha alguma importância...

 

KW > A natureza dos regimes, sim.

 

BCR > Estava a pensar num artigo de Snyder e Christensen sobre potências continentais e potências navais e sobre o facto de o equilíbrio ser muito diferente conforme se tratasse de um ou do outro tipo de potência. O contrapeso em relação às potências continentais era muito mais forte do que em relação às potências navais, como a Grã-Bretanha ou os Estados Unidos. Acha que está correcto?

 

KW > Acho que pode sem dúvida estar correcto para um dado período da história. Não creio que seja necessariamente uma diferença, mas pode ter tido alguma relevância histórica.

 

BCR > Uma última pergunta, falando de grandes temas ou de temas que o interessam e que lhe pareça que não estão suficientemente estudados. Quais são, na sua opinião, os temas que deviam estar no topo das prioridades dos investigadores no futuro? Os temas que lhe interessam mais?

 

KW > Penso que o tipo de armamento disponível e a estrutura do sistema são dois factores com uma importância constante. Agora e no futuro.

 

BCR > OK. Está a preparar alguma coisa para publicar?

 

KW > Não, nada de grande importância.

 

BCR > Só por curiosidade: de certa forma Kenneth Waltz é a figura de proa de uma certa escola de pensamento sobre as RI. Tem imensos seguidores, mas imagino que eles não o sigam necessariamente da maneira que mais gostaria. Sente-se de alguma forma tentado a intervir e a corrigir...

 

KW > Não, não tenho essa tentação de todo. Gosto de ter admiradores, e gosto que eles façam o trabalho deles à maneira deles.

 

Tradução: Jorge Filuzeau Garcia